quarta-feira, 3 de abril de 2013

ROTA PARA A CIÊNCIA NORMAL

ROTA PARA A CIÊNCIA NORMAL

KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 2. ed. 1978, p. 24-42


Neste ensaio, "ciência normal" significa a pesquisa firmemente baseada em uma ou mais realizações científicas passadas. Essas realizações são reconhecidas durante algum tempo por alguma comunidade e científica específica como proporcionando os fundamentos para sua prática posterior. Embora raramente na sua forma original, hoje em dia essas realizações são relatadas pelos manuais científicos elementares e avançados. Tais livros expõem o corpo da teoria aceita, ilustram muitas (ou todas) as suas aplicações bem sucedidas e comparam essas aplicações com observações e experiências exemplares. Uma vez que tais livros se tornaram populares no começo do século XIX (e mesmo mais recentemente, como no caso das ciências amadurecidas há pouco), muitos dos clássicos famosos da ciência desempenham uma função similar. 





A Física de Aristóteles, o Almagesto de Ptolomeu, os Principia e a óptica de Newton, a Eletricidade de Franklin, a Química de Lavoisier e a Geologia de Lyell - esses e muitos outros trabalhos serviram, por algum tempo, para definir implicitamente os problemas e métodos legítimos de um campo de pesquisa para as gerações posteriores de praticantes da ciência. Puderam fazer isso porque partilhavam duas características essenciais. Suas realizações suficientemente sem precedentes para atrair um grupo duradouro de partidário afastando-os de outras formas de atividade científica dissimilares. Simultaneamente, suas realizações eram suficientemente abertas para deixar toda a espécie de problemas para serem resolvidos pelo grupo redefinido de praticantes da ciência. 

  Daqui por diante deverei referir-me às realizações que partilham essas duas características como "paradigmas", um termo estreitamente relacionado com "ciência normal". Com a escolha do termo pretendo sugerir que alguns exemplos aceitos na prática científica real - exemplos que incluem, ao mesmo tempo, lei, teoria, aplicação e instrumentação - proporcionam modelos dos quais brotam as tradições coerentes e específicas da pesquisa científica. São essas tradições que o historiador descreve com rubricas como: "Astronomia Ptolomaica" (ou "Copernicana") "Dinâmica Aristotélica" (ou "Newtoniana"), "óptica Corpuscular" (ou "óptica Ondulatória"), e assim por diante. O estudo dos paradigmas, muitos dos quais bem mais especializadas do que os indicados acima, é o que prepara basicamente o estudante para ser membro da comunidade científica determinada na qual atuará mais tarde. Uma vez que ali o estudante reúne-se a homens que aprenderam as bases de seu campo de estudo a partir dos mesmos modelos concretos, sua prática subseqüente raramente irá provocar desacordo declarado sobre pontos fundamentais. Homens cuja pesquisa está baseada em paradigmas compartilhados estão comprometidos com as mesmas regras e padrões para a prática científica. Esse comprometimento e o consenso aparente que produz são pré-requisitos para a ciência normal, isto é, para a gênese e a continuação de uma tradição de pesquisa determinada. 

 Será necessário acrescentar mais sobre as razões da introdução do conceito de paradigma, uma vez que neste ensaio ele substituirá uma variedade de noções familiares. Por que a realização científica, como um lugar de comprometimento profissional, é anterior aos vários conceitos, leis, teorias e pontos de vista que dela podem ser abstraídos? Em que sentido o paradigma partilhado é uma unidade fundamental para o estudo do desenvolvimento científico, uma unidade que não pode ser totalmente reduzida a componentes atômicos lógicos que poderiam funcionar em seu lugar? Quando as encontrarmos, as respostas a estas questões e outras similares demonstrarão ser básicas para a compreensão, tanto da ciência normal, como do conceito associado de paradigma Contudo, esta discussão mais abstrata vai depender Ida exposição prévia de exemplos da ciência normal ou de paradigmas em atividade. Mais especificamente, esses dois conceitos relacionados serão esclarecidos indicando-se a possibilidade de uma espécie de pesquisa científica sem paradigmas ou pelo menos sem aqueles de tipo tão inequívoco e obrigatório como os nomeados acima. A aquisição de um paradigma e do tipo de pesquisa mais esotérico que ele permite é um sinal de maturidade no desenvolvimento de qualquer campo científico que se queira considerar. 

