sábado, 14 de setembro de 2013

Iba Mendes: Jeca Tatu: o mal da terra


Iba Mendes: Jeca Tatu: o mal da terra:
"longo do século XIX e início do século XX, algumas questões assolaram o Brasil. Para os intelectuais do período, a chamada elit...



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"longo do século XIX e início do século XX, algumas questões assolaram o Brasil. Para os intelectuais do período, a chamada elite pensante do país, era preciso “construir” a representação da ideia de nação. Como nos diz André Botelho, tal pensamento assumiu, ao longo do tempo, diversos conteúdos, como território, natureza, dinastia, raça, religião, língua, cultura, todos focados na necessidade de manter a sociedade brasileira coesa. Para isso, as representações literárias do Brasil, iniciadas com o romantismo de José de Alencar, contribuíram muito para moldar este ideal. O que se procurou fazer, como nos diz Roberto Bitencourt da Silva, foi construir uma “moldura identitária” para a nação – Brasil – composta dos mais diversos elementos étnicos e culturais advindos de um passado escravocrata e colonial”.

Mais do que isso, era preciso encontrar a causa do atraso brasileiro. Jeca Tatu foi identificado por Lobato como o principal responsável, afinal, ele representava a maior parte da população brasileira, ou seja, os trabalhadores rurais mestiços. A primeira versão do Jeca traduzia a percepção das elites sobre o povo brasileiro. Lobato, porém, não foi o primeiro em sua ideia de retratar o caipira do interior paulista. Antes dele, muitos viajantes e escritores já haviam descrito este tipo rural. A diferença de Lobato está no fato de ele ter criado um estereótipo característico e nomeado tal representação, como podemos perceber na fala de Ricardo Luiz de Souza

A figura do caipira, ora visto como representante da tradição a ser preservada, ora definido como atrasado, supersticioso, avesso e alheio à modernidade que se implanta e que se deseja, já faz parte do imaginário paulista e em torno dele já se delineou toda uma literatura regionalista, que às vezes o louva, às vezes o critica, [...].
Em relação a ele, então, Lobato não inova, apenas cria o personagem que o encarnará de forma definitiva. O Jeca foi inspirado por um personagem real que tinha o mesmo nome e era neto de uma senhora que sempre o elogiava, até que Lobato o conheceu pessoalmente [...].

O Jeca foi a forma que Lobato encontrou para expressar o que entendia ou acreditava ser o problema ou, como ele mesmo definiu, “os males do Brasil”, uma vez que esta convicção também passou por transformações que foram transferidas ao personagem. Portador de inúmeros significados, Jeca Tatu consegue, em seu estado, sucintamente representar, senão o contraste, pelo menos o debate em torno da oposição entre campo e cidade, que assolava a intelectualidade brasileira.

Segundo Márcia Regina Capelari Naxara, a diferença entre campo e cidade foi enfatizada pela necessidade de pensar num Brasil moderno e de procurar por uma identidade nacional. A literatura regional salientou então, as diferenças existentes entre a população, num momento em que se procurava a homogeneidade. Diante deste embate, a maior parte da população, por viver no campo, era automaticamente identificada e rotulada como atrasada.

Para a mesma autora, o Jeca, enquanto uma das representa es que “fecundaram, constituíram e permaneceram no imaginário a respeito do brasileiro e do Brasil”, só foi possível de ser solidificado porque, na cabeça do povo, já havia elementos oriundos desta mesma concepção e visão de mundo. Da segunda metade do século XIX e o início do XX, a elite e a intelectualidade brasileira formularam uma série de representações sobre a população nacional, utilizando-se para isso das mais diversas teorias.

O contexto econômico, político e cultural, herança da colonização europeia, criou uma maneira própria de este grupo pensar a nacionalidade e a identidade do povo brasileiro, baseado em dois pontos considerados “chaves”: o meio e a raça, sendo que este último ganhou um maior destaque e importância. Segundo Naxara, o primeiro Jeca “veio ao encontro de todo um conjunto de representações que fazia parte de um imaginário que vinha sendo formulado desde épocas anteriores sobre o brasileiro.” Monteiro Lobato foi “feliz” ao conseguir materializar em uma única imagem, o Jeca, todo um pensamento sobre o nacional.

