sábado, 6 de abril de 2013

A honestidade no meio acadêmico



"O meio científico não está imune às falsas denúncias provocadas por rivalidades, antipatias pessoais, interesses feridos, raiva, inveja e ciúme. Como qualquer personalidade pública, sejam artistas, políticos ou esportistas, os cientistas não estão livres de calúnias e intrigas. (...) O casamento da ciência com a política transformou-se em um ménage à trois, ao unir-se a eles o interesse econômico. Por sua vez, ao financiarem uma pesquisa, os empresários passam a ter o poder de inclusive nomear a equipe do laboratório, o que leva a dois movimentos, aparentemente antagônicos. De um lado, a necessidade de absoluto sigilo, exigido pelos financiadores, mas prejudicial à pesquisa; é do debate aberto das idéias que surgem os avanços. Do outro, a extrema competitividade da sociedade atual leva o cientista a se sentir pressionado por seus patrocinadores, dos quais dependem seus projetos, seu cargo, seu prestígio e até seu salário. (...) As revistas científicas, para selecionar o material enviado por cientistas, contratam consultores técnicos, que lêem esse material dando um parecer técnico sobre sua importância e originalidade. O que gera outro tipo de problema. Não é segredo nos meios científicos que determinados consultores atrasam seu parecer - para publicar com antecedência suas próprias pesquisas ou a de seus amigos. (...) As revistas científicas sonegam do público informações que podem afetar a vida das pessoas, em nome dos chamados "interesses nacionais" ou das grandes companhias? Existe censura nessas revistas?

São conhecidos pelo menos dois informes científicos, cuja divulgação poderia gerar problemas à indústria ou ao governo, que tiveram sua publicação dificultada.

Um estudo assinado por Thomas Chalmers, da Escola Pública de Saúde de Harvard, relaciona o uso da água clorada com o câncer da bexiga e do reto. O artigo foi rejeitado por 3 importantes revistas médicas, que publicaram, porém, outro trabalho sobre os benefícios do programa público de tratamento da água com cloro.
A mesma dificuldade para publicação encontrou o comunicado de Samuel Ben-Sasson, da Universidade Hebrew, em Jerusalém, que estabelece uma conexão entre a luz fluorescente com a leucemia infantil. Os editores de algumas das principais revistas científicas se recusaram a publicá-lo, alegando que poderia gerar pânico entre as mães."

FONTE: Revista Superinteressante/fevereiro de 1994 - ano 8, no. 2





Cientistas admitem omissão em artigos, diz estudo

Da Agência Estado, em 04/06/09.

Até 34% de cientistas estrangeiros admitem ter realizado práticas de pesquisa questionáveis, como omitir novos resultados que colocariam em xeque trabalhos anteriores ou descartar certas informações obtidas em experimentos por uma percepção subjetiva de que estão incorretas. Foi o que mostrou uma revisão sistemática de artigos sobre má conduta científica realizada por Daniele Fanelli, do Instituto para o Estudo da Ciência, Tecnologia e Inovação da Universidade de Edimburgo, na Escócia.

Cerca de 2% dos pesquisadores chegaram a confessar que já fabricaram, falsificaram ou adulteraram dados para melhorar os resultados das suas publicações. A íntegra pode ser lida na revista digital "Public Library of Science ONE". Daniele examinou 3.276 pesquisas que tratam de desvios éticos. Separou 22 artigos publicados nos últimos 23 anos. Todos reúnem dados de questionários respondidos livre e anonimamente pelos próprios cientistas. Os estudos foram escolhidos por usar metodologias semelhantes que possibilitam a consolidação dos resultados.

Segundo a revisão sistemática, cerca de 14% dos estudiosos conheciam alguém que tinha fabricado ou adulterado voluntariamente dados. Até 72% disseram ter testemunhado outras práticas de pesquisa reprováveis menos graves. Casos de plágio foram ignorados, pois o trabalho analisou somente desvios éticos. Daniele afirmou à reportagem que a pressão do "publique ou pereça", que obriga os pesquisadores a produzir continuamente artigos científicos, explica boa parte dos deslizes.




Cláudio Weber Abramo

Folha de São Paulo, 15 setembro 1996

Nunca, na história da filosofia, uma vitória foi tão completa como a que goza hoje a epistemologia pós-moderna, em especial sua vertente relativista. Por meio da expansão cognitiva imbricada no indeterminismo quântico e na teoria do caos, a ciência pós-moderna abole o conceito de realidade "física" e privilegia a não-linearidade e a descontinuidade. Ao mesmo tempo, por meio do (meta)cruzamento dos conceitos, desconstrói e transcende as distinções metafísicas cartesianas entre humanidade e Natureza, observador e observado, sujeito e objeto. Baseia sua perspectiva ontológica sobre a trama dinâmica das relações entre o todo e as partes; no lugar de essências individuais fixas, conceitualiza interações e fluxos.
É finalmente reconhecida a relevância do simbolismo e da representação, que liberam as ciências da camisa-de-força das fronteiras interdisciplinares e propiciam a transgressão criadora. Torna-se cada vez mais aparente que os objetos naturais são construídos social e linguisticamente, o que dissolve sua putativa concretude. A "realidade objetiva", autoritária e elitisticamente imposta pela ciência tradicional, mostra ser o que sempre foi: uma ilusão ideologicamente imposta por um establishment científico a serviço de interesses retrógrados.
Em nenhum lugar esse movimento pode ser identificado mais claramente do que na teoria quântica da gravitação. Pesquisas recentes nessa área, alimentadas pela metacrítica do desconstrutivismo, têm liberado a investigação científica de seus velhos pressupostos objetivistas e, em consequência, trazido a física para uma crescente harmonização com as humanidades. Tão íntima é essa aproximação que, por exemplo, as teorias psicanalíticas de Jacques Lacan encontram confirmação em investigações realizadas no terreno da teoria quântica de campos. E é sintomático observar a dívida da nova física para com o trabalho de pensadores desconstrutivistas, como é exemplo paradigmático a teoria da estrutura e dos signos no discurso científico, de Derrida.
Tão extensa e fundamental é a revolução por que passa a teoria quântica da gravitação que abole até o conceito de existência que forma a base da tradição filosófica ocidental. Por isso, não surpreendentemente, são muito profundas suas implicações culturais e políticas. No entanto, o desabrochar dessas implicações numa práxis política progressista ainda dependerá de extenso trabalho teórico, a começar pelo fundamento mais íntimo do empreendimento científico, a matemática. Uma ciência liberadora do homem não poderá se completar na ausência de uma profunda revisão do cânone matemático dominante desde Galileu: notoriamente capitalista, patriarcal e militarista.


Neste ponto convida-se o eventual leitor a uma reflexão. O que se acabou de ler é ou não é plausível à luz do que se lê por aí? Não terá ele encontrado em leituras recentes o vocabulário, as referências cruzadas e o particular modo de inferência presentes no acima?
"Fluxo", "ênfase dialética", "não-linearidade", "teoria do caos", "indeterminismo quântico", "metacruzamento", "emancipação cognitiva", metacrítica" compõem um léxico decerto familiar. Também é familiar a justaposição desse léxico numa sintaxe, digamos, fluxional: a uma frase se sucede outra, e outra, e outra, dando lugar a um "texto", objeto e fim da novel área dos "estudos culturais". Lógica, fundamentos, encadeamentos inteligíveis, pertinência, nem pensar.
No caso em questão, o "texto" afirma, entre outras barbaridades, que a realidade física não existe e que um terreno de investigação que lida com o micromundo (a teoria quântica de campos) estaria não só fruindo inspiração dos escritos de Derrida como propiciando suporte às especulações de Lacan e, ainda, fornecendo suporte a uma "física libertária" com "profundas" implicações para a cultura e a prática política! Afirma que os fundamentos da matemática são "capitalistas, patriarcalistas e militaristas"!
Ora, pois, se dirá, apresentar o "texto" acima como paradigma do que se publica na área dos "estudos culturais" é um exagero de má-fé. Nenhuma publicação respeitável poderia considerar seriamente a aceitação de tamanhas absurdidades em suas páginas.
Não foi, porém, o que aconteceu na prática. Explica-se: o "texto" em questão não foi inventado para a presente ocasião. Trata-se de um resumo (um pouco "desconstruído" e levemente adicionado de divertimentos próprios) de artigo lunático que os editores da prestigiosa revista "Social Text", "vade mecum" dos "estudos culturais" norte-americanos, aceitaram para publicação em uma edição especial (primavera/verão 96) dedicada à filosofia e à sociologia da ciência.
O autor da peça (intitulada "Transgressing the Boundaries: Towards a Transformative Hermeneutics of Quantum Gravity" _Uma Transgressão de Fronteiras: em Direção a uma Hermenêutica Transformativa da Gravidade Quântica) é Alan Sokal, professor de física da Universidade de Nova York. Poucas semanas após a publicação do artigo na "Social Text", outra revista, "Lingua Franca", trouxe (edição de maio/junho de 1996) um pequeno escrito do mesmo Sokal em que ele denuncia seu próprio "texto" e explica a operação:
"Há alguns anos, venho me preocupando com um declínio aparente nos critérios de rigor intelectual vigorantes em determinados rincões das humanidades acadêmicas norte-americanas. (...) Para testar esses critérios, decidi fazer um experimento modesto (embora admitidamente incontrolado): será que uma revista de primeira linha na área dos 'estudos culturais' _cujo coletivo editorial inclui luminares como Fredric Jameson e Andrew Ross_ publicaria um artigo abundantemente preenchido com absurdidades, caso (a) soasse bem e (b) alimentasse os preconceitos ideológicos de seus editores? Infelizmente, a resposta é afirmativa".
Além de expor a debilidade das práticas pós-modernas, Sokal tinha uma motivação política para a peça que pregou. A dissolução da idéia de que o ser humano pode obter conhecimento objetivo a respeito do mundo, preconizada pelo relativismo, bem como a noção pós-moderna de que aquilo que possamos afirmar sobre a realidade não passa de "constructos", solapam os esforços de elaborar uma crítica progressista da ordem social. Como se tornou impossível desmoralizar as maluquices pós-modernas por meio do debate racional, Sokal induziu o alvo a atirar no próprio pé.
Ele estruturou seu artigo a partir da justaposição de fontes genuínas. Mesclou referências científicas verdadeiras a inacreditáveis absurdos sobre a física e a matemática provenientes de luminares pós-modernos como Deleuze, Derrida, Guattari, Lacan, Lyotard, Stanley Aronowitz (membro do corpo diretor da revista, citado nada menos que 13 vezes) e Andrew Ross (responsável pela edição do número em que o artigo apareceu, citado quatro vezes).
Por que o experimento de Sokal funcionou? Conforme ele aponta em um "Pós-escrito" enviado à "Social Text" após a eclosão do escândalo, a chave do sucesso foi o fato de seu artigo mimetizar as características do gênero "pós-moderno":
"Uma mistura de verdades, meias-verdades, um-quarto-de-verdades, falsidades, inferências inválidas e sentenças sintaticamente corretas, mas carentes de qualquer sentido. (...) Também empreguei outras estratégias consagradas (embora às vezes inadvertidamente) no gênero: apelos à autoridade em lugar da lógica; especulações apresentadas como ciência estabelecida; analogias forçadas e mesmo absurdas; uma retórica que soa correta, mas cujo significado é ambíguo; e confusões entre os significados técnico e corriqueiro das palavras".
O episódio lança luz sobre os costumes de uma certa casta acadêmica que tem contribuído fortemente para o estado de deliquescência em que se encontra a vida intelectual. Mesmo após a exposição do vexame, os editores da "Social Text" perseveraram nas mesmas práticas que os haviam levado ao ridículo. Num editorial cheio de subterfúgios publicado na Internet e depois na edição de julho/agosto 96 na "Lingua Franca", Bruce Robbins e Andrew Ross, co-editores do número fatídico, justificam assim o fato de o artigo ter passado por seu crivo:
"Concluímos que se tratava de uma tentativa esforçada de um cientista profissional de encontrar na filosofia pós-moderna algum tipo de afirmação para desenvolvimentos em seu próprio terreno. (...) Caso viesse de um humanista ou cientista social, o artigo de Sokal teria sido considerado um tanto obsoleto (fica-se imaginando as sandices que seriam exigidas para poder ser classificado como "up to date"...). Tratando-se de artigo de um cientista natural, julgamos ser plausivelmente sintomático de como alguém como Sokal poderia aproximar-se do campo da epistemologia pós-moderna, isto é, procurando desajeitada, mas assertivamente, capturar o 'clima' ('feel') da linguagem profissional da área, escudando-se ao mesmo tempo numa armada de notas de rodapé para aliviar sua sensação de vulnerabilidade. Em outras palavras, lemos o artigo mais como um ato de boa-fé quanto ao tipo (de escrito) que poderia valer a pena encorajar, do que como um conjunto de argumentos com que concordássemos. (...) Seu estatuto como paródia não altera substancialmente nosso interesse na peça como documento sintomático. De fato, a conduta de Sokal se transformou rapidamente em objeto de estudo para aqueles que estudam o comportamento de cientistas".
Fora o autoritarismo paternalista transparente nessas palavras, consegue-se ver claramente por que "Social Text" aceitou o artigo, como aceitara e encorajará outros, tão hilariantes como o de Sokal, embora genuínos: porque considera a presença de um "clima" condição suficiente para definir a pertinência à "linguagem profissional da área". Foi essa exatamente a hipótese formulada por Sokal em seu experimento, e confirmada pelo ato de publicação.
Observe-se, ainda, como opera o processo de regeneração perpétua característico do pós-modernismo: já tentam transformar o caso em objeto de estudo, em que Sokal passa a desempenhar o papel de rato de laboratório para experiências sobre uns cientistas pobres coitados incapazes de ler filosofia (a filosofia lá deles, bem entendido).
Quanto aos cientistas propriamente ditos, que passam a existência em busca de explicações sobre o funcionamento do mundo e têm coisa mais séria com que se preocupar, a "filosofia pós-moderna" não pode passar de piada. E foi assim, como uma piada até previsível, que o "caso Sokal" foi recebido por essa comunidade. (A edição de agosto do "New York Review of Books" traz artigo do físico Prêmio Nobel Steven Weinberg em que se analisam pacientemente os erros científicos e filosóficos cometidos pelos "pós-modernos" retratados no artigo de Sokal.) Nas humanidades, território de caça por excelência do pós-modernismo, a coisa pegou mais fundo.
Sokal informa via e-mail que "o escândalo parece estar tendo algum efeito em nosso pequeno mundo acadêmico _especialmente nas humanidades e nas ciências sociais, que afinal constituíam o alvo do experimento. Já se programaram inúmeros debates para o início do ano acadêmico, neste mês (fui convidado para mais de dez, em universidades de todo o país). O escândalo deu origem a uma discussão em que começam a ser ouvidos outra vez os velhos argumentos racionalistas contra o pós-modernismo. Enfim, suspeito que um certo tipo de prosa ininteligível e recheada de jargão tenha recebido um golpe mortal, pois os comitês universitários de promoção acadêmica estarão muito menos intimidados do que já foram por 'teorias' aparentemente profundas, mas incompreensíveis".
Receia-se que o otimismo de Sokal quanto à academia norte-americana não possa ser transferido para paragens remotas como o Brasil, em que a vida intelectual morreu por suicídio. É muito provável que continuemos a nos deparar com "textos" eivados de uma mixórdia de indefinidas categorias filosóficas misturadas a mal digeridas menções à teoria da relatividade geral, ao indeterminismo quântico, à teoria do caos, ao teorema de Gõdel, tudo servindo de suporte a especulações de modo geral ininteligíveis e, quando inteligíveis, gritantemente implausíveis, a respeito da psique, da função da forma na arte e de todo e qualquer assunto que dê na telha de seus perpetradores.
Se por aqui alguma coisa mudar não será por efeito de algum processo de discussão (pois debater é coisa que nossa intelectualidade, rendida sem luta ao relativismo e à complacência, só faz "in extremis"), mas porque alguém reparará tardiamente que desconstruções, "textos", "pós-modernismos" e quejandos terão caído de moda. Será uma conversão como tantas outras por que passaram, sem nexo e sem razão.