  Se o historiador segue, desde a origem, a pista do conhecimento científico de qualquer grupo selecionado de fenômenos interligados, provavelmente encontrará alguma variante menor de um padrão ilustrado aqui a partir da História da óptica Física. Os manuais atuais de Física ensinam ao estudante que a luz é composta de fótons, isto é, entidades quântico-mecânicas que exibem algumas características de ondas e outras de partículas. A pesquisa é realizada de acordo com este ensinamento, ou melhor, de acordo com as caracterizações matemáticas mais elaboradas a partir dás quais é derivada esta verbalização usual. Contudo, esta caracterização da luz mal tem meio século. Antes de ter sido desenvolvida por Planck, Einstein e outros no começo deste século, os textos de Física ensinavam que a luz era um movimento ondulatório transversal, concepção que em última análise derivava dos escritos ópticos de Young e Fresnel, publicados no início do século XIX. Além disso, a teoria ondulatória não foi a primeira das concepções a ser aceita pelos praticantes da ciência óptica. Durante o século XVIII, o paradigma para este campo de estudos foi proporcionado pela óptica de Newton, a qual ensinava que a luz era composta de corpúsculos de matéria. Naquela época os físicos procuravam provas da pressão exercida pelas partículas de luz ao colidir com os corpos sólidos, algo que não foi feito pelos primeiros teóricos da concepção ondulatória.' 


 Essas transformações de paradigmas da óptica Física são revoluções científicas e a transição sucessiva de um paradigma a outro, por meio de uma revolução, é o padrão usual de desenvolvimento da ciência amadurecida. No entanto, este não é o padrão usual do período anterior aos trabalhos de Newton. É este contraste que nos interessa aqui. Nenhum período entre a antigüidade remota e o fim do século XVII exibiu uma única concepção da natureza da luz que fosse geralmente aceita. Em vez disso havia um bom número de escolas e subescolas em competição, a maioria das quais esposava uma ou outra variante das teorias de Epicuro, Aristóteles ou Platão. Um grupo considerava a luz como sendo composta de partículas que emanavam dos corpos materiais; para outro, era a modificação do meio que intervinha entre o corpo e o olho; um outro ainda explicava a luz em termos de uma interação do meio com uma emanação do olho; e haviam outras combinações e modificações além dessas. Cada uma das escolas retirava forças de sua relação com alguma metafísica determinada. Cada uma delas enfatizava, como observações paradigmáticas, o conjunto particular de fenômenos ópticos que sua própria teoria podia explicar melhor. Outras observações eram examinadas através de elaboração ad hoc ou permaneciam como problemas especiais para a pesquisa posterior. 

Em épocas diferentes, todas estas escolas fizeram contribuições significativas ao corpo de conceitos, fenômenos e técnicas dos quais Newton extraiu o primeiro paradigma quase uniformemente aceito na óptica Física. Qualquer definição do cientista, que exclua os membros mais criadores dessas várias escolas, excluirá igualmente seus sucessores modernos. Esses homens eram cientistas. Contudo, qualquer um que examine uma amostra da óptica Física anterior a Newton poderá perfeitamente concluir que, embora os estudiosos dessa área fossem cientistas, o resultado líquido de suas atividades foi algo menos que ciência. Por não ser obrigado a assumir um corpo qualquer de crenças comuns, cada autor de óptica Física sentia-se forçado a construir novamente seu campo de estudos desde os fundamentos. A escolha das observações e experiências que sustentavam tal reconstrução era relativamente livre. Não havia qualquer conjunto-padrão de métodos ou de fenômenos que todos os estudiosos da óptica se sentissem forçados a empregar e explicar. Nestas circunstâncias o diálogo dos livros resultantes era freqüentemente dirigido aos membros das outras escolas tanto como à natureza. Hoje em dia esse padrão é familiar a numerosos campos de estudos criadores e não é incompatível com invenções e descobertas significativas. Contudo, este não é o padrão de desenvolvimento que a óptica Física adquiriu depois de Newton e nem aquele que outras ciências da natureza tornaram familiar hoje em dia. 