As várias representações que já existiam, “oscilavam da mais absoluta desqualifica ao a uma idealização romântica e condescendente.” Lobato apresentou o caipira brasileiro, fora do Romantismo. Sendo assim, a literatura foi o principal meio utilizado tanto para a discussão de teorias, quanto para a apresentação e a crítica das mais variadas ideias a respeito do povo brasileiro. Esse movimento do pensar a sociedade e a cultura ocorreu simultaneamente ao desenvolvimento da era do progresso, da ciência e das artes do século XIX.

O que se pretendia era construir e visualizar uma nação com uma identidade própria e elementos homogêneos e característicos que abarcassem todo o território nacional. Para isso, era preciso pensar nas origens e no povo que formavam o país, o que gerou um movimento de intensa negação desta história e desta constituição por parte da intelectualidade. Pensava-se o Brasil por aquilo que ele não tinha e por aquilo que não era. Todo esse processo acentuou-se no período de substituição da mão-de-obra escrava em que não havia trabalhadores que suprissem essa necessidade. Então, quando pensavam o país o viam também sem povo.

Procurava-se um povo para o Brasil, uma vez que este sempre foi visto de fora e retratado a partir das impressões de viajantes estrangeiros e da elite local, os quais tinham como referência o etnocentrismo. Os brasileiros           foram vistos de cima, sendo ignorados como povo, pois só os seus defeitos eram enfatizados. A população mestiça não conferia à nação uma unidade com características homogêneas. A elite não se identificava com o povo, por isso, permanecia afastada e não se reconhecia como tal. Identidade, nacionalidade, civilização e progresso, eram as palavras-chave para o entendimento e procura de soluções. Portanto, as concepções de Lobato são o que o reflexo da sociedade em que vivia.

Foi a partir do ideal de progresso, (necessário e inevitável), baseado nos modelos europeu e americano, que se formularam teorias pessimistas e fatalistas a respeito do povo brasileiro e de sua história. Através de uma análise determinista e evolucionista, associada à história e à cultura existentes, com os fatores étnicos e climáticos, elaborou-se uma ideia de atraso para o Brasil.
O Jeca Tatu é produto da vertente fatalista, que considerava os fatores naturais, o meio, como aquele que confere uma fraqueza (reforçada pela aceitação de sua inferioridade racial e cultural) ao homem que nele vive. Sendo assim, era impossível acompanhar o progresso.

A raça era tida como principal fator de diferenciação entre os povos. Nesse período, progresso e evolução caminhavam juntos, e eram utilizados como categorias explicativas do desenvolvimento das sociedades. Segundo Naxara, o progresso era tido como o “resultado da evolu ão natural do mundo e das sociedades.” O que se tinha era um Estado, mas não a Nação. Para se ter a Nação, seria preciso que o povo tivesse características uniformes, que dessem uma identidade ao brasileiro e permitissem seu reconhecimento. Essa identidade tão procurada para o povo brasileiro, devia ser pensada “em função do progresso e da possibilidade da forma ão de uma sociedade do trabalho no Brasil.” Isso porque se passava por um momento de transição entre o trabalho livre e o escravo.

Acreditamos ser pertinente também neste item responder à seguinte pergunta: quem afinal é o caipira? Para isso, utilizaremos alguns estudos feitos sobre o tema. Antonio Candido, na introdução de sua obra Os parceiros do Rio Bonito, conceitua os termos: cultura rústica e cultura caipira. O primeiro refere-se a sociedades e culturas tradicionais do homem do campo. No Brasil, esta expressão – rústico - tornou-se sinônimo de caboclo. Estes são os resultados do “ajustamento do colonizador português ao Novo Mundo, seja por transferência e modificação dos traços da cultura original, seja em virtude do contacto com o aborígine.”

O autor utiliza o termo caboclo para designar “o mestiço próximo ou remoto de branco e índio, que em São Paulo forma talvez a maioria da população tradicional.”Já o termo caipira é utilizado para indicar aspectos culturais. Porém, este fica restrito e refere-se somente à área de influência histórica paulista. Para Candido, como resultado das Entradas e Bandeiras feitas pelos paulistas nos séculos XVI, XVII e XVIII, não temos apenas uma expansão geográfica ou a incorporação de novos territórios Coroa Portuguesa, mas, uma “definição de certos tipos de cultura e vida social, condicionados em grande parte por aquele grande fenômeno de mobilidade.” E a essa cultura pode-se chamar de cultura caipira.