Cláudio Weber Abramo é bacharel em matemática e mestre em filosofia da ciência. Foi editor de Economia da Folha e secretário-executivo de redação da "Gazeta Mercantil". É sócio da Weber Abramo, Penz Assessoria de Comunicação.
Agradeço a Alan Sokal a paciência de leituras e discussões progressivas em torno do presente artigo, do qual é, em essência, o verdadeiro autor (exceto quanto aos últimos parágrafos). Principalmente, agradeço a realização de uma antiga fantasia.

Leia um trecho do artigo
ALAN SOKAL
Desse modo, a relatividade geral nos obriga a adotar noções radicalmente novas e contra-intuitivas a respeito do espaço, do tempo e da causalidade; por isso, não surpreende que tenha provocado profundo impacto não apenas nas ciências naturais como também na filosofia, na crítica literária e nas ciências humanas.
Por exemplo, num célebre simpósio realizado há três décadas sobre "Les Langages Critiques et les Sciences de l'Homme", Jean Hyppolite levantou uma questão incisiva sobre a teoria da estrutura e dos signos no discurso científico, de Jacques Derrida.
A perspicaz resposta de Derrida foi ao âmago da relatividade geral clássica: "A constante einsteiniana não é uma constante, não é um centro. É o próprio conceito de variabilidade _é, finalmente, o conceito do jogo. Em outras palavras, não é o conceito de alguma coisa _de um centro a partir do qual um observador pode dominar o campo_, mas o próprio conceito do jogo".
Em termos matemáticos, a observação de Derrida liga-se à invariância da equação de campo de Einstein sob difeomorfismos (auto-aplicações da variedade espaço-temporal infinitamente diferenciáveis mas não necessariamente analíticas) não-lineares do espaço-tempo. O ponto-chave é que esse grupo de invariância "age transitivamente": isso significa que qualquer ponto do espaço-tempo, caso exista, pode ser transformado em qualquer outro. Dessa forma, o grupo de invariância de dimensão infinita dissolve a distinção entre observador e observado; o de Euclides e o G de Newton, antes imaginados constantes e universais, são agora percebidos em sua inelutável historicidade; e o observador putativo se torna fatalmente de-centrado, desconectado de qualquer ligação epistêmica com um ponto do espaço-tempo que não pode mais ser definido apenas pela geometria.
Alan Sokal é professor de física na Universidade de Nova York. Tem colaborações científicas na Itália e no Brasil (Universidade Federal de Minas Gerais). Durante o governo sandinista, ensinou matemática na Universidade Nacional da Nicarágua. Junto com o belga Jean Bricmont escreve "Les Impostures Scientifiques des Philosophes (Post-)Modernes" _em que se examinam as bobagens matemáticas de Lyotard, Baudrillard, Deleuze, Guattari e Virilio.


Além das referências do texto, o "caso Sokal" apareceu nas primeiras páginas do "New York Times", do "International Herald Tribune" e do "Observer". Naturalmente, está dando origem a considerável trânsito de e-mails na Internet. Home pages que vale a pena visitar:




A brincadeira de Sokal...

Roberto Campos

Folha de São Paulo, 22 setembro 1996

"O imbecil coletivo... é uma coletividade de pessoas de inteligência normal ou mesmo superior, que se reúnem movidas pelo desejo comum de imbecilizar-se umas às outras".Olavo de Carvalho
Uma divertida, mas muito oportuna tempestade, ainda agitando os subúrbios da vida acadêmica americana. Um físico, dr. Alan Sokal, professor da New York University, publicou na edição da primavera/verão da "Social Text", uma revista esquerdista de crítica cultural, dedicada sobretudo ao "pós-modernismo", um enroladíssimo ensaio intitulado "Atravessando as Fronteiras: em Direção a uma Hermenêutica Transformativa da Gravidade Quântica"! Logo depois, Sokal publicou em outra revista, "Língua Franca", um artigo sob o título de "Um Físico faz Experiências com Estudos Culturais".
Neste, ele explica que o texto mandado para "Social Text" era uma paródia às custas dos praticantes dos "estudos da ciência"; não mais que uma piada repleta de frases sem sentido, para dar a impressão de que estava questionando a validade da mensuração da "realidade" física...
O que doeu para burro (não é jogo de palavras...) é que a revista "Social Text", que hospedara essa brincadeira, havia conquistado certa reputação de seriedade na linha culturalista de esquerda. Tornara-se uma espécie de último refúgio intelectual dos resíduos de um radicalismo acadêmico que ainda floresce em áreas menos iluminadas das chamadas "ciências sociais". Há muito tempo, os cientistas das disciplinas "duras" vem sentindo crescente desgosto com o facilitário, a parolagem e as pretensões intelectuais dessa turma "engajada".
Ninguém se esquece do que aconteceu nos tempos áureos do socialismo de Stálin. Nessa época, a teoria da relatividade era ciência "burguesa" e "judaica"; a cibernética era banida por motivos parecidos (o que atrasou enormemente a tecnologia soviética) e a genética mendeliana dava Gulag ou pior (porque contrariava o suposto socialista da "hereditariedade dos traços adquiridos").
Essas histórias, é verdade, são antigas, mas o vício do patrulhamento, pela submissão da idéia à ideologia, parece gostoso demais às esquerdas, em que conseguem alguma parcela de poder. Aqui nas terras de Macunaíma, muita gente foi patrulhada e perseguida, não raro da maneira mais calhorda _tudo, é claro, em nome da "boa causa". Há patrulhadores contumazes: Antonio Callado, por exemplo, na literatura, e Emir Sader, nas ciências sociais.
O primeiro buscou vetar a publicação no Jornal do Brasil de artigos de Olavo de Carvalho, um filósofo de grande erudição, e o segundo investiu contra José Guilherme Merquior, que foi indubitavelmente o sociólogo de maior densidade cultural da jovem geração brasileira e o que mais se projetou internacionalmente.
A brincadeira de Sokal não mereceria talvez mais que uma gargalhada, se os colaboradores do "Social Text" não tivessem perdido a esportiva e falado em "quebra de ética" e outras coisas feias, armando uma verdadeira guerra contra os chamados "conservadores na ciência". Na verdade, eles confessam que haviam tomado o artigo de Sokal como uma tentativa séria de um físico para encontrar na "filosofia pós-moderna" algum apoio para os desenvolvimentos na sua ciência.
E algumas afirmações do editor da revista, professor Stanley Fish, da Duke University, acabaram soando quase tão engraçadas quanto as de Sokal: "Os sociólogos da ciência, diz ele, não estão tentando fazer ciência, mas sim encontrar uma rica e poderosa explicação do que significa fazê-lo"... (sic)
Essa tentativa de auto-justificação espicaçou irritações acumuladas e atiçou um fogo de morro-arriba nos círculos acadêmicos pelo mundo afora. Não é de hoje, naturalmente, que pensadores sérios reclamam contra o facilitário com que praticantes das chamadas "ciências sociais" _e da filosofia_ abusam dos critérios de racionalidade e da semântica, às vezes em defesa de interesses ideológicos imediatistas.
O grande lógico-matemático Carnap, por exemplo, desancou asserções sem sentido de filósofos então na moda. Tudo isso, porém, faz parte do jogo, e não despertaria atenção se não fosse a crescente falta de desconfiômetro intelectual dos "radicais chiques", "engajados", negando validade aos esforços de conhecimento objetivo das ciências e pregando descaradamente como "ciência" seus próprios preconceitos políticos e ideológicos.
A discussão estourou feia por outros campos. Por exemplo, um jornalista trouxe à baila que, em alguns casos, estava sendo ensinado que Cleópatra e Sócrates eram ambos negros, que a filosofia e a ciência gregas haviam sido roubadas da África e que Aristóteles roubara a sua filosofia da biblioteca de Alexandria.
Tolices como essas mal escondem um viés paternalista insultuoso, que só desserve à causa da justiça à raça negra. Não sem razão, o super-radical líder negro americano Farrakhan, que fez a recente notável marcha sobre Washington e que prega, inclusive, uma estrita separação em relação aos brancos, rejeita esse bom-mocismo e reclama dos seus correligionários uma "auto-afirmação séria".
Para nós, acostumados a um grau de descaramento muito mais grosso por parte dos nossos radicais e corporativos, as diluídas repercussões do caso que nos estão chegando podem parecer diversão de Primeiro Mundo. Mas, por trás de tudo isso, há perguntas válidas. Será tudo tão relativo que nada de objetivo se possa afirmar sobre o mundo real? Está o cientista obrigado pelas regras lógicas e éticas da consistência, ou o "engajamento" será o mais importante de tudo? Será toda a "verdade" sempre "política" e "ideológica", ou os princípios da Razão podem levar-nos a um conhecimento cada vez mais amplo, acessível a todos e por todos aferível?
Não há respostas absolutas para essas indagações. Mas todos nós temos de manter alguma relação com aquilo que podemos chamar de "mundo real". Mesmo um engajado "sociólogo da cultura", por mais enroscado que esteja na "desconstrução pós-moderna", ao apertar o botão da luz espera que a lâmpada acenda, e, ao virar a chave do carro, espera sem sombra de dúvida que as "relativas" leis da física e da química e a matemática em que são formuladas não pararão de funcionar naquele exato momento.
Por outro lado, o esforço de "desconstrução", como todos os esforços críticos, pode ser útil para balizar nosso pensamento e mostrar alguns dos nossos limites. Que não são muita novidade, aliás. Há 25 séculos, os gregos quebravam a cabeça com paradoxos não diferentes daqueles sobre os quais se debruçariam os matemáticos e lógicos Whitehead e Russell e, mais recentemente, Gõdel.
Os economistas, esses então, vivem com permanente enxaqueca, porque lidam com matérias que são, ao mesmo tempo, próprias da matemática e da física, da história e da cultura. Ou seja, de um lado há o risco do buraco negro de um excessivo grau de abstração; de outro, o lameiro do facilitário com que os malandros se valem das "ciências sociais". Com pequenas perversidades de um lado e de outro. Por exemplo, Paul Krugman, o economista (é claro...), recentemente contou a anedota do professor de economia hindu que assim tentava explicar aos alunos a reencarnação: "Se vocês forem sérios, aplicados, fizerem bem os seus deveres, na próxima encarnação voltarão como físicos. Se forem malandros e relaxados, voltarão como sociólogos"...
Não pretendo tirar conclusões, porque prefiro não apanhar nem de um lado nem de outro. Já sofri a minha quota de patrulhamento. Mas, que seria bastante útil um pouco mais de rigor no discurso brasileiro, seria. Só haveria ganhos se começássemos a praticar a semântica do sujeito-verbo-predicado, em vez do nosso tropical desrespeito pelas palavras e pelo fato de que, por trás delas, tem de haver certo sentido nas coisas...