  A história da pesquisa elétrica na primeira metade do século XVIII proporciona um exemplo mais concreto e melhor conhecido da maneira como uma ciência se desenvolve antes de adquirir seu primeiro paradigma universalmente aceito. Durante aquele período houve quase tantas concepções sobre a natureza da eletricidade como experimentadores importantes nesse campo, homens como Hauksbee, Gray, Desaguliers, Du Fay, Nollet, Watson, Franklin e outros. Todos seus numerosos conceitos de eletricidade tinham algo em comum - eram parcialmente derivados de uma ou outra versão da filosofia mecânico-corpuscular que orientava a pesquisa científica da época. Além disso, eram todos componentes de teorias científicas reais, teorias que tinham sido parcialmente extraídas de experiências e observações e que determinaram em parte a escolha e a interpretação de problemas adicionais enfrentados pela pesquisa. Entretanto, embora todas as experiências fossem elétricas e a maioria dos experimentadores lessem os trabalhos uns dos outros, suas teorias não tinham mais do que uma semelhança de família. 

 Um primeiro grupo de teorias, seguindo a prática do século XVII, considerava a atração e a geração por fricção como os fenômenos elétricos fundamentais. Esse grupo tendia a tratar a repulsão como um efeito secundário devido a alguma espécie de rebote mecânico. Tendia igualmente a postergar por tanto tempo quanto possível tanto a discussão como a pesquisa sistemática sobre o novo efeito descoberto por Gray - a condução elétrica. Outros "eletricistas" (o termo é deles mesmo) consideravam a atração e a repulsão como manifestações igualmente elementares da eletricidade e modificaram suas teorias e pesquisas de acordo com tal concepção. (Na realidade este grupo é extremamente pequeno - mesmo a teoria de Franklin nunca explicou completamente a repulsão mútua de dois corpos carregados negativamente.) Mas estes tiveram tanta dificuldade como o primeiro grupo para explicar simultaneamente qualquer coisa que não fosse os efeitos mais simples da condução. Contudo, esses efeitos proporcionaram um ponto de partida para um terceiro grupo, grupo que tendia a falar da eletricidade mais como um "fluido" que podia circular através de condutores do que como um "fluido" que emanasse de não-condutores. Por seu turno, esse grupo tinha dificuldade para reconciliar sua teoria corri numerosos efeitos de atração e repulsão. Somente através dos trabalhos de Franklin e de seus sucessores imediatos surgiu uma teoria capaz de dar conta, com quase igual facilidade, de aproximadamente todos esses efeitos. Em vista disso essa teoria podia e de fato realmente proporcionou um paradigma comum para a pesquisa de uma geração subseqüente de "eletricistas". 

  Excluindo áreas como a Matemática e a Astronomia, nas quais os primeiros paradigmas estáveis datam da pré-história, e também aquelas, como a Bioquímica, que surgiu da divisão e combinação de especialidades já amadurecidas, as situações esboçadas acima são historicamente típicas. Sugiro que desacordos fundamentais de tipo similar caracterizaram, por exemplo, o estudo do movimento antes de Aristóteles e da Estática antes de Arquimedes, o estudo do calor antes de Black, da Química antes de Boyle e Boerbaave e da Geologia Histórica antes de Hutton - embora isso envolva de minha parte o emprego continuado de simplificações infelizes que rotulam um extenso episódio histórico com um único nome, um tanto arbitrariamente escolhido (por exemplo, Newton ou Franklin). Em partes da Biologia - por exemplo, no estudo da hereditariedade - os primeiros paradigmas universalmente aceitos são ainda mais recentes. Permanece em aberto a questão a respeito de que áreas da ciência social já adquiriram tais paradigmas. A História sugere que a estrada para um consenso estável na pesquisa é extraordinariamente árdua. 

  Contudo, a História sugere igualmente algumas razões para as dificuldades encontradas ao longo desse caminho. Na ausência de um paradigma ou de algum candidato a paradigma, todos os fatos que possivelmente são pertinentes ao desenvolvimento de determinada ciência têm a probabilidade de parecerem igualmente relevantes. Como conseqüência disso, as primeiras coletas de fatos se aproximam muito mais de uma atividade ao acaso do que daquelas que o desenvolvimento subseqüente da ciência torna familiar. Além disso, na ausência de uma razão para procurar alguma forma de informação mais recôndita, a coleta inicial de fatos é usualmente restrita à riqueza de dados que estão prontamente a nossa disposição. A soma de fatos resultantes contém aqueles acessíveis à observação e à experimentação casuais, mais alguns dos dados mais esotéricos procedentes de ofícios estabelecidos, como a Medicina, a Metalurgia e a confecção de calendários. A tecnologia desempenhou muitas vezes um papel vital no surgimento de novas ciências, já que os ofícios são uma fonte facilmente acessível de fatos que não poderiam ter sido descobertos casualmente.