Toda a estrutura social, ou seja, a organização do modo de vida caipira está baseada no seu nomadismo, nessa mobilidade que independe da vontade dele, mas que se tornou parte da sua vida. O conhecimento da natureza, a exploração dos recursos naturais necessários à sobrevivência, a manutenção de uma dieta compatível com o mínimo vital, o plantio de produtos mais fáceis e rápidos de serem cultivados aliados as atividades de coleta, caça e pesca, a não preocupação em construir uma casa, ou ter uma morada fixa, em não acumular coisas, objetos que depois não pudessem ser carregados, faz parte da cultura caipira, herança do ritmo nômade do bandeirante, mas que depois tornou-se presente pela falta de posse das terras por eles ocupadas.

Conforme Antonio Candido, o caipira procurava novas terras também como meio de obter uma maior produtividade, o que dispensava o desenvolvimento de uma atividade intensa. Com isso, sobrava muito tempo para o lazer que intensificava e mobilizava as relações sociais, amenizando o isolamento vivido por estas populações. O autor trabalha com a ideia de que as carências de sua dieta impediam o desenvolvimento de atividades extras, o que era corrigido por um ritmo econômico e pela organização social.

Hubert Alquéres ao escrever o prefácio do livro          Vivências caipiras: pluralidade cultural e diferentes temporalidades na terra paulista (2005), de Maria Alice Setubal, reforça o conceito de caipira utilizado por Antonio Candido

Caipira, no senso comum e preconceituoso, é o habitante de nosso interior atrasado, de instrução precária e costumes ultrapassados. Para os especialistas, contudo, caipira é a parcela de nossa população que resultou da miscigenação original entre brancos, índios e, mais tarde negros, principalmente em São Paulo, e cuja cultura rústica, embora transformada e resignada, permanece como parte integrante da cultura nacional.

A autora, ao longo de sua obra, retifica a fala de Alquéres e acrescenta que “podem ser considerados como os primeiros paulistas. Ainda que não tenham características físicas relativamente homogêneas, eles se destacam por se sentirem ligados a um modo de viver rústico que se desenvolveu no interior paulista.”

[...] o mundo caipira começou a se estabelecer com a fixação das moradias no interior paulista, a partir das bandeiras que se adentravam no sertão. Alguns setores exerceram nítida influência nesse processo: terra abundante, mobilidade constante, caráter aventureiro do mameluco e relação visceral com a natureza. Essa herança portuguesa e indígena, aliada às constantes expulsões da terra por falta de documentação [...] e, posteriormente, ao avanço das condições capitalistas no campo, gerou um caráter provisório de existência e uma cultura material específica [...].

Eles foram “os pioneiros na luta contra os índios para abrir florestas e plantar.” Mas, como não possuíam nenhum documento que comprovasse a posse da terra, eram constantemente expulsos, o que gerava o movimento contínuo desses grupos, em busca de novos lugares para se estabelecer. A origem do rótulo de preguiçoso está vinculada ao modo de produção que possuíam, incompatível com as fazendas de café, quando comparados.

Para Eunice Durham, o processo histórico da formação da comunidade cabocla em território brasileiro, nos remete ao fim da época colonial. A ocupação de grande parte do território nacional havia sido feita por uma população predominantemente livre, dedicada em parte à agricultura, voltada para uma economia de subsistência, mantendo relações precárias com as áreas urbanas e as áreas de produção comercial. Essa população habitava, de maneira pouco uniforme, quase toda a região Sul e o interior do estado de São Paulo, espalhou-se pela região abandonada pela mineração e se estendeu pelo interior da Bahia, do Nordeste e da Amazônia.

Como consequência, nas regiões distantes do perímetro urbano ocorreu a formação de uma população economicamente marginal, descendente de portugueses, negros e índios, que vive em acentuado isolamento. A economia de subsistência que deu margem à cultura rústica ou cabocla se constituiu como única forma possível de trabalho livre, numa sociedade rural voltada para a produção de artigos agrícolas de exportação. Assim, a possibilidade de sobrevivência do lavrador, que contava apenas com a força de trabalho da unidade familiar, dependia de um ajustamento ao meio que lhe permitiria a produção dos meios de subsistência.

No entanto, não há uma designação uniforme para esta população que se caracteriza pela produção direta da subsistência, pela participação em uma ordem tradicionalista e pela organização dos grupos locais em comunidades vicinais. Antonio Candido prefere a designação “homem, cultura e sociedades rústicas”, utilizando o termo “caipira” para demonstrar sua variante paulista. Oliveira Viana emprega as expressões “matuto”, “sertanejo” e “gaúcho” para indicar as variantes mineira, paulista, nordestina e sulina do homem rural. Mas predominam o termo “caboclo”, e seus correspondentes, “cultura e sociedade cabocla”, utilizados por Emílio Willems e “sociedade rural tradicional”, empregado por Eunice Durham.