 Roberto Campos, 79, economista e diplomata, é deputado federal pelo PPB do Rio de Janeiro. Foi senador pelo PDS-MT e ministro do Planejamento (governo Castello Branco). É autor de "A Lanterna na Popa" (Ed. Topbooks, 1994).




A razão não é propriedade privada

Alan Sokal

Folha de São Paulo, 6 outubro 1996

A Folha de 22/9 trouxe artigo de Roberto Campos sobre uma ''brincadeira'' de minha autoria no qual o autor expõe _como é seu direito_ sua análise do caso e de seu significado político. No entanto, em seu zelo de interpretar a controvérsia decorrente numa camisa-de-força de esquerda/direita, Campos distorceu os meus motivos políticos _claramente declarados, aliás, recrutando-me contra a minha vontade para sua cruzada ideológica direitista.
A história é conhecida. Submeti à ''Social Text'', revista norte-americana de crítica cultural identificada com a ''esquerda pós-modernista'', um artigo paródico no qual afirmava que a ''ciência pós-moderna'' aboliria o conceito de realidade objetiva e, desse modo, sustentaria intelectualmente o ''projeto político progressista''.
O artigo foi preenchido de citações perfeitamente genuínas de proeminentes intelectuais norte-americanos e franceses _Stanley Aronowitz, Sandra Harding, Jacques Derrida, Jean-François Lyotard, Jacques Lacan, Gilles Deleuze e dúzias de outros_ escrevendo bobagens sobre a matemática e a física, tudo acompanhado de blandícias rasgadas.
Os editores da ''Social Text'' aceitaram e publicaram o artigo, sem perceber que se tratava de uma paródia. Logo depois, revelei a ''brincadeira'' em outra revista, ''Lingua Franca'', em que expliquei os meus motivos intelectuais e políticos.
A ''confissão'' desencadeou uma torrente de reportagens na mídia do mundo anglo-saxão e de outros países. Os temas subjacentes têm se tornado objeto de inúmeros debates nos círculos universitários norte-americanos.
Segundo Roberto Campos, o caso demonstraria a falência intelectual da esquerda, reduzida à ''parolagem e às pretensões intelectuais''. Mas será que é mesmo assim? Embora o pobre leitor do artigo de Campos não o suspeitasse jamais, eu pertenço à esquerda _entendida amplamente como corrente política que condena as injustiças e as desigualdades do sistema capitalista e que procura eliminá-las, ou pelo menos minimizá-las.
Sem dúvida, a esquerda mundial está passando por uma crise intelectual e estratégica, provocada não tanto pelo colapso do comunismo, sistema opressivo que a esquerda democrática sempre condenou, mas pela crescente globalização do capital e a consequente dificuldade de sujeitá-lo a controle democrático.
Foi nesse contexto que escrevi a paródia: não com a intenção de ridicularizar a esquerda, mas de fortalecê-la por meio da crítica de seus excessos.
Pois excessos têm sido cometidos, sobretudo nos Estados Unidos, onde a esquerda sempre foi marginal e marginalizada, excluída da responsabilidade cotidiana de elaborar um programa político, de defendê-lo e, eventualmente, de implementá-lo.
Nessa situação de impotência, exacerbada nos anos 80 e 90, a esquerda norte-americana se fragmentou. Reduzimo-nos a uma coleção de lutas setoriais, negros, latinos, mulheres, gays, operários, todas valorosas, mas sem ligação estratégica entre si.
Pior, uma parte da esquerda intelectual fechou-se no ambiente universitário, em que as lutas intestinas da profissão substituíram a verdadeira política: na frase memorável do sociólogo Todd Gitlin, ''marcharam sobre a Faculdade de Letras enquanto a direita tomava a Casa Branca''.
Foi num meio acadêmico cada vez mais voltado para si próprio que, com base em idéias originalmente frutíferas e libertadoras, feminismo e multiculturalismo, por exemplo, se construiu um novo escolasticismo, representado especialmente pela corrente pós-moderna. Esta, porém, nunca constituiu a totalidade, nem mesmo a maioria, da ''esquerda acadêmica''.
Para cada artigo sobre a transgressividade sexual de Madonna, publicaram-se cinco analisando rigorosamente a desigualdade salarial entre mulheres e homens. Para cada livro escrito em incompreensível jargão desconstrucionista, editaram-se dez de fascinante história social.
Por esse motivo, a reação à minha ''brincadeira'' nos meios esquerdistas norte-americanos foi bem o contrário do que Roberto Campos, cegado por seus preconceitos e imaginando ''patrulhadores'' do politicamente correto atrás de cada esquina, faz crer. Com exceção daqueles mais diretamente afetados, aqueles apanhados com as calças nas mãos, a vasta maioria da esquerda intelectual norte-americana apoiou minha intervenção.
Assim, por exemplo, escrevendo em ''The Nation'', a cronista Katha Pollitt opinou que ''essa demonstração do alto coeficiente de vazio nos estudos culturais, o modo como combina a submissão disfarçada à autoridade com o mais alucinado radicalismo de fachada, é mais do que oportuna''.
A historiadora Ruth Rosen considerou que ''a paródia de Sokal desvendou a hipocrisia praticada por esses pretensos revolucionários culturais. Afirmam querer democratizar o pensamento, mas escrevem propositalmente num jargão exclusivo para uma elite de iniciados. Pretendem que sua obra seria transformativa e subversiva, mas permanecem obsessivamente focados na construção social e linguística da percepção humana, não na dura realidade da vida das pessoas''.
A revista esquerdista ''In These Times'' editorializou que ''a relação entre esses esquerdistas acadêmicos e a sociedade norte-americana se assemelha cada vez mais àquela dos monges clausurados falando e escrevendo para si mesmos em latim. Ao contrário da vociferação conservadora contra a subversão marxista das universidades, o trabalho desses acadêmicos nada ameaça senão a possibilidade de renascimento de uma esquerda intelectualmente vigorosa''.
Todos esses comentadores reconheceram a crise intelectual e estratégica da esquerda e insistiram na necessidade de enfrentá-la com um trabalho sério, baseado nos fatos, na ciência e na razão. Pois a razão e a honestidade intelectual não são propriedade privada nem da esquerda nem da direita.
Num passado não tão distante, as ditaduras militares, desde a Guatemala até a Terra do Fogo, torturavam e assassinavam em nome da ''liberdade'' (a liberdade do lucro, bem entendido). Hoje em dia, o Fundo Monetário Internacional organiza a redistribuição da riqueza dos pobres aos ricos, destruindo as economias do Terceiro Mundo em nome do ''estabilizá-las''. Os sacerdotes do Deus Mercado inventam belos encantamentos para disfarçar seus efeitos sobre os seres humanos.
Não foi por acaso que George Orwell, quem, mais do qualquer outro nesse século, desmascarou e condenou a desonestidade política, viesse de onde viesse, foi sempre um homem da esquerda.
A esquerda começa a reconhecer seus erros, que foram tantos, e a renovar-se intelectualmente. A direita terá a mesma coragem?

Alan Sokal é professor de física da Universidade de Nova York (EUA). Foi professor de matemática na Universidade Nacional Autônoma da Nicarágua (verões de 1986-88). Tem colaborações científicas em diversos países, incluindo o Brasil (Universidade Federal de Minas Gerais).




As razões do relativismo civilizado

Jesus de Paula Assis

Folha de São Paulo, 6 outubro 1996

"Insisto em que todos os escritores que pretendam informar seus leitores fiquem longe da filosofia ou que, pelo menos, não sejam intimidados ou influenciados por causadores de confusão como Derrida..." Paul Feyerabend "Killing Time", cap. 15.

Alan Sokal é um nome em alta nas ciências humanas. Em abril, pregou uma surpreendente peça na revista norte-americana ''Social Text'' na qual, supostamente, pôs a nu a fragilidade do pensamento relativista. A polêmica foi trazida aos leitores da Folha pelo Mais! de 15/09/96. Deixando de lado o pitoresco da história toda, a farsa de Sokal mostra que existe, de fato, ao lado do evidente embuste de uma certa autoproclamada esquerda pós-moderna, uma profunda incompreensão quanto ao que sejam os estudos em filosofia da ciência e qual seu papel para o entendimento da atividade científica.
Primeiro, os fatos. Alan Sokal é professor de física na New York University e remeteu para publicação na revista acadêmica ''Social Text'' um artigo com o incrível título "Transgredindo Fronteiras, Rumo a uma Hermenêutica Transformativa da Gravidade Quântica". Sua pretensa argumentação era que as recentes pesquisas em gravidade quântica, um ramo nascente em física teórica, já teriam profunda influência política libertadora sobre a cultura, pondo definitivamente de lado o que hoje se aceita como método científico (identificado, portanto, com o pensamento conservador). O artigo contém exatas 109 notas de rodapé, nas quais aparecem de Derrida a Paulo Freire. Nenhuma citação foi inventada; todas estão exatamente como figuram nos originais.
Os editores de ''Social Text'' aceitaram o texto para publicação sem reservas. Dias depois, Sokal publicou na revista ''Lingua Franca'' outro artigo, no qual esclarecia que "Transgredindo.." era uma piada.
De fato, apesar das citações corretas, "Transgredindo..." não contém qualquer argumento bem encadeado. São citações esparsas, misturando incorreções científicas e históricas (estas sim, propositadamente inventadas) com a linguagem fátua que caracteriza uma fração do pensamento epistemológico contemporâneo.
Até aí, boa ironia, que não faz mal a ninguém, salvo às incautas vítimas. Mas elas que se danem. O problema começa quando se procura em Sokal informação sobre quem é realmente o objeto da ironia. Aí, a coisa muda de figura. No mesmo saco, aparecem Derrida, Lyotard e Latour, mas também filósofos como Thomas Kuhn e Paul Feyerabend, articuladores, estes sim, de um pensamento relativista "civilizado", diferente do pensamento (se é que a palavra cabe) relativista ensandecido ou propositadamente obscuro dos outros autores.
Sokal _no artigo publicado em ''Lingua Franca''_ argumenta que "teorizar acerca da 'construção social da realidade' não vai nos ajudar a encontrar um tratamento efetivo para a Aids ou a projetar estratégias para evitar o aquecimento global". E dai? Essa constatação trivial invalidaria esses estudos? Não mais do que afirmar, também trivialmente, que estudos em sismologia não vão ajudar a achar a cura para a Aids. Mas Sokal pensa de forma diferente: está sugerindo que nenhum estudo externo sobre a ciência tem sentido.
Para chegar a isso, usa uma estratégia falha. Logo no início de "Transgredindo...", cita Thomas Kuhn e Paul Feyerabend como autores que "duvidaram da credibilidade da metafísica newtoniano-cartesiana", o que é, no mínimo, grosseiro. Daí, conclui que a idéia de que exista um mundo exterior a nossos pensamentos já não pode ser sustentada; liga tudo isso a Derrida, Lyotard, Ross, Latour e companhia, e conclui afirmando que toda essa tradição intelectual nos força a tomar uma nova direção quanto ao que devemos considerar "ciência". "Social Text" engoliu tudo (com gosto, frise-se) e publicou o artigo.
"Transgredindo..." afirma portanto que existe uma tradição coerente que liga Kuhn a Derrida e isso, simplesmente, não é verdade. O fato de os editores de ''Social Text'' ratificarem a existência dessa linha de argumentação (tanto que publicaram o texto) não ajuda, não a torna real.
Uma coisa é dizer que a ciência natural assenta em bases que têm condicionantes históricos e sociais (relativismo civilizado); outra, é dizer que esses condicionantes são totalmente responsáveis pelo conteúdo das asserções científicas (relativismo enlouquecido). Dizer que a ciência acumula resultados, mas que os problemas sobre os quais se debruça não são sempre os mesmos é civilizado; dizer que cada campo de estudo é fechado em si próprio e que não existe qualquer termo de comparação entre eles, devendo todos, portanto, ser julgados em pé de igualdade, é bárbaro. Existe quem defenda essa barbárie, quem também veja machismo na matemática, em afirmações como 1+1=2. Mas frise-se que bárbaros existem em qualquer meio e são uma praga da qual a física também não está isenta.
Na verdade, a peça que Sokal chama de "modesto experimento" é completamente enviesada. ''Social Text'' é uma obscura revista norte-americana, um gueto da pós-modernidade que professa o que se chama acima de relativismo enlouquecido. Do fato de se dizerem relativistas (sem mais adjetivos), não segue que o sejam. Não mais do que a afirmação de alguns políticos de que são marxistas impute automaticamente toda bobagem que digam a Marx. Se Sokal tivesse remetido "Transgredindo..." para uma revista científica de primeira linha (como ''Synthese'' ou ''Social Studies of Science'', só para citar dois exemplos), revistas que aceitam e publicam artigos de tendência argumentativa relativista (civilizada), é quase certo que o destino de suas páginas seria o lixo. Mas isso enfraqueceria seu "modesto experimento". Mas então, que experimento é esse que escolhe um adversário fraquíssimo e obscuro, vence-o e afirma que a vitória implica a derrocada de tudo o que (mesmo remota e enviesadamente) é defendido pelo oponente? Procurando um pouco, não seria difícil para Sokal achar uma pequena revista de física, a qual publicaria um artigo seu eivado de bobagens, unicamente por ser ele professor de uma universidade prestigiosa. E o que isso provaria? Que a física contemporânea deveria ser desacreditada? É evidente que não. O "modesto experimento", assim, deve ser colocado exatamente como é: modesto, modestíssimo. Provou que uma revista obscura e sem importância é também intelectualmente fraca. Parabéns.
Apesar disso, da evidente fragilidade de toda argumentação _isto é, do artigo original, mais o artigo que entrega a farsa_, não faltam entusiastas. Steven Weinberg, Prêmio Nobel de Física, saúda Sokal, dizendo que ele teria desnudado uma perniciosa tendência que mina a ciência contemporânea ("New York Review of Books", 8/8/96 e 3/10/96). Ou seja, desbancado o relativismo (o civilizado sai pelo ralo junto com o resto, claro), quem pode, portanto, com autoridade, falar sobre ciência? Apenas cientistas naturais ou filósofos que concordem inteiramente com eles. É o que Sokal tem em mente quando escreve que "teorizar acerca da 'construção social da realidade' não vai nos ajudar a encontrar um tratamento efetivo para a Aids...". Existe implicada na afirmação uma grosseira confusão entre ciência e estudo sobre ciência. Uma ciência natural (a física ou a biologia) estuda o mundo natural, procura determinar regras que tornem esse mundo compreensível e que tenham certo caráter preditivo. A sociologia da ciência ou a filosofia da ciência não tomam como objeto de estudo o mundo natural, mas a própria atividade científica. Portanto não há nada de surpreendente em que estudos em filosofia ou em sociologia da ciência não tragam a cura para a Aids. O que surpreende é que haja quem se entusiasme com uma conclusão tão pueril.
No fim de contas, o "modesto experimento" acaba sendo usado para invalidar toda uma importante tradição de pesquisa. Se se quer compreender a ciência contemporânea, é preciso levar em conta que o significado da expressão "atividade científica" varia com o tempo. Conforme a época, diferentes são os problemas estudados, diferentes são os métodos usados para pesquisá-los e diferentes são os valores atribuídos a cada enfoque. Se não se levar isso em consideração, corre-se o risco de julgar que o mundo sempre foi visto com os mesmo olhos e que só o presente fornece explicações aceitáveis para os fenômenos naturais. Pacientes estudos históricos foram mostrando essas variações de matiz entre problemas e métodos usados em diferentes épocas e tradições. Esses estudos acumulados pedem alguma explicação: como definir, então, a atividade científica?
Se nem sempre os problemas e os métodos foram os mesmos, deve-se concluir que a imagem em que a ciência natural (mais especificamente, a física) aparece como um contínuo que acumula teorias é falsa e torna-se tarefa importante encontrar algum modelo alternativo para compreender seu desenvolvimento. No extremo oposto, não se pode considerar cada época (ou cada teoria) um todo fechado em si mesmo, incomunicável, pois isso iria de encontro ao fato mais que evidente de que existe uma continuidade histórica de pesquisa científica. É assim razoável supor que o caminho está em encontrar um modelo para o desenvolvimento científico que leve em conta tanto o que existe de comum como o que existe de incomensurável entre diferentes épocas e disciplinas científicas, que veja as continuidades, mas que não deixe de consignar os pontos irredutíveis e intraduzíveis presentes em qualquer transição entre teorias científicas. E esse passo rumo à civilidade _entendida aqui como o esforço honesto para compreender melhor a cultura_ é descartado simplesmente porque alguns grupos de autores são propositadamente obscuros ou delirantes e porque um subgrupo destes caiu em uma bem-tramada emboscada.
Mas devemos ser equilibrados: não apoiar a evidente fatuidade de ''Social Text'' e dos autores que a orbitam, nem se entusiasmar com o modesto experimento de Sokal. E esse ponto de equilíbrio se nutre das boas lições do relativismo. Mas apenas do civilizado.