 Embora esta espécie de coleta de fatos tenha sido essencial para a origem de muitas ciências significativas, qualquer pessoa que examinar, por exemplo, os escritos enciclopédicos de Plínio ou as Histórias Naturais de Bacon, descobrirá que ela produz uma situação de perplexidade. De certo modo hesita-se em chamar de científica a literatura resultante. As "histórias" baconianas do calor, da cor, do vento, da mineração e assim por diante, estão repletas de informações, algumas das quais recônditas. Mas justapõem fatos, que mais tarde demonstrarão ser reveladores (por exemplo, o aquecimento por mistura), com outros (o calor dos montes de esterco) que continuarão demasiado complexos para serem integrados na teoria. Além disso, visto que qualquer descrição tem que ser parcial, a História Natural típica omite com freqüência de seus relatos imensamente circunstanciais exatamente aqueles detalhes que cientistas posteriores considerarão fontes de iluminações importantes. Por exemplo, quase nenhuma das primeiras "histórias" da eletricidade mencionam que o farelo, atraído por um bastão de vidro coberto de borracha, é repelido novamente. Esse efeito parecia mecânico e não elétrico. Além do mais, visto que o coletor de dados casual raramente possui o tempo ou os instrumentos para ser crítico, as histórias naturais justapõem freqüentemente descrições como as mencionadas acima como outras de, digamos, aquecimento por antiperístase (ou por esfriamento), que hoje em dia não temos condição alguma de confirmar. Apenas muito ocasionalmente, como no caso da Estática, Dinâmica e óptica Geométrica antigas, fatos coletados com tão pouca orientação por parte de teorias preestabelecidas falam com suficiente clareza para permitir o surgimento de um primeiro paradigma. 

  As escolas características dos primeiros estágios do desenvolvimento de uma ciência criam essa situação. Nenhuma História Natural pode ser interpretada na ausência de pelo menos algum corpo implícito de crenças metodológicas e teóricas interligadas que permita a seleção, avaliação e a crítica. Se esse corpo de crenças já não está implícito na coleção de fatos - quando então temos à disposição mais do que "meros fatos" - precisa ser suprido externamente, talvez por uma metafísica em voga, por outra ciência ou por um acidente pessoal e histórico. Não é de admirar que nos primeiros estágios do desenvolvimento de qualquer ciência, homens diferentes confrontados com a mesma gama de fenômenos - mas em geral não com os mesmos fenômenos particulares - os descrevam e interpretem de maneiras diversas. É surpreendente (e talvez também único, dada a proporção em que ocorrem) que tais divergências iniciais - possam em grande parte desaparecer nas áreas que chamamos ciência. 

 As divergências realmente desaparecem em grau considerável e então, aparentemente, de uma vez por todas. Além disso, em geral seu desaparecimento é causado pelo triunfo de uma das escolas pré-paradigmáticas, a qual, devido a suas próprias crenças e preconceitos característicos, enfatizava apenas alguma parte especial do conjunto de informações demasiado numeroso e incoativo. Os eletricistas que consideravam a eletricidade um fluido, e por isso davam uma ênfase especial à condução, proporcionam um exemplo típico excelente. Conduzidos por essa crença, que mal e mal podia dar conta da conhecida multiplicidade de efeitos de atração e repulsão, muitos deles conceberam a idéia de engarrafar o fluido elétrico. O fruto imediato de seus esforços foi a Garrafa de Leyden, um artifício que nunca poderia ter sido descoberto por alguém que explorasse a natureza fortuitamente ou ao acaso. Entretanto, este artifício foi desenvolvido independentemente, pelo menos por dois investigadores no início da década de 1740. Quase desde o começo de suas pesquisas elétricas, Franklin estava especialmente interessado em explicar aquele estranho e, em conseqüência, tão revelador aparelho. O sucesso na explicação proporcionou o argumento mais efetivo para a transformação de sua teoria em paradigma, apesar de este ser ainda incapaz de explicar todos os casos conhecidos de repulsão elétrica. Para ser aceita como paradigma, uma teoria deve parecer melhor que suas competidoras, mas não precisa (e de fato isso nunca acontece) explicar todos os fatos com os quais pode ser confrontada. 