Para Carmem Kummer, se Emílio Willems e Antonio Candido definiram claramente o caboclo como o cruzamento interétnico entre portugueses e indígenas, o discurso médico não oferecia a mesma explicação. Em outras palavras, apesar da existência da classificação racial para os habitantes do interior, não h explicação étnica para as palavras “sertanejo e caboclo”. São termos utilizados prioritariamente para designar um modo de vida rústico, pobre e diferente da vida moderna das capitais, portanto, estereotipado. Por outro lado, considerando que havia pouca clareza na definição do caboclo com relação à raça, era possível tentar definir o caboclo pelo que ele não era: negro, branco, mulato e índio.

Em Amadeu Amaral, no seu estudo sobre o dialeto caipira publicado na Revista do Brasil em 1918, podemos encontrar algumas definições e contornos a cerca do pensamento da época:

CAIPIRA, é o habitante da roça, rústico. Próprio de matuto, digno de gente rústica. [...] O caipira genuíno vive hoje, com pouca diferença, como vivia há duzentos anos, com os mesmos hábitos, os mesmos costumes, o mesmo fundo de ideias. [...] Ao tempo em que o célebre falar paulista reinava sem contraste sensível, o caipirismo não existia apenas na linguagem, mas em todas as manifestações da nossa vida provinciana. De algumas décadas para cá tudo entrou a transformar-se. A substituição do braço escravo pelo assalariado afastou da convivência cotidiana dos brancos grande parte da população negra, modificando assim um dos fatores da nossa diferenciação dialetal. Os genuínos caipiras, os roceiros ignorantes e atrasados, começaram também a ser postos de banda, a ser atirados à margem da vida coletiva, a ter uma interferência cada vez menor nos costumes e na organização da nova ordem de coisas.

Maria Alice Setubal afirma que a marginalização sofrida por estes sujeitos vem dos tempos da colônia em que, mesmo sendo livres, por viverem “margem do sistema agro-exportador das grandes fazendas paulistas” eram deixados de lado, minimizados e ridicularizados. O modo de vida caipira, que seguia o ritmo da natureza, era incompreendido e intolerado pelos fazendeiros de café, que criaram um estereótipo a respeito deste grupo social, ou seja, caracterizam este determinado grupo, rotulando-os sem nenhum fundamento, apenas por seu comportamento e aparência, reforçando assim o preconceito.

Segundo o Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa, um ser estereotipado seria aquele que é sempre o mesmo, que não varia . E no Dicionário de Sociologia de Wahington dos Santos, encontramos a seguinte definição para estereótipos

Imagens preconcebidas das coisas e dos seres, que se representa o homem médio de certo meio social. Representação coletiva, consistente em verdadeiro esquema, verbalizado ou não, pelo qual as características de indivíduos, grupos ou instituições características de indivíduos, grupos ou instituições são simplificadas e reduzidas a uma imagem, cuja evocação pode provocar as mais diversas descargas emocionais. São determinados preconceitos ou prejulgamentos a respeito de pessoas ou etnias, de nacionalidades ou de sexos. [...] Os estereótipos não têm qualquer fundamentação científica, generalizam demais e deturpam a realidade.

Para Chiarelli, “o Jeca, apesar de mais próximo da situação real do homem do campo brasileiro, ainda é uma imagem, uma imagem criada por um sujeito que percebe o outro (e esse “outro”, no caso, o brasileiro) apenas como objeto.” Já para Enid Yatsuda, o caipira encarnou anseios e receios dos outros, tendo seu significado mudado de acordo com pontos de vista que nele enxergaram apenas a projeção de valores ideológicos.

Outro motivo da desvalorização dos costumes nativos, mais especificamente do modo de vida caipira, está na herança da colonização portuguesa, em que “Os modelos valorizados são aqueles oriundos da metrópole e, consequentemente, a cultura material e imaterial do povo da colônia é desqualificada, gerando perda da auto-estima, da criatividade.” Ou seja, a forma como a elite brasileira pensava o progresso e via como civilização apenas a Europa, teve um “impacto decisivo no modo de vida e na priorização de valores, costumes e especialmente de políticas econômicas e sociais.”