Sokal, parodista de si mesmo

Olavo de Carvalho

Folha de São Paulo, 21 outubro 1996

De cada nova série de vexames, a esquerda emerge revigorada pelo milagre da ablução verbal

Tendo enviado a uma revista sociológica de esquerda um artigo de puro ''nonsense'' em jargão academês, para ver se o publicavam, o físico Alan Sokal acrescentou ao seu currículo o título de humorista. A ''Social Text'', caindo no engodo, ainda se melou toda ao procurar se justificar.
Mais que para simples divertimento, a proeza serviu para mostrar a inépcia intelectual da esquerda acadêmica. Roberto Campos, em artigo publicado na Folha (22/9), sublinhou o valor do experimento, que evidenciara a nudez real de uma das comunidades mais pretensiosas deste mundo. É surpreendente que agora apareça Alan Sokal dizendo (6/10) que Campos o interpretou pelos olhos ''de um cego preconceito''.
''A paródia'', proclama Sokal, ''não teve a intenção de ridicularizar a esquerda, mas de fortalecê-la pela crítica de seus excessos. Com exceção daqueles mais diretamente afetados _daqueles apanhados com as calças na mão_, a vasta maioria da esquerda intelectual norte-americana apoiou minha intervenção.'' O grosso da esquerda ''começa a reconhecer seus erros, a se renovar intelectualmente'', e Campos é que distorceu tudo ao enxergar no caso um vexame global.
Mas essa argumentação é um tanto bizarra. Um autor que desejasse edificar o pecador pela crítica de seus excessos, sem torná-lo alvo de riso, faria dele objeto de exortação, de análise ou coisa assim. Jamais de paródia, um gênero que consiste precisamente em expô-lo ao ridículo pela imitação de seus trejeitos. Quanto a saber se o objeto da paródia sairá enfraquecido ou fortalecido, nenhum comediógrafo experiente buscaria controlar a esse ponto um efeito que depende inteiramente da livre reação moral da vítima. Ela pode aproveitar o estímulo para se regenerar ou então torná-lo ocasião de se expor a um ridículo maior ainda, exatamente como fez o diretor de ''Social Text'', arrastando de cambulhada, como bem viu Campos, muitas revistas congêneres. Se o ridículo produzido por Sokal foi impremeditado, isso só mostra que o humorista principiante está sujeito ao risco de se tornar personagem, no papel daquele marinheiro que, na privada, apertava o botão da descarga no preciso instante em que o navio era atingido por um torpedo.
Que alguns esquerdistas aplaudam ''ex post facto'' a paródia não prova que estejam livres dos vícios que ela denuncia. Prova apenas que não se solidarizam com colegas de militância apanhados em flagrante delito de vexame. Entregar os anéis para salvar os dedos não é nenhuma renovação intelectual, é apenas uma velha esperteza.
A esquerda, com efeito, tem vivido de denunciar seus próprios erros desde o dia em que, na Revolução Francesa, reconheceu a utilidade de guilhotinar um guilhotinador _um ato que elevou às nuvens o prestígio do movimento e lhe deu cacife para continuar guilhotinando a quem bem entendesse. Desde então, cada nova geração do esquerdismo nasce da orgulhosa proclamação do descrédito da anterior. O próprio marxismo emerge de uma crítica arrasadora dos erros da esquerda. De Robespierre a Alan Sokal, as moscas mudam, mas _como direi?_ a caravana passa: de cada nova série de vexames, horrores e fracassos, a esquerda emerge revigorada pelo milagre da ablução verbal e imbuída de seu direito a infindáveis créditos de confiança, tanto mais renováveis quanto mais o débito entra sempre na conta da administração anterior. Sokal é apenas mais um oficiante do antigo ritual cíclico em que a esquerda se realimenta, dialeticamente, da sua própria negação.
Para cúmulo, Sokal procura minimizar o alcance de sua própria crítica, afirmando que só atacou uma minoria. Mas como explicar que a crítica a uma fração minoritária tenha provocado tamanha celeuma senão por essa fração ser representativa do todo? Sokal admite que seu artigo citava um rol de bobagens ditas ''por proeminentes intelectuais'' _e ninguém é proeminente por receber somente o aplauso da minoria. Derrida, Foucault, Lyotard, Lacan, Deleuze não são objetos de culto de um miúdo igrejório provinciano: são ídolos da ''intelligentsia'' mundial. Ridicularizados, comprometem necessariamente a falsa imagem de respeitabilidade intelectual da esquerda como um todo. Não há escapatória.
Sokal poderia ter preservado ao menos sua própria respeitabilidade, se não mostrasse ter a tradicional propensão da esquerda a julgar seus atos apenas pelas intenções alegadas, pulando fora da responsabilidade pelos efeitos reais, por mais previsíveis que sejam. Mas ele preferiu superar, como humorista involuntário, seus dons de parodista. Pois o ar de inocência com que um autor de paródia declara não ter tido intenção de ridículo faria dele um autêntico ''pince-sans-rire'', se não soubéssemos que ele acredita no que diz, e que, no caso, acreditar no que diz é admitir que não sabe o que faz.

Olavo de Carvalho, 49, jornalista, é autor de ''O Jardim das Aflições: Ensaio sobre o Materialismo e a Religião Civil'' e de ''O Imbecil Coletivo: Atualidades Inculturais Brasileiras''.







O rei está nu

Roberto Fernández

Folha de São Paulo, Jornal de Resenhas, 11 abril 1998

Resenha de Impostures intellectuelles, por Alan Sokal e Jean Bricmont (Paris, Odile Jacob, 1997)