  Aquilo que a teoria do fluido elétrico fez pelo subgrupo que a defendeu, o paradigma de Franklin fez mais tarde por todo o grupo dos eletricistas. Este sugeria as experiências que valeriam a pena ser feitas e as que não tinham interesse, por serem dirigidas a manifestações de eletricidade secundárias ou muito complexas. Entretanto, o paradigma realizou esta taref a bem mais eficientemente do que a teoria do fluido elétrico, em parte porque o fim do debate entre as escolas deu um fim à reiteração constante de fundamentos e em parte porque a confiança de estar no caminho certo encorajou os cientistas a empreender trabalhos de um tipo mais preciso, esotérico e extenuantes Livre da preocupação com todo e qualquer fenômeno elétrico, o grupo unificado dos eletricistas pôde ocupar-se bem mais detalhadamente de fenômenos selecionados, projetando equipamentos especiais para a tarefa e empregando-os mais sistemática e obstinadamente do que jamais fora feito antes. Tanto a acumulação de fatos como a articulação da teoria tornaram-se atividades altamente orientadas. O rendimento e a eficiência da pesquisa elétrica aumentaram correspondentemente, proporcionando provas para uma versão societária do agudo dito metodológico de Francis Bacon: "A verdade surge mais facilmente do erro do que da confusão". 

 No próximo capítulo examinaremos a natureza dessa pesquisa precisamente orientada ou baseada em paradigma, mas antes indicaremos brevemente como a emergência de um paradigma afeta a estrutura do grupo que atua nesse campo. Quando, pela primeira vez no desenvolvimento de uma ciência da natureza, um indivíduo ou grupo produz uma síntese capaz de atrair a maioria dos praticantes de ciência da geração seguinte, as escolas mais antigas começam a desaparecer gradualmente. Seu desaparecimento é em parte causado pela conversão de seus adeptos ao novo paradigma. Mas sempre existem alguns que se aferram a uma ou outra das concepções mais antigas; são simplesmente excluídos da profissão e seus trabalhos são ignorados. O novo paradigma implica uma definição nova e mais rígida do campo de estudos. Aqueles que não desejam ou não são capazes de acomodar seu trabalho a ele têm que proceder isoladamente ou unir-se a algum grupo." Historicamente, tais pessoas têm freqüentemente permanecido em departamentos de Filosofia, dos quais têm brotado tantas ciências especiais. Como sugerem essas indicações, algumas vezes é simplesmente a recepção de um paradigma que transforma numa profissão ou pelo menos numa disciplina um grupo que anteriormente interessava-se pelo estudo da natureza. Nas ciências (embora não em campos como a Medicina, a Tecnologia e o Direito, que têm a sua raison d'être numa necessidade social exterior) a criação de jornais especializados, a fundação de sociedades de especialistas e a reivindicação de um lugar especial nos currículos de estudo, têm geralmente estado associadas com o momento em que um grupo aceita pela primeira vez um paradigma único. Pelo menos foi isso que ocorreu, há século e meio atrás, durante o período que vai desde o desenvolvimento de um padrão institucional de especialização científica até a época mais recente, quando a parafernália de especializações adquiriu prestígio próprio. 

 A definição mais estrita de grupo científico tem outras conseqüências. Quando um cientista pode considerar um paradigma como certo, não tem mais necessidade, nos seus trabalhos mais importantes, de tentar construir seu campo de estudos começando pelos primeiros princípios e justificando o uso de cada conceito introduzido. Isso pode ser deixado para os autores de manuais. Mas, dado o manual, o cientista criador pode começar suas pesquisa onde o manual a interrompe e desse modo concentrar-se exclusivamente nos aspectos mais sutis e esotéricos dos fenômenos naturais que preocupam o grupo. Na medida em que fizer isso, seus relatórios de pesquisa começarão a mudar, seguindo tipos de evolução que têm sido muito pouco estudados, mas cujos resultados finais modernos são óbvios para todos e opressivos para muitos. Suas pesquisas já não serão habitualmente incorporadas a livros como Experiências... sobre a Eletricidade de Franklin ou a Origem das Espécies de Darwin, que eram dirigidos a todos os possíveis interessados no objeto de estudo do campo examinado. Em vez disso, aparecerão sob a forma de artigos breves, dirigidos apenas aos colegas de profissão, homens que certamente conhecem o paradigma partilhado e que demonstram ser os únicos capazes de ler os escritos a eles endereçados. 