Conforme Sevcenko foi após as mudanças ocorridas no Rio de Janeiro que a ideia da preguiça nacional se acentuou, principalmente sobre o homem do campo. A ênfase na divisão da sociedade em grandes cidades industrializadas e do campo como “indolente” fez com que um novo tipo de preconceito aparecesse entre a população. As cidades eram vistas como fontes de produção e acumulação de riquezas, enquanto o campo, que seguia o ritmo da natureza, mesmo sendo o café o principal produto de exportação do país, era visto como o símbolo do atraso e do antigo regime político
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Segundo Raymond Williams, “o campo e a cidade são realidades históricas em transformação tanto em si próprias quanto em suas inter-relações” . As concepções a respeito desses espaços assumiram diversas formas ao longo do tempo. Nos séculos XVI e XVII, a cidade esteve associada ao dinheiro e à lei; no século XVIII, à riqueza e ao luxo; no XX, à imagem da turba, das massas; no final do XIX e durante o XX, à cidade coube a imagem da mobilidade e do isolamento. Enquanto o campo esteve sempre coligado à ideia de estabilidade. Para o autor, as mudanças ocorridas nas relações entre campo e cidade se deram especificamente na Inglaterra, após a Revolução Industrial. Mas, de uma maneira geral,

Em torno das comunidades existentes, [...], cristalizaram-se e generalizaram-se atitudes emocionais poderosas. O campo passou a ser associado a uma forma natural de vida – de paz, inocência e virtudes simples. À cidade associou-se a ideia de centro de realizações – de saber, comunicações, luz. Também constelaram-se poderosas associações negativas: a cidade como lugar de barulho, mundanidade e ambição; o campo como lugar de atraso, ignorância e limitação. O contraste entre campo e cidade, enquanto formas de vida fundamentais, remonta Antiguidade clássica.”

Para Enid Yatsuda, a conjuntura que melhor explicita a oposição caipira versus citadino é a do desenvolvimento da industrialização, que trouxe à tona a chamada ideologia da modernização. Nesse momento, para os defensores da principiante industrialização, o caipira, enquanto representante do campo, tornou-se símbolo do atraso. Mais do que isso, ele passou a ser considerado como o elemento que impedia o desenvolvimento da nação, agora localizado na zona urbana.

A partir de meados do século XIX, o imaginário paulista esteve pautado nas ideias de progresso e modernidade, concepção essa mais difundida depois do advento da República, em que os republicanos viam com desprezo o passado colonial e imperial, considerando estes modelos como formas atrasadas de vida. Assim, cada vez mais as referências europeias e, posteriormente, norte-americanas, foram trazidas como padrão a ser seguido, em detrimento do patrimônio cultural nacional.

Em meio a essas modificações, surgiu Jeca Tatu que é um discurso coletivo, proferido não só por Monteiro Lobato, mas também pelos cafeicultores do Vale do Paraíba e depois pelos sanitaristas que tentaram combater as inúmeras doenças existentes entre a população brasileira, motivadas pela extrema falta de higiene. Como veremos nos trechos a seguir, retirados da Revista do Brasil, o Jeca passou a ser usado para compreender os problemas do país e para representar o homem nacional.

Não quer dizer que o sertanejo, lutando contra os elementos, arrastando as longas caminhadas sob um sol de fogo, entrando destemido nas matas amazônicas, seja literalmente um Jeca Tatu. Porém, quem viaja e quem vê pelo sertão o fatalismo sertanejo, a limitação da sua agricultura, a instintiva desconfiança pela civilização, a sua habitual indolência que o faz esquecer a rude lição das cenas e nada enceleirar nos anos de inverno, a sua palestra, a sua ignorância política, enfim, os remédios populares, a ingênua crendice dos curandeiros e das meizinhas ver a imensa verdade das páginas vivas do “Urupês”. Não é preciso estender a generalidade do tipo a todo brasileiro, porém Jeca conservador das velhas tradições, Jeca nômade, desconfiado, levando o incêndio a uma floresta para destocar meio palmo de mato, Jeca usando da prodigiosa fecundidade da terra como refúgio natural à sua indolência, existe, “magina” e nosso contemporâneo.