"Impostura", de acordo com o dicionário, significa "embuste, engano artificioso; afetação de grandeza; superioridade, orgulho, confinante com a empáfia e a bazófia". Os cientistas Alan D. Sokal (New York University) e Jean Bricmont (Université Catholique de Louvain, Bélgica) sustentam que intelectuais de renome, associados à corrente convencionalmente conhecida como "pós-modernismo", têm incorrido sistematicamente em "abusos reiterados de conceitos e termos provenientes das ciências físico-matemáticas", a ponto de constituírem verdadeiras imposturas intelectuais. Podem ser identificados quatro tipos de abusos: (1) "falar abundantemente de teorias das quais se tem, no máximo, uma vaga idéia"; (2) "importar noções das ciências exatas para as ciências humanas sem dar a menor justificação empírica ou conceitual"; (3) "exibir uma erudição superficial ao jogar, sem escrúpulos, termos especializados na cara do leitor, num contexto em que eles não têm pertinência alguma"; e (4) "manipular frases desprovidas de sentido e se deixar levar por jogos de linguagem". Neste polêmico livro, os autores fundamentam suas teses mediante numerosas citações, organizadas por autor (Lacan, Kristeva, Irigaray, Latour, Baudrillard, Deleuze e Guattari e Virilio) e por tema (caos, teorema de Gõdel, relatividade restrita).
Sokal e Bricmont não se atêm a pequenos erros ou imprecisões isoladas ou àquelas próprias de um uso metafórico no discurso literário ou poético. Pelo contrário, nos autores analisados, as teorias e conceitos científicos jogam um papel não marginal, seja porque são usados nos fundamentos das suas teorias (Lacan e Kristeva), seja porque são precisamente o objeto de estudo (Irigaray, Latour, Deleuze e Guattari); em todo caso, seu uso contribuiu para que fossem elogiados por seu "rigor", "extrema precisão", "erudição surpreendente" e juízos similares.
A lista de exemplos é longa e bem documentada. Atribui-se ao psicanalista Jacques Lacan o abuso de tipo (2), quando declara, sem dar nenhuma fundamentação lógica ou empírica, que o toro (estrutura topológica correspondente a um anel) é "exatamente a estrutura do neurótico" e que outras estruturas topológicas correspondem a outras patologias mentais. Seu uso dos números imaginários é declaradamente feito como metáfora, mas conduz a afirmações curiosas como: o "órgão eréctil (...) é igualável à raiz de -1". Os textos em que Lacan recorre à lógica matemática, por outra parte, são considerados exemplos dos abusos (2) e (3) ao mesmo tempo: "Lacan exibe diante de não especialistas seus conhecimentos de lógica matemática; mas (...) a ligação com a psicanálise não está sustentada por lógica alguma". Sokal e Bricmont absolvem Lacan dos abusos de tipo (1), ainda que em certos textos ele apresente uma definição incorreta de conjuntos abertos, definições sem sentido da noção de limite e de conjuntos compactos, e confunda números irracionais com imaginários.
Os trabalhos sobre linguística e semiótica de Julia Kristeva ilustram também exemplos de abusos de tipo (2) e (3). Conceitos matemáticos delicados são introduzidos sem que se explique sua possível relação com a linguística e revelando óbvia falta de compreensão: o axioma da escolha, que justamente permite provar a existência de conjuntos sem construi-los explicitamente, é invocado como implicando uma "noção de construtividade"; a hipótese do contínuo é mencionada, se bem que o conjunto de todos os livros possíveis seja apenas enumerável, e o muito popular teorema de Gõdel é interpretado exatamente ao contrário. A intelectual feminista Luce Irigaray, por sua vez, num ensaio sobre o "subdesenvolvimento" da mecânica dos fluidos (identificados com a feminilidade), confunde a dificuldade matemática para obter soluções das equações de Navier-Stokes com a "impotência da lógica" e demonstra não compreender que elas são derivadas usando aproximações que excluem sua aplicação a escalas moleculares.
Jean Baudrillard, Gilles Deleuze, Félix Guattari e Paul Virilio valem-se de abusos de tipo (1) e (4). Sokal e Bricmont selecionam extensas citações, inclusive uma de quase três páginas, em que se justapõem numerosos termos científicos (atrator estranho, exponencial, fractal, caos, singularidade, energia potencial, superfície topológica, função, partícula etc.), em parágrafos intrincados e sem concatenação lógica de argumentos, num jogo de analogias baseadas nos diferentes sentidos vagamente atribuídos a esses termos na linguagem comum.
Os escritos de Virilio são, talvez, os mais abertos à sátira. Por exemplo, no que diz respeito ao papel das velocidades, ele confunde velocidade com aceleração e quantidade de movimento com a equação logística. Mas Deleuze e Guattari providenciam ainda outro tipo de exemplo importante. Em suas análises de filosofia da matemática, eles retomam confusões devidas a Hegel (classificação errada de frações, noção de função superada há 150 anos) e fazem uma descrição obscura e complicada do cálculo infinitesimal, enquanto marcam a necessidade de uma "exposição rigorosa" de seus princípios. Aparentemente, eles ignoram que tal exposição existe desde o início do século passado.
O capítulo dedicado a Bruno Latour é particularmente revelador, pois ilustra os riscos de se tentar uma análise profunda a partir de uma compreensão superficial. Com o propósito de demonstrar que a teoria da relatividade restrita é uma construção social, ele faz uma leitura semiótica do livro "Relativity", de Einstein, no qual se apresentam os argumentos baseados em trens, observadores e sinais luminosos, que todo estudante de física conhece bem. Latour engana-se e centra sua análise em elementos puramente pedagógicos da exposição de Einstein. Por exemplo, atribui grande importância à existência de três sistemas de referência a uma só vez (isso pode acontecer ocasionalmente numa exposição didática, mas a teoria trata da relação entre dois sistemas) e ao fato de os observadores serem humanos (eles são humanos nos exemplos do livro de Einstein, mas na maioria dos experimentos e fenômenos os "observadores" são instrumentos, discos de computador e até partículas elementares), e confere um papel privilegiado ao "narrador" (a teoria não tem nenhum sistema privilegiado nem "narrador", se bem que a exposição pedagógica precise de um).
De fato, a teoria da relatividade conta com uma rica história de mal-entendidos por parte de filósofos. Os que se originam na interpretação errada de Bergson são especialmente persistentes, como fazem notar Sokal e Bricmont num capítulo muito claro e explícito. Henri Bergson, por razões puramente filosóficas, recusou-se a aceitar as noções einsteinianas de simultaneidade e tempo próprio e procurou estender o princípio de relatividade às acelerações. Seus argumentos conduzem a predições que contradizem experiências atualmente conhecidas. No entanto, os erros bergsonianos reaparecem na obra de filósofos posteriores, como Jankélevich, Merleau-Ponty e Deleuze.
A teoria do caos é outra vítima de maltrato em livros e ensaios bastante difundidos. Sokal e Bricmont expõem e clarificam os erros mais típicos: o caos, quer dizer, a sensibilidade às condições iniciais, não marca nenhum "limite" ou "cul de sac" da ciência; pelo contrário, tem aberto novas possibilidades de pesquisa. O caos não significa o fim do determinismo (aparece em equações perfeitamente determinísticas), ainda que obrigue a adotar um sentido probabilístico da preditividade comparável ao adotado em mecânica estatística no último século. O caos não significa um descrédito à mecânica newtoniana, mas sim seu renascimento. De fato, esta última, considerada o paradigma do "pensamento linear", leva a equações não-lineares, que algumas vezes exibem caos, se bem que a mecânica quântica, considerada mais próxima do "pensamento não-linear" preconizado pelos pós-modernistas, seja exatamente linear.
O livro é escrito de forma direta, incisiva, sem ambiguidades, pedantismo, paráfrases ou elipses. Sokal e Bricmont não se interessam pelo vôo literário nem pelas sutilezas acadêmicas; querem apresentar seus pontos sem dar lugar a dúvidas. Explicam pacientemente os aspectos científicos (com ajuda de uma lista de referências que pode ser de grande utilidade para os interessados em iniciar-se nesses temas) e expõem com franqueza suas intenções: "defender os cânones da racionalidade" e da honestidade intelectual. Sua posição filosófica contraria o relativismo cognitivo e questiona as teses de Popper, Quine, Kuhn e Feyerabend (que nutrem o ceticismo epistemológico) e do "programa forte" em sociologia da ciência. Essa franqueza algumas vezes chega ao limite da agressão verbal e introduz no livro um tom quase fundamentalista, que pode provocar discussões desnecessariamente marcadas pela emoção.
Mas o legado mais importante deste livro é, precisamente, o catálogo de exemplos de erros, de falta de compreensão e até de preguiça intelectual de pensadores contemporâneos, quando analisam o conhecimento científico recente e não tão recente. É um mostruário sólido, convincente, irrecusável, que tem existência independente das opiniões dos compiladores. Está ali para que cada um julgue. Compreensivelmente, dentro da polêmica gerada pelo livro, ninguém põe em dúvida o fato de que os erros apontados são realmente erros. As críticas referem-se antes à relevância desses escritos dentro da obra dos autores considerados e às intenções finais de um livro como este. Sokal e Bricmont esclarecem que não julgam o resto das obras dos autores analisados, mas apenas as referências à física e à matemática (todavia, gostariam que outros, mais competentes, julgassem tendo em conta as imposturas apontadas), nem discutem se as imposturas são premeditadas ou de boa fé (o título do livro fala de "imposturas", não de "impostores"). E, se bem Sokal e Bricmont confessem intenções filosóficas e até políticas, elas não vêm ao caso.
Os exemplos no livro falam por si. Para alguém com uma mínima formação científica, sugerem diversas questões para debate. Será que o hiato entre as "duas culturas" de Snow foi ampliado ou fossilizado? Será que todo um setor da intelectualidade, cuja atividade se baseia no discurso, nas argumentações teóricas, no confronto de pontos de vista, está perdendo a capacidade de compreender o método científico submetido ao controle inexorável dos experimentos? Será que a analogia injustificada e as "provas" por combinação de frases sugestivas são uma metodologia aceitável nas humanidades? Será que os argumentos baseados na precedência, inerentes às pesquisas nas humanidades, degeneraram-se num princípio de autoridade que acha os erros de Hegel mais confiáveis que 150 anos de desenvolvimento matemático? (Não é isso uma regressão aos tempos em que, quando as observações discrepavam da doutrina de Aristóteles, se preferia esta última?) Ou será que um verdadeiro menosprezo pela lógica e pelos desenvolvimentos científicos tem sido instalado em estratos visíveis da intelectualidade, perpetuado por círculos na mídia inclinados a modas ou não qualificados e amparado na falta generalizada de educação científica, na indiferença (próxima ao pedantismo dos próprios cientistas) e numa tradição humanista de tolerância e não comprometimento, que deixa nas mãos do tempo a depuração do que vale?
É indubitável que o trabalho de Sokal e Bricmont abre a oportunidade para um debate muito saudável e necessário, o qual, se for desenvolvido com grandeza, pode inclusive catalisar uma aproximação entre a ciência e as humanidades, em sua busca comum da compreensão da natureza e do espírito humano.

Roberto Fernández é matemático, pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da USP e membro da comissão organizadora do simpósio "Visões de Ciência: Encontros com Sokal e Bricmont", que será realizado na USP nos próximos dias 27 e 28 de abril.









Descomposturas intelectuais

Jacques Derrida

especial para o "Le Monde" [Disponível também no francês original.]

Folha de São Paulo, 19 abril 1998
O "Le Monde" me pergunta qual comentário eu faria ao livro de Alan Sokal e Jean Bricmont _"Imposturas Intelectuais"_, presumindo que nele eu sou menos atacado do que outros pensadores. A minha resposta é: tudo isso é triste, não é mesmo? Primeiro, para o pobre Sokal. O seu nome está associado a um conto do vigário ("the Sokal's hoax" _o embuste Sokal_, como se diz nos Estados Unidos) e não a trabalhos científicos. Triste também porque a oportunidade de uma reflexão séria parece desperdiçada, ao menos num espaço amplamente público, que merece melhor destino.
Teria sido interessante estudar escrupulosamente as chamadas metáforas científicas, o seu papel, o seu estatuto, os seus efeitos nos discursos incriminados. Não somente nos "franceses"! E não somente nesses franceses. Isso exigiria que lêssemos seriamente, em sua estratégia e arranjo teóricos, um sem-número de discursos difíceis. Isso não foi feito.
Quanto a meu modesto "caso", ele é ainda mais burlesco, para não dizer extravagante. No início da impostura, nos Estados Unidos, depois do envio do embuste de Sokal para a revista "Social Text", eu fui, a princípio, um dos alvos preferidos, em particular nos jornais (eu teria muito a dizer sobre tal assunto). Pois era preciso, a todo custo, fazer o possível para desacreditar de imediato o "crédito", julgado exorbitante e embaraçoso, de um professor estrangeiro. Ora, toda a operação repousava, então, sobre algumas palavras de uma resposta improvisada num colóquio ocorrido há mais de 30 anos, em 1966, no curso da qual eu retomava os termos de uma pergunta de Jean Hyppolite. Nada mais, absolutamente nada! Além disso, a minha resposta não era facilmente atacável.
Inúmeros cientistas chamaram a atenção para a farsa em publicações acessíveis nos Estados Unidos, como Sokal e Bricmont parecem reconhecer hoje _e com que contorções!_ em seu livro destinado ao público francês. Fosse aquela curta observação discutível _o que eu facilmente aceitaria considerar_, ainda assim teria sido preciso demonstrá-la e discutir as suas consequências em meu discurso. Isso não foi feito.
Eu sou sempre econômico e prudente no uso da referência científica, e mais de uma vez tratei desse problema. Explicitamente. As várias passagens em que falo, de fato, e precisamente, sobre o "indecidível" e mesmo sobre o teorema de Gõdel não foram localizadas nem visitadas pelos censores. Tudo faz pensar que eles não leram o que era preciso ler para tomar pé das dificuldades. Sem dúvida, eles não foram capazes. Em todo caso, não o fizeram.
Uma das falsificações que mais me surpreenderam foi dizer que, hoje, eles nunca tiveram nada contra mim ("Libération", de 19/10/97: "Fleury e Limet nos reprovam um ataque injusto contra Derrida. Ora, tal ataque inexiste"). Agora, eles me relacionam precipitadamente na lista dos autores poupados ("Pensadores célebres como Althusser, Barthes, Derrida e Foucault encontram-se essencialmente ausentes de nosso livro"). Ora, esse artigo do "Libération" traduz um artigo do "Times Literary Supplement", no qual meu nome (e apenas ele) havia sido oportunamente excluído da mesma lista. Aliás, é a única diferença entre as duas versões. Sokal e Bricmont acrescentaram o meu nome na França, no último momento, à lista dos filósofos honoráveis, a fim de responder a objeções embaraçosas: tudo como manda o figurino do contexto e da tática! E do oportunismo! Esses indivíduos não são sérios.
Quanto ao "relativismo" que, dizem, os inquietava _no rigoroso sentido filosófico da palavra_, não há traço dele em minha obra. Nem de uma crítica da razão e das Luzes. Antes pelo contrário. O que eu levo mais a sério, em contrapartida, é o contexto mais amplo _americano e político_, que não posso abordar aqui, no interior desses limites; e, precisamente, os problemas teóricos foram também pifiamente abordados.
Tais debates têm uma história complexa: bibliotecas de trabalhos epistemológicos! Antes de opor os "eruditos" aos outros, eles dividem o próprio campo científico. E o do pensamento filosófico. Embora por vezes me divirta, levo a sério os sintomas de uma campanha, ou mesmo de uma caça, em que os cavaleiros mal treinados certas vezes têm dificuldades de identificar a presa. E, antes de tudo, o próprio terreno.
Qual é o interesse daqueles que lançaram essa operação num certo mundo universitário e, muitas vezes perto dele, em livros ou na imprensa? Um semanário publicou duas imagens minhas (foto e caricatura) para ilustrar todo um "dossiê" em que meu nome não figurava uma única vez! Isto é sério? É honesto? Quem tinha interesse em se precipitar sobre uma farsa, em vez de participar do trabalho de que ela tristemente tomou o lugar? Iniciado há tempos, esse trabalho prosseguirá em outro lugar e de outro modo _é o que espero_ com toda a dignidade: à altura do que se acha em jogo.
Jacques Derrida é filósofo e diretor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (Paris). Autor de "Espectros de Marx" (Relume-Dumará) e "Gramatologia" (Perspectiva).

Tradução de José Marcos Macedo, corrigida por Alan Sokal.





Uma crítica sem fundamento

Alan Sokal e Jean Bricmont

especial para o "Le Monde" [Disponível também no francês original.] 