Hoje em dia os livros científicos são geralmente ou manuais ou reflexões retrospectivas sobre um ou outro aspecto da vida científica. O cientista que escreve um livro tem mais probabilidades de ver sua reputação comprometida do que aumentada. De uma maneira regular, somente nos primeiros estágios do desenvolvimento das ciências, anteriores ao paradigma, o livro possuía a mesma relação com a realização profissional que ainda conserva em outras áreas abertas à criatividade. É somente naquelas áreas em que o livro, com ou sem o artigo, mantém-se como um veículo para a comunicação das pesquisas que as linhas de profissionalização permanecem ainda muito tenuemente traçadas. Somente nesses casos pode o leigo esperar manter-se a par dos progressos realizados fazendo a leitura dos relatórios originais dos especialistas. Tanto na Matemática como na Astronomia, já na Antigüidade os relatórios de pesquisas deixaram de ser inteligíveis para um auditório dotado de cultura geral. Na Dinâmica, a pesquisa tornou-se igualmente esotérica nos fins da Idade Média, recapturando sua inteligibilidade mais generalizada apenas por um breve período, durante o início do século XVII, quando um novo paradigma substituiu o que havia guiado a pesquisa medieval. A pesquisa elétrica começou a exigir uma tradução para leigos no fim do século XVIII. Muitos outros campos da ciência física deixaram de ser acessíveis no século XIX. Durante esses mesmos dois séculos transições simulares podem ser identificadas nas diferentes. áreas das ciências biológicas. Podem muito bem estar ocorrendo hoje, em determinados setores das ciências sociais. Embora se tenha tornado costumeiro (e certamente apropriado) lamentar o hiato cada vez maior que separa o cientista profissional de seus colegas de outras disciplinas, pouca atenção tem sido prestada à relação essencial entre aquele hiato e os mecanismos intrínsecos ao progresso científico. 

  Desde a Antigüidade um campo de estudos após o outro tem cruzado a divisa entre o que o historiador poderia chamar de sua pré-história como ciência e sua história propriamente dita. Essas transições à maturidade raramente têm sido tão repentinas ou tão inequívocas como minha discussão necessariamente esquemática pode ter dado a entender. Mas tampouco foram historicamente graduais, isto é, coextensivas com o desenvolvimento total dos campos de estudo em que ocorreram. Os que escreveram sobre a eletricidade durante as primeiras décadas do século XVIII possuíam muito mais informações sobre os fenômenos elétricos que seus predecessores do século XVI. Poucos fenômenos elétricos foram acrescentados a seus conhecimentos durante o meio século posterior a 1740. Apesar disso, em pontos importantes, a distância parece maior entre os trabalhos sobre a eletricidade de Cavendish, Coulomb e Volta (produzidos nas três últimas décadas do século XVIII) e os de Gray, Du Fay e mesmo Franklin (início do mesmo século), do que entre esses últimos e os do século XVI. Em algum momento entre 1740 e 1780, os eletricistas tornaram-se capazes de, pela primeira vez, dar por estabelecidos os fundamentos de seu campo de estudo. Daí para a frente orientaram-se para problemas mais recônditos e concretos e passaram cada vez mais a relatar os resultados de seus trabalhos em artigos endereçados a outros eletricistas, ao invés de em livros endereçados ao mundo instruído em geral. Alcançaram, como grupo, o que fora obtido pelos astrônomos na Antigüidade, pelos estudantes do movimento na Idade Média, pela óptica Física no século XVII e pela Geologia Histórica nos princípios do século XIX. Elaboraram um paradigma capaz de orientar as pesquisas de todo o grupo. Se não se tem o poder de considerar os eventos retrospectivamente, torna-se difícil encontrar outro critério que revele tão claramente que um campo de estudos tornou-se uma ciência.

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