Folha de São Paulo, 19 abril 1998

Não é necessário responder às críticas de Jacques Derrida sobre nosso livro _"Imposturas Intelectuais"_, pois ele de modo algum as formula em seu artigo. Ele se contenta em nos lançar ao rosto expressões pejorativas _ "oportunidade de uma reflexão séria desperdiçada", "não são sérios", "cavaleiros mal-treinados", "censores"_, sem apontar um único erro em nosso livro ou criticar uma única de nossas análises. Aliás, desde a publicação do livro, assistimos à repetição do mesmo cenário: nossos detratores não formulam nenhuma crítica concreta; eles admitem implicitamente que aquilo que dizemos é verdadeiro, mas explicam que, por várias razões, não fica bem dizê-lo.
Uma vez que Jacques Derrida consagra a maior parte de seu artigo a defender-se contra um ataque que, de nossa parte, inexiste, talvez valha a pena esclarecer a relação (tênue) que existe entre ele e nosso livro. Uma antiga observação de Derrida a propósito da relatividade de Einstein é, de fato, citada na paródia de Sokal. Ora, o objetivo dessa paródia era, entre outros, zombar do tipo de discurso, muito frequente no pós-modernismo norte-americano, que consiste em citar as obras de "mestres" como se substituíssem o argumento racional. Como os textos de Derrida e de Lacan, assim como os enunciados mais subjetivistas de Bohr e de Heisenberg sobre a interpretação da mecânica quântica, fazem parte das referências preferidas dessa microcultura, eles são um Cavalo de Tróia ideal para penetrar em sua cidadela.
Mas nosso livro, ao contrário da paródia, possui um alvo rigidamente limitado: o abuso sistemático de conceitos e de termos provenientes das ciências físico-matemáticas. Jacques Derrida não entra nessa categoria. Dizemos na introdução: "Embora o texto de Derrida citado na paródia de Sokal seja bastante divertido, ele parece isolado em sua obra; não incluímos, assim, um capítulo sobre Derrida neste livro". De resto, previnimos o leitor contra o "amálgama entre os procedimentos, muito diversos, dos autores" que discutimos; isso vale, a fortiori, para os autores que não discutimos, tais como Derrida. Ele tem razão, portanto, de se queixar quando a mídia, ao resenhar nosso livro, acrescenta às vezes a sua foto; mas a crítica deve ser dirigida aos jornalistas, e não a nós, que fomos os mais claros possíveis.
Estamos de acordo tanto para deplorar os amálgamas de que Derrida foi vítima quanto para deplorar os amálgamas que foram feitos entre a nossa crítica, que se atém à clareza e ao rigor _qualidades que não têm nenhuma coloração política_, e as correntes politicamente reacionárias, às quais somos totalmente estranhos e, de fato, firmemente opostos. Criticar a invocação abusiva do axioma da escolha não é a mesma coisa que atacar a segurança social.
Derrida nos faz somente uma crítica concreta: ele aponta algumas diferenças _e uma que lhe diz respeito_ entre os artigos que publicamos no "Libération" (18-19/10/97) e no "Times Literary Supplement" (17/10/97). Ele conclui que se trata de um "oportunismo" desonesto: dizer uma coisa aos francêses e uma outra aos inglêses. Infelizmente, a verdade é bem mais banal. No "Libération", nós escrevemos: "Não criticamos de forma alguma toda a filosofia francesa contemporânea, mas só abordamos os abusos dos conceitos de física e de matemática. Pensadores célebres como Althusser, Barthes, Derrida e Foucault são esencialmente ausentes de nosso livro". Mas o editor do "Times Literary Supplement" nos pediu para formular essa última frase de forma afirmativa; nós a modificamos, então, para: "Pensadores célebres como Althusser, Barthes e Foucault (...) aparecem em nosso livro exclusivamente num papel menor, como admiradores dos textos que nós criticamos". Se omitimos Derrida nessa última lista, é pelo fato de que ele não aparece em nosso livro, nem sequer nesse papel menor! Notemos, de passagem, que a lista dos "excluídos" poderia ser muito mais longa: Sartre, Ricoeur, Lévinas, Canguilhem, Cavaillès, Granger e inúmeros outros se encontram totalmente ausentes de nosso livro. Nós atacamos uma forma de argumentação (ou de intimidação) que abusa de conceitos científicos, e não principalmente uma forma de pensamento.
Para terminar, repitamos pela enésima vez que absolutamente não nos opomos ao simples uso de metáforas, como parece crer Max Dorra, de quem o "Le Monde" publicou simultaneamente o ponto de vista. Não censuramos ninguém por utilizar termos correntes como "rio" ou "caverna" e nem mesmo termos que têm sentidos múltiplos, como "energia" ou "caos". Criticamos o uso de termos estritamente técnicos, como "conjunto compacto" ou "hipótese do contínuo", fora de seus contextos e sem a explicação de sua pertinência. Após tê-lo sublinhado tantas vezes _no livro e nos inúmeros debates que se seguiram_, é triste ver nossos detratores repetir as mesmas trivialidades sobre o "direito à metáfora", sem se darem o trabalho de defender um único dos textos que nós criticamos.

Alan Sokal é professor de física na Universidade Nova York.
Jean Bricmont é professor de física teórica na Universidade de Louvain (Bélgica).

Tradução de José Marcos Macedo, corrigida por Alan Sokal.








Quinze minutos de notoriedade

Bento Prado Jr.

Folha de São Paulo, Jornal de Resenhas, 9 maio 1998

"'Realismo', 'idealismo' etc., já são, de antemão, nomes metafísicos. Isto é, indicam que seus partidários acreditam poder declarar algo determinado sobre a essência do mundo."
"Na filosofia não podemos cortar uma doença do pensamento. Esta tem de seguir o seu curso natural, e a cura lenta é o mais importante (Eis por que os matemáticos são tão maus filósofos)". Wittgenstein

O panfleto de A. Sokal e J. Bricmont é escrito com fluência e não lhe falta graça (embora amiúde involuntária), para quem simpatiza com o estilo agressivo e iconoclasta, inevitável na prática da crítica da cultura. Ao contrário das pessoas, que são objeto de respeito por definição, os estilos culturais transformam-se em fetiches quando protegidos pela aura do respeito. Deixemo-nos levar, portanto, pelo verdor da verve juvenil e alegre (falo aqui apenas do estilo, já que ignoro a idade dos professores das universidades de Nova York e de Louvain), que torna tão fácil a leitura deste pequeno livro, mesmo para aqueles que ainda não abandonaram os bancos escolares.
Tudo começou (este livro é o último episódio de um espetacular escândalo intelectual, que ferveu na mídia internacional: "New York Times" , "Le Monde" etc.) com um formidável passa-moleque aplicado com muito senso de oportunidade por Sokal a uma respeitável revista americana de "cultural studies", "Social Text". Sob um título perfeitamente cômico ("Transgredir as Fronteiras: Em Direção de uma Hermenêutica Transformativa da Gravitação Quântica"), que já de si implica em vários contra-sensos, publicou um ensaio em que parodia o estilo do pensamento "pós-moderno", de origem francesa, que teve mais eco nos "campi" norte-americanos do que no resto do mundo, produzindo intencionalmente um enxurrilho de sandices, onde os conceitos da física, da matemática e da lógica são sistemática e literalmente massacrados.
O mistério de como um texto visivelmente nulo foi aceito para publicação por uma boa revista (qualidade reconhecida por Sokal, isto é, pelo próprio autor do embuste que a expôs ao ridículo) permanece inteiro, a despeito das múltiplas declarações posteriores das partes em litígio, e não seria sensato tentar deslindá-lo aqui (1). O que nos interessa é tentar compreender o sentido e o alvo dessa impostura, a partir do que é exposto em "Imposturas Intelectuais" (2).
Qual o alvo visado pela paródia desmoralizadora? Sokal e Bricmont o definem como a "nebulosa pós-moderna". E é preciso reconhecer que essa empresa não é destituída de interesse (senão para a filosofia, pelo menos para a sociologia da cultura e das instituições pedagógicas). É impossível não reconhecer, na filosofia (e em seus efeitos nas ciências humanas) dos últimos 30 anos, a presença mais ou menos ubíqua de uma retórica sibilina e desconcertante. De fato, a incontornável obliquidade da linguagem filosófica (alusiva por essência) é elemento propício à proliferação da desenvoltura, do tom "grand seigneur" que se permite liberdade sem limite na manipulação de conceitos científicos, sem qualquer respeito pelas condições de seu uso preciso ou pela sua mera significação. O ridículo é frequente e a antologia levantada pelos dois autores poderia ser muito ampliada. O estilo da "dissertation française" (3) não é imune à diluição retórico-literária, como se vê na narrativa de Lévi-Strauss (em "Tristes Trópicos" ) da ruptura do jovem "agregé" de filosofia com o blablablá de sua disciplina de formação e sua conversão à pesquisa empírica na antropologia.
Isto dito, vejamos como é definido esse alvo. Se a expressão "nebulosa pós-moderna" é um bom achado literário e promete efeitos cognitivos, o alvo é definido, ele mesmo, de maneira muito nebulosa: trata-se da nebulosa "pós-estruturalista" ou "desconstrucionista" (A. Bloom era mais preciso, falando de pensamento parisiense "pós-sartreano"). Mas a névoa é ainda mais espessa, já que inclui quase toda epistemologia e mesmo a filosofia de língua inglesa _o pobre Quine arca com a responsabilidade de desligar a ciência do real e insulá-la numa esfera puramente linguística ou simbólica, abrindo curso à vaga do relativismo e do irracionalismo. Descobrimos que Quine é desconstrucionista. Com ele, entram na baila nebulosa, também, Merleau-Ponty e Bergson (um Bergson pós-moderno? só se for verdadeira a perspectiva pós-moderna que suprime a história). Tudo isso culminando _como numa sequência lógica_ no abuso feminista de conceitos físicos para amparar uma teoria da diferença sexual que ataca o "falogocentrismo" de uma perspectiva emancipatória. Assim alinhados (4), os textos criticados (convenhamos, de natureza diferente e importância desigual) compõem uma espécie de "samba do crioulo doido". Mas o que é mais cômico? A pergunta de L. Irigaray: "A equação E = Mc2 é uma equação sexuada?". Ou essa arqueologia da Desrazão que explica o delírio epistemológico-cosmológico de um certo feminismo a partir dos "equívocos" lógico-semânticos de Quine? Aparentemente, de fato, há crise da Razão.
É o que se pode ver no momento mais sério e original (mas o mais fraco) do livro, isto é, o "intermezzo" filosófico do capítulo três, em que os autores exprimem sua '"filosofia da ciência", em contraposição ao que consideram o "relativismo" hegemônico na epistemologia. Pontuado pela evocação elegíaca do "racionalismo moderno" (que não seria nem elementarmente empirista, nem arrogantemente racionalista, mas algo de intermédio, próximo do bom senso comum) ou do espírito da "Aufklãrung", esse novo programa insiste em que o conhecimento científico deve, ao mesmo tempo, ter estrutura lógica e base empírica. Quem jamais disse o contrário? Nem Feyerabend.
O empirismo puro e bruto não poderia servir para quem pensa em física teórica, é claro. Mas Sokal e Bricmont nada podem conceder ao lado contrário, que insiste na construção lógica da teoria científica, já que os levaria, contra-vontade, na direção da melhor epistemologia. Daí recorrerem à transição "razoável" do conhecimento comum ao conhecimento científico: a ciência corta com o senso comum, mas não completamente. Mas brecando a tempo, pois nessa direção chegariam a uma perspectiva pragmatista, também suspeita de subjetivismo. A fórmula seria: um bom e saudável pragmatismo sem filosofia pragmatista, ciência sem pensamento. E, sobretudo, sem compromisso com a filosofia da lógica, que poderia nos afastar do mundo real com meros "jogos de linguagem" (curiosamente os inimigos da retórica francesa são, pelas mesmas razões, inimigos da filosofia analítica de língua inglesa).
Menos original (já que no início do século muita asneira foi dita no mesmo sentido) é o capítulo 11 que consagram a "um olhar sobre a história das relações entre ciência e filosofia: Bergson e seus sucessores". O que os autores não revelam (não sabem?) é que Bergson reconheceu que seus argumentos técnicos, contra a interpretação filosófica que Einstein deu à teoria da relatividade, estavam literalmente errados (5). E proibiu, em consequência, no início da década de 30, a republicação de " Duração e Simultaneidade". Falar, portanto, de um erro tenaz que se perpetua é simplesmente contraverdade ou falsificação. Seria, este caso, penso, pelo contrário, um exemplo de boa relação entre filosofia e ciência, ao contrário do que dizem os autores. Que, aliás, desencaminhados por seus informantes, não leram as melhores páginas que Merleau-Ponty consagrou à questão Bergson-Einstein. Deveriam ler os ensaios "Bergson Se Fazendo" e "Einstein e a Crise da Razão". Aí poderiam ver que a questão, de que tratam Bergson e Merleau-Ponty, não é apenas a do mau uso da ciência pelos filósofos (embora tratem também e bem desse assunto), mas sobretudo do mau uso da filosofia pelos cientistas. Ou, pelo menos, de um certo dogmatismo que, por exemplo, leva Einstein a dizer: "Não há, portanto, um tempo dos filósofos" (6).
Numa palavra, este livro põe em ridículo, muitas vezes com razão, um uso obscuro da linguagem por parte de filósofos. De fato, águas turvas podem dar ilusão de profundidade. No caso deste livro, ao contrário, as águas claras não escondem seu fundo raso. Os autores queriam jogar um paralelepípedo no ventilador e acabaram botando fogo num rojão que deu chabu. Mas ganharam os 15 minutos de notoriedade que a sociedade do espetáculo garante democraticamente a todo mundo. No que confirmam o velho Hegel (que relegaram ao inferno do "irracionalismo") que identificava, no coração da dialética da "Aufklãrung" a luta mortal pelo reconhecimento ou pelo puro prestígio. Ou o próprio Nietszche _nome polêmico neste contexto_ que elaborou uma fina fenomenologia do ressentimento.

Notas
1. Mas é razoável pensar que o "prestígio da física no mundo contemporâneo" que os autores sublinham em seu panfleto, não foi indiferente ao êxito do embuste. Prova de que não basta querer assumir uma postura de crítica face à cultura e à sociedade contemporâneas para se livrar de todas as formas de fetichismo.
2. Não sei se Sokal qualificaria sua própria artimanha para enganar os editores de "Social Text" de impostura intelectual. O dicionário Aurélio assim define a palavra "impostura": "1. artifício para iludir... 2. fingimento... 3. vaidade ou presunção extrema; falsa superioridade... etc.".
3. Pois é bem disso que se trata: o alvo dos autores é a filosofia francesa que, segundo eles, veio a corromper o bom funcionamento das universidades americanas na área das humanidades: eles não deixam de brincar com a fácil transição de "haute culture" ("alta cultura") para "haute couture" ("alta costura"). No fundo, as "humanidades" entendidas como frivolidade e luxo desnecessário, fustigadas por um espírito frugalmente puritano e pragmático. Trata-se de uma estratégia de defesa de território que não é nova. Já em 1987 Allan Bloom escrevia em seu "The Closing of American Mind": "A literatura comparada caiu amplamente nas mãos de um grupo de professores que foram influenciados pela geração pós-sartreana dos heideggarianos parisienses, em particular Derrida, Foucault e Barthes. Esta escola é chamada de desconstrucionismo e é o último, previsível, estágio da supressão da razão e da negação da possibilidade da verdade em nome da filosofia". A tese é a mesma, embora enunciada de uma perspectiva liberal-conservadora, numa atmosfera "high brow", enquanto a de Sokal e de Bricmont, que são de esquerda (o primeiro, com estadia militante na universidade da Nicarágua sandinista), soa um pouco "red neck" uma espécie de estilo monsieur Homais das montanhas rochosas.
4. Na verdade, os autores não são os únicos responsáveis pelo estabelecimento desse "corpus" estapafúrdio. Na abertura do livro, citam 64 nomes de intelectuais que os auxiliaram na compilação do "corpus" de referência. Nesse "corpus", onde Hegel está presente, notamos a ausência inexplicável de Kant. Referência indispensável para quem ataca a idéia de que a ciência não nos dá acesso às coisas em si.
5. Bergson jamais criticou, é claro, a teoria enquanto tal.
6. Que seguramente não é uma tese propriamente científica. Mas não faltava, certamente, espírito filosófico a Einstein, que via problemas onde nossos autores só vêm evidências. Penso no Einstein que dizia (contra uma epistemologia ingenuamente realista): "O incompreensível é que o mundo seja compreensível".

Bento Prado Jr. é professor de filosofia da Universidade Federal de São Carlos e autor, entre outros, de "Alguns Ensaios" (Max Limonad).











Imposturas e fantasias

Alan Sokal e Jean Bricmont

Folha de São Paulo, Jornal de Resenhas, 13 junho 1998

Já nos habituamos a ver nosso livro "Impostures Intellectuelles" ser debatido por pessoas que não o leram. Porém, é surpreendente que alguém que obviamente leu nosso livro _um professor de filosofia, aliás_ possa ter escrito uma longa resenha, em um jornal sério, na qual ignora quase tudo o que escrevemos no livro e ainda nos atribui coisas que não escrevemos (Jornal de Resenhas, n. 38, 9/5/98, pág. 10).
Nosso livro surgiu a partir da peça pregada por um de nós, que publicou, na revista americana de estudos culturais "Social Text", uma paródia repleta de citações sem sentido, mas infelizmente autênticas, a respeito da física e da matemática, extraídas de obras de eminentes intelectuais franceses e americanos. No entanto, apenas uma pequena parte do dossiê descoberto durante a pesquisa bibliográfica de Sokal pôde ser incluída na paródia. Após mostrar esse longo dossiê a amigos, cientistas ou não, fomos (lentamente) nos convencendo de que poderia valer a pena torná-lo acessível a um público mais amplo. Desejávamos explicar, em termos não técnicos, por que as passagens citadas são absurdas ou, em muitos casos, simplesmente carentes de sentido; e também desejávamos discutir as circunstâncias culturais que permitiram a esses discursos adquirir tamanho renome e permanecer, até então, sem exame. Um segundo alvo de nosso livro é o relativismo cognitivo, a saber, a idéia de que as asserções fatuais _sejam elas mitos tradicionais ou teorias científicas modernas_ podem ser consideradas verdadeiras ou falsas apenas "em relação a uma cultura particular".
Como Bento Prado Jr. reage a este livro? Deixemos de lado os epítetos pejorativos: "panfleto", "ressentimento", "red neck", "estilo monsieur Homais", "15 minutos de notoriedade". É óbvio que ele não gosta de nosso livro, mas honestamente não compreendemos por quê. Ele admite nossa tese principal: "Este livro põe em ridículo, muitas vezes com razão, um uso obscuro da linguagem" por parte de famosos filósofos-literatos franceses (Lacan, Kristeva, Baudrillard, Deleuze e outros). Ele não procura defender nenhum dos textos que criticamos, e ainda acrescenta que "a antologia levantada pelos dois autores poderia ser muito ampliada". Muito bom.
Quais são então as suas críticas?
Ele se queixa de nosso alvo _"a nebulosa pós-moderna"_ ser "definido, ele mesmo, de maneira muito nebulosa: trata-se da nebulosa 'pós-estruturalista' ou 'desconstrucionista' ". Mas essa "definição" é invenção do próprio Prado; ademais, ele suprime a definição dada no primeiro parágrafo de nosso livro: "Uma corrente intelectual caracterizada pela rejeição mais ou menos explícita da tradição racionalista do Iluminismo, por elaborações teóricas independentes de qualquer teste empírico, e por um relativismo cognitivo e cultural que trata as ciências como 'narrativas' ou construções sociais como quaisquer outras".
Prado afirma, sem apresentar a mínima evidência, que nosso alvo pós-moderno "inclui quase toda a epistemologia e mesmo a filosofia de língua inglesa". Ele nos atribui a idéia de que "o pobre Quine arca com a responsabilidade de desligar a ciência do real (...). Descobrimos que Quine é desconstrucionista". Sejamos sérios! Quine figura apenas uma vez em nosso livro (págs. 65-66), em que apoiamos sua asserção de que os enunciados científicos não podem ser testados individualmente, mas criticamos as formulações mais extremas dessa tese.
Prado chega a nos atribuir uma "arqueologia da Desrazão que explica o delírio epistemológico-cosmológico de um certo feminismo a partir dos 'equívocos' lógico-semânticos de Quine". Mas isso é pura invenção, sem nenhuma base em nosso livro. Nosso capítulo filosófico não menciona o feminismo e nosso capítulo sobre Irigaray não menciona Quine.
Prado afirma que relegamos Hegel "ao inferno do 'irracionalismo'". Mas Hegel é mencionado só em duas breves passagens de nosso livro (págs. 16-17, 146) e somente a propósito de seus escritos sobre o cálculo diferencial e integral _erros que foram repetidos, 150 anos depois, por Deleuze. Não tomamos nenhuma posição a respeito da filosofia de Hegel.
Prado zomba de termos supostamente considerado Bergson um pós-modernista. De fato, escrevemos (pág. 166): "Obviamente, Bergson não é um autor pós-moderno. (...) Há certamente uma seriedade em Bergson que contrasta nitidamente com a desenvoltura e o caráter 'blasé' dos pós-modernos". Por uma razão diferente, incluímos um capítulo sobre os mal-entendidos de Bergson e seus sucessores (Jankélévitch, Merleau-Ponty e Deleuze) a respeito da relatividade: porque os consideramos um exemplo que ilustra a "trágica ausência de comunicação entre os cientistas e certos filósofos (e não os menores)" (pág. 168) _uma situação que persiste ainda hoje, a julgar pelos próprios mal-entendidos do professor Prado.
Ele afirma que "Bergson jamais criticou, é claro, a teoria (da relatividade) enquanto tal" e que "Bergson reconheceu que seus argumentos teóricos (...) estavam literalmente errados". Ambas as asserções são falsas. Como mostramos (págs. 175-176), Bergson fez uma predição empírica a respeito do comportamento de relógios em movimento que é diferente da predição da teoria da relatividade (talvez ele não tivesse percebido que sua predição contradiz a relatividade, mas essa é uma outra questão; na verdade, um de nossos objetivos é refutar a opinião difundida de que Bergson não criticou a relatividade, mas apenas sua interpretação).
E embora Bergson não tenha publicado "Durée et Simultanéité" (Duração e Simultaneidade) após 1931, ele repetiu as mesmas idéias em "La Pensée et le Mouvant" (O Pensamento e o Movente), de 1934, e, pelo que sabemos, nunca as negou e muito menos explicou o que havia de errado com elas. Mas, se o tivesse feito, isso apenas reforçaria nossa questão principal, que não concerne a Bergson mas a seus sucessores: por que eles repetiram os mesmos erros décadas depois de terem sido corrigidos, paciente e pedagogicamente, por numerosos físicos?
Prado conclui dizendo-nos condescendentemente que, "desencaminhados por seus informantes, (Sokal e Bricmont) não leram as melhores páginas que Merleau-Ponty consagrou à questão Bergson-Einstein. Deveriam ler os ensaios 'Bergson Se Fazendo' e 'Einstein e a Crise da Razão' ". Perguntamo-nos como Prado pode estar tão seguro acerca do que temos e do que não temos lido. Não apenas conhecemos esses ensaios (que contêm graves mal-entendidos sobre a relatividade), como criticamos explicitamente um deles em nosso livro (ver nota 232 nas págs. 180-181).
Cabe notar que as confusões de Merleau-Ponty sobre a relatividade são sistemáticas: repetem-se em suas conferências no final dos anos 50 no Collège de France, conforme examinamos (págs. 179-181). Essas mesmas confusões reaparecem no livro "Le Bergsonisme" (1968), de Deleuze.
Consideremos, finalmente, o capítulo de nosso livro dedicado à filosofia da ciência: trata-se de um esforço pedagógico para esclarecer os fundamentos conceituais do conhecimento científico e, em particular, para desfazer algumas confusões comuns a respeito de questões como a impregnação teórica da observação, a subdeterminação das teorias pelos dados e a suposta incomensurabilidade entre paradigmas. Em particular, examinamos algumas ambiguidades nos escritos de Kuhn e Feyerabend e criticamos a corrente "construtivista social" radical da sociologia da ciência (Barnes, Bloor, Latour).
Não pretendemos que essas idéias sejam novas; de fato, elas se enquadram no "mainstream" da filosofia analítica contemporânea da ciência. Nossa principal preocupação é, antes, desfazer os mal-entendidos que têm proliferado dentro de muitos domínios das ciências sociais e que têm conduzido, pelo descuido de pensamento e linguagem, a um relativismo cognitivo radical.
Estamos cientes de que essas questões filosóficas são sutis e ficaremos contentes se nossas idéias forem submetidas a uma crítica vigorosa. Infelizmente, os comentários de Prado pouco contribuem para esse debate, ao refletirem uma compreensão confusa daquilo que escrevemos. Prado afirma que consideramos que o relativismo é "hegemônico na epistemologia", mas nós não dissemos nada disso. Muito pelo contrário, o relativismo é uma tendência minoritária dentro da filosofia analítica, mas se tem tornado dominante em certos setores das ciências humanas, mais como um vago "Zeitgeist" ("espírito do tempo") do que como uma doutrina filosófica coerente.
Prado distorce nossas idéias sobre a relação entre conhecimento científico e conhecimento ordinário, ao desconsiderar nossa distinção entre metodologia e conteúdo. Insistimos na continuidade entre o "método científico" e a atitude racional cotidiana, mas salientamos que os resultados científicos "amiúde entram em conflito com o senso comum" (pág. 57).
Em suma, estamos perplexos diante da reação a nosso livro. Quando inicialmente tomamos contato com os textos de Lacan, Deleuze e outros, ficamos chocados com seus abusos grosseiros, mas não sabíamos se valeria a pena gastar tempo para revelá-los. Esses autores ainda são levados a sério? Foram pessoas das ciências humanas que nos convenceram de que poderia valer a pena. Assim, esperávamos dar uma pequena contribuição a esses campos, acrescentando mais uma voz contra o aviltamento do pensamento pela proliferação de um jargão inútil e pretensioso.
Sabíamos, é claro, que seríamos duramente atacados pelos nossos alvos e seus discípulos. Mas uma coisa que não prevíamos era a hostilidade agressiva de algumas pessoas que não são, pelo visto, fãs dos autores criticados. Talvez nosso livro tenha estimulado "uma estratégia de defesa de território" por parte de pessoas que, como Prado, erroneamente o tomaram como um lance numa disputa territorial. Mas não escrevemos este livro para defender as ciências naturais das ameaças do pós-modernismo e do relativismo; esse perigo é quase inexistente. Também não se trata de um ataque à filosofia ou às ciências humanas em geral; muito pelo contrário, é um modesto esforço para apoiar nossos colegas nesses campos, que há tempos denunciam os efeitos perniciosos do jargão obscurantista e do relativismo visceral. As reações corporativistas contra nosso livro estão, pois, fora de lugar.
Obviamente, Prado e muitos outros não gostam de nosso livro. Mas por que razão? Sua crítica baseia-se inteiramente em suas próprias fantasias, não em uma leitura honesta daquilo que escrevemos. Uma vez eliminadas essas fantasias, seu artigo não contém um único argumento racional contra nossas teses. Talvez uma modesta manifestação de racionalismo provoque profundas reações irracionalistas.
Alan Sokal é professor de física na Universidade de Nova York (EUA).
Jean Bricmont é professor de física teórica na Universidade Católica de Louvain (Bélgica).
Tradução de Caetano Plastino.


FONTE: http://www.physics.nyu.edu/faculty/sokal/folha.html







POLÊMICA
Livro de Sokal deixa Paris em chamas
 
 
São Paulo, domingo, 9 de novembro de 1997.


Físicos atacam pensadores franceses  em "Imposturas Intelctuais"


BETTY MILAN 
especial para a Folha 
Na primavera de 1996, a comunidade acadêmica americana mal se deu conta de um artigo publicado na "Social Text", umas das revistas mais conceituadas dos EUA e conhecida pela particularidade de combinar posições de esquerda com influências da filosofia pós-moderna.
Assinado por Alan Sokal, professor de física na Universidade de Nova York, o texto levava o enigmático título de "Atravessando as Fronteiras - Em Direção a uma Hermenêutica Transformativa de Gravidade Quântica".
O artigo só veio a ganhar repercussão quando seu autor revelou, meses depois, em outra revista, que realizara na verdade um grande embuste.
No texto "Um Físico Faz Experiências com Estudos Culturais", para a revista "Lingua Franca" (de maio-junho de 1996), Sokal esclareceu que fizera propositadamente uma paródia, sem pé nem cabeça, de certa linguagem "pós-moderna" e "relativista", que recusa a possibilidade de se alcançar um conhecimento objetivo das coisas.
O que ele realizara fora uma colagem de dados científicos verdadeiros com citações de obras de filósofos pós-modernos franceses, como Guattari, Deleuze e Derrida, e americanos, como Sandra Harding, sobre física e matemática -e por ele consideradas duvidosas.
A revelação caiu como uma bomba nos meios universitários dos EUA.
Depois de chegar às páginas do "The New York Times", a polêmica rapidamente tomou corpo e extrapolou as fronteiras dos EUA.
Chegou inclusive ao Brasil, onde o economista Roberto Campos, em artigo na Folha de 22/9/96, elogiava Sokal por revelar "a submissão da idéia à ideologia" no pensamento das esquerdas.
O próprio Sokal retrucaria a Campos (Folha, 06/10/96), dizendo que suas críticas se dirigiam apenas a uma parcela da esquerda, e que se considerava ainda um pensador de esquerda.
Agora, com o lançamento no mês passado do livro "Imposturas Intelectuais", em parceria com o físico belga Jean Bricmont, Alan Sokal volta à carga.
Tachados de "censores" pelo semanário francês "Le Nouvel Observateur", Sokal e Bricmont tentam mostrar no livro como os conceitos de ciências exatas que aparecem em escritos de Jacques Lacan, Jean Baudrillard, Julia Kristeva, Deleuze e Guattari, entre outros, não tem rigor científico algum e chegam a ser absurdos.
Na França, o assunto suscitou um dos mais vivos debates dos últimos anos, além da indignação de boa parte da "intelligentsia" francesa.
Na entrevista abaixo, concedida com exclusividade à Folha no Hotel des Grands Hommes, em Paris, Sokal e Bricmont tecem suas considerações sobre as "imposturas" do celebrado pensamento pós-moderno francês.
Folha -Por que o sr. escreveu a paródia para a "Social Text"?
Alan Sokal - Ela se insere num contexto político. Eu me considero de esquerda porque me oponho à distribuição de renda atual. Constatei que certas tendências da esquerda acadêmica norte-americana adotaram o relativismo, ou seja, a idéia de que o conhecimento mais ou menos objetivo do mundo natural e social não pode existir, de que todo conhecimento é subjetivo. Até as ciências naturais não passariam de mitos. Opus-me a isso, pois acho que tais opiniões estão baseadas em erros e são politicamente suicidas. Nossa tarefa, se quisermos progredir, é elaborar uma análise da sociedade atual baseada no rigor, nos fatos, em uma análise convincente.
Folha - E por que o sr. recorreu à tática de escrever uma paródia e só depois revelar o que fizera?
Sokal - Constatei que nas universidades americanas os departamentos de literatura, ciências sociais e estudos femininos são fechados à crítica vinda do exterior e mesmo de dentro do país. A resposta é sempre a mesma. Ou bem ninguém responde. Por isso, tive a idéia de escrever uma paródia.
Folha - A Folha noticiou o fato, e o sr. foi até mesmo elogiado pelo economista Roberto Campos.
Sokal - A relação entre as posições intelectuais e as posições políticas é complexa. Fomos apoiados por pessoas de esquerda e direita por idéias que não são de ordem política. Como você deve saber, escrevi uma resposta a Roberto Campos dizendo que não ridicularizava a esquerda inteira, mas apenas uma parte, e que fora apoiado pela maior parte da esquerda americana, quase 80% das revistas.
Folha - A impostura é para o sr. "o abuso reiterado de conceitos provenientes das ciências físico-matemáticas", e o abuso se define por muitas características, entre as quais "falar abundantemente de teorias científicas sobre as quais o sujeito só tem uma vaga idéia". Faz supor que se tem um conhecimento que não se tem. Ao mesmo tempo o sr. escreveu: "Claro que nós não somos competentes para julgar o conjunto da obra dos autores" (Lacan, Kristeva...) e que "nós tentaremos explicar em que consistem os abusos cometidos no que diz respeito às ciências exatas e por que eles nos parecem sintomáticos de uma falta de rigor e de racionalidade no conjunto da obra". Em outras palavras, o sr. afirma que não é capaz de julgar o conjunto, porém julga. Não se trataria também de uma impostura?
Sokal - Uma impostura não. Talvez nós não tenhamos explicado bem o que queríamos dizer. Focalizamos o que os autores dizem quando entram em searas que nós conhecemos, como a matemática e a física. Observamos que eles aí cometeram abusos graves. Valeram-se de conceitos em contextos onde eles não têm pertinência alguma, deformaram termos científicos etc. Isso obviamente não prova nada a respeito do resto da obra.
Folha - Mas está escrito na "Introdução" que os abusos dos autores indicam falta de rigor e racionalidade no conjunto da obra...
Sokal - As imposturas não invalidam a obra toda, e nós somos explicitamente agnósticos sobre a parte que não diz respeito à física. Claro que você pode me perguntar qual é então a importância do nosso livro se o papel da matemática e da física é tão pequeno na obra dos autores criticados. O livro é importante porque mostra que há abusos graves numa parte da obra e permite questionar o resto. Não somos competentes para dirigir o questionamento, porém desejamos que outros o façam.
Folha - A sua análise me parece justa quando o sr. diz que os autores têm um estilo pesado e pomposo e que estão errados ao dizer que há nas obras deles uma preocupação literária e poética. Mas é injusta, na medida em que o sr. só cita os textos incompreensíveis dos autores e não leva em conta o que eles fizeram compreender.
Sokal - Nós escolhemos um tema que é o abuso de conceitos da matemática e física. Os autores abusaram da autoridade, se valeram do fato de serem professores.
Folha - O sr. diz que os intelectuais franceses criticados são frequentemente incompreensíveis porque o que eles escrevem não quer dizer absolutamente nada.
Sokal - Refiro-me a textos determinados. Não faço uma crítica global.
Folha - Voltemos à questão da incompreensibilidade dos autores... Jean Bricmont - As pessoas podem ser favoráveis à psicanálise, mas também reconhecerem que nos textos citados por nós há impostura, ou seja, naqueles em que Lacan usa a matemática. Não pretendemos julgar a psicanálise dele e nem a filosofia de Deleuze.
Sokal - Não estamos dizendo que tudo deva ser imediatamente compreensível: 95% dos trabalhos da física não o são. Nós nos limitamos aos textos que se referem aos domínios que conhecemos bem.
Folha - Em um artigo, Julia Kristeva disse que por intermédio dela o sr. estava criticando a França inteira. O que é um exagero, claro. Mas ela teve razão ao dizer que as ciências humanas e, em particular, a interpretação dos textos literários e a interpretação analítica não obedecem à lógica das ciências exatas. Como o sr. responde a isso?
Sokal - Claro que a lógica não é a mesma, mas nós criticamos o livro da Kristeva sobre a semiótica, no qual ela despeja coisas incompreensíveis sobre o leitor.
Bricmont - É importante dizer que não se trata de um debate entre o pensamento anglo-saxão e o francês. Existe na França um espírito francês racionalista, que apreciamos. Diderot, por exemplo, era um racionalista, ao contrário dos autores que criticamos.
Folha - O sr. tem razão ao falar do terrorismo do pensamento intelectual francês. Mas será que este terrorismo não é devido à submissão dos americanos do Norte e do Sul ao espírito sistemático de papagaíce no campo das idéias?
Sokal - Nós utilizamos a palavra terrorismo uma única vez a propósito da Kristeva, que cita um enunciado muito técnico da lógica matemática -um enunciado que nem os matemáticos entendem-, dizendo "sabe-se que", quando ninguém sabe. Trata-se de uma forma de intimidar o leitor.
Folha - Gostaria de saber se existe na América do Norte -como na do Sul- um espírito de imitação.
Bricmont - Na do Sul existe. Basta alguém espirrar em Paris para as pessoas ficarem gripadas em Buenos Aires.
Sokal - Em Nova York é a mesma coisa. Podemos dizer que as modas intelectuais parisienses se reproduzem nas universidades norte-americanas e talvez nas brasileiras com um atraso de dez anos.
Folha - Em resposta ao seu livro, escreveu-se no "Nouvel Observateur" que existe incompatibilidade entre uma cultura norte-americana baseada no fato e na informação e uma cultura francesa que se vale mais da interpretação e do estilo. O que o sr. acha disso?
Sokal - Afirmar que os franceses não levam em conta os fatos e a informação é confundir a alta cultura com a alta-costura, que só se interessa pelo estilo.
Bricmont - Trata-se de um trocadilho. Nós obviamente apreciamos a alta-costura.
Sokal - O pensamento, em qualquer domínio, implica a argumentação. Não pode ser apenas uma questão de estilo. Se for, é poesia.
Folha - Os senhores são mais realistas do que o rei, mais insistentes na separação radical dos gêneros do que os clássicos franceses.
Bricmont - É verdade que me irrito quando encontro um filósofo, como Lyotard, que diz que Deleuze é literatura, quando é filosofia. Tenho tendência a achar que essa história de dizer que não é uma coisa nem outra não é possível.
Folha -Seja como for, a contribuição dos pensadores de língua francesa para a história das idéias não é propriamente negligenciável. Gostaria que os senhores fizessem um balanço da contribuição dos norte-americanos.
Bricmont - Balanço é impossível, mas quero citar Chomsky, que é um racionalista e teria gostado do nosso livro.
Sokal - Quando o "Le Monde" disse que há um imperialismo norte-americano e que eu estou querendo impor a cultura da Disney na França, respondi que a América que nós apoiamos é a de Chomsky.
Folha -Quais são as condições necessárias para a instauração de um verdadeiro diálogo entre as ciências exatas e as humanas?
Bricmont - Há certos ensinamentos resultantes da leitura sistemática dos autores que criticamos. É preciso saber do que a gente está falando. Se alguém quer falar das ciências exatas, deve se informar seriamente. Tudo que é obscuro não é necessariamente profundo. É fundamental distinguir entre os discursos que são de difícil acesso por causa do assunto tratado e aqueles cuja banalidade fica escondida pela falta de clareza deliberada dos propósitos. A ciência não é um "texto". As ciências exatas não são um reservatório de metáforas prontas para serem utilizadas pelas ciências humanas, que têm seus próprios métodos e não precisam seguir as mudanças na física ou biologia. Não se deve usar o argumento de autoridade etc.
Folha - Vocês dizem que criticam as idéias obscuras porque elas reforçam o antiintelectualismo fácil existente na população. Acham que se trata de fazer uma ciência que seja clara e assim possa se tornar popular no próximo século?
Sokal - Popular no sentido da vulgarização?
Bricmont - A vulgarização pode ser bem feita...
Sokal - No livro, a cada vez que abordamos um domínio científico, procuramos nos referir a bons textos de vulgarização.
Folha - Qual é a relação entre a vulgarização e o mercado?
Sokal - Uma parte da literatura de vulgarização peca por excessos em virtude do mercado. Insiste, por exemplo, nas teorias mais especulativas, apresentando-as como decorrentes da ciência estabelecida. A vulgarização é difícil, é uma tradução de conceitos científicos. Em nosso livro nós explicamos a teoria da relatividade para um público que não é de cientistas.
Folha -Vocês terminam o seu livro dizendo: "Lembro-me que há muito existiu um país em que os pensadores e os filósofos se inspiravam nas ciências, pensavam e escreviam claramente, procurando compreender o mundo natural e social, esforçavam-se para difundir os seus conhecimentos entre os cidadãos e colocavam em questão as iniquidades da ordem social. Esta época era a do Iluminismo -das Luzes- e este país era a França". Gostaria de saber o que se pode esperar agora? Um novo iluminismo ou uma outra coisa?
Bricmont - O fim do livro foi para lembrar aos franceses que o nosso pensamento não é antifrancês. Tendo a pensar que o espírito do iluminismo deveria voltar, assim como a crítica aos abusos de poder que existem na sociedade. O que as pessoas de esquerda chamam de pensamento crítico é obscuro, relativamente obscurantista. Somos contra isso.
Sokal - Houve um progresso cognitivo inacreditável neste século, que levou a um progresso tecnológico, mas os progressos cognitivo e tecnológico não implicaram um progresso moral. É preciso estabelecer distinções claras. Dizer que Auschwitz é a consequência do iluminismo é ridículo.
Bricmont - Os fascistas utilizavam a tecnologia, mas eram contra o iluminismo.


Betty Milan é escritora, autora de "O Papagaio e o Doutor" e "Paris Não Acaba Nunca".
Onde encomendar:
"Impostures Intellectuelles", de Alan Sokal e Jean Bricmont (Editions Odile Jacob, 274 págs., 140 francos), pode ser encomendado à Livraria Francesa (r. Barão de Itapetininga, 275, fundos, tel. 011/231-4555, São Paulo).
 
FONTE: http://www.cfh.ufsc.br/~takase/sokal.htm
 

Nenhum comentário:

Postar um comentário