Géca Tatu figura typica de uma collectividade, é uma excepção. O seu grande, o seu extranho e extraordinário poder da expressão – a singularidade. Não é o caipira commum. É o excepcional. [...] Si todos os caboclos fossem a imagem exacta de Géca, não o teria descoberto Monteiro Lobato. [...] É um grande exemplo, um symbolo poderoso, um epítome vivo. Vêl-o é ver a olho nú tudo o que na collectividade mais ou menos nos escapa, liquefeito e dissolvido na massa e que só elle crystalisa. O consenso publico, expresso em popularidade e fama, consagrou-o em definitiva. Géca representa o caboclo brasileiro, queiramos ou não. [...] Géca significa o brasileiro como Quixote todos os idealistas, confirmando ambos, no emtanto, o principio da excepção creadora. [...] Na verdade, só a excepção crêa. [...] Géca Tatú, creatura de excepção, por sua vez creará. E quanto já não tem creado! Sôando no ar como um chicote erguido sobre a nossa apathia e indifferentismo, é o temeroso anathema que nos sacóde e desperta para a vida. [...] Géca é o pecado nacional. Não o neguem.

É esse discurso que vai revelar quem é realmente seu criador e qual é a sua visão sobre o mundo. Além disso, Lobato e os demais autores que escreveram sobre o Jeca, criaram imagens, necessidades e sentidos, vinculando um sistema de valores, ou seja, estereótipos de comportamentos humanos que são valorizados positiva ou negativamente por quem o escuta.

Isso é o que aconteceu com o Jeca. Uma vez propagado, ganhou uma imagem, a imaginação e a confiança do povo e o espaço tão desejado por seu criador, e está presente em nosso meio até os dias de hoje. Pois “o itinerário feito pelo discurso não se esgota no interior do próprio discurso, mas se projeta na história”.

É consenso entre a maioria dos estudiosos que o caipira de Monteiro Lobato, chamado de Jeca Tatu, teria surgido ao acaso em carta enviada à sessão Queixas e Reclamações, em 12/11/1914, do jornal O Estado S. Paulo e intitulada “Uma Velha Praga”, tornando conhecido o que seria um dos mais famosos personagens do escritor. Foi reforçado no mês seguinte com o conto “Urupês”, em 23/12/1914, no mesmo jornal.

Porém, Aluízio Alves Filho analisa uma série de documentos para mostrar que isto não poderia ter ocorrido, uma vez que o jornal não publicava cartas de leitores e que, desde 1909, Lobato era colaborador remunerado do periódico. Sendo assim, “Uma Velha Praga” foi um artigo escrito intencionalmente para publicação, intenção demonstrada em diversas cartas enviadas ao amigo Rangel desde 1911.

Ainda para Alves Filho, o Jeca é o produto do encontro das teorias que dominavam o cenário científico nas primeiras décadas do século XX e que Lobato conhecia muito bem. E entre elas estão as teorias de Arthur de Gobineau, Georges Vacher de Lapouge, Gustave Le Bon, Houston S. Chamberlain e Louis Agassiz. Basicamente, para este autor, o personagem passou por 4 fases: preguiçoso (Velha Praga), doente (Problema Vital), curado (Jeca Tatuzinho) e urbano (Zé Brasil).

Já para Mariza Lajolo, Jeca Tatu passou por apenas três transformações e aparições na obra de Monteiro Lobato: 1) Jeca Tatu (1914), quando aparece como piolho da terra, seminômade e inadaptável à civilização; 2) Jeca Tatuzinho (1924), onde foi apontado como vítima das precárias condições da nossa saúde pública, estava doente; 3) Zé Brasil (1947), que discute a precariedade de sua situação alienante e a atribui ao latifúndio e ao sistema econômico que regia a agricultura no Brasil, além de analisar a infra-estrutura e as condições de produção e relações sociais do país.

Para a autora, o primeiro está atrelado aos interesses do próprio Monteiro Lobato, ainda fazendeiro e indignado com as atitudes do referido sujeito. O segundo estava “inserido na máquina publicitária da indústria” farmacêutica nacional e o terceiro patrocinado pela Editora Vitória, aponta para a simpatia com o Partido Comunista Brasileiro, o que reflete as variadas posições ideológicas que Lobato percorreu.

O objetivo de Lobato ao publicar “Uma Velha Praga” era denunciar as queimadas provocadas por esses indivíduos e retificar a visão errônea que a cidade possuía e fabricava do homem rural. Isso explica o uso de adjetivos negativos usados para caracterizar o personagem nessa primeira fase. Segundo Passiani, a literatura do final do século XIX e início do XX era chamada de “sorriso da sociedade”, isto porque suas principais características eram o estetismo, a pureza verbal, a ausência de compromisso com os problemas sociais e o afastamento dos aspectos mais “grosseiros” da vida cotidiana. Lobato foi contra isso, ele mostrou um dos problemas, o que era então considerado um defeito.

Através do Jeca, Lobato atacou também o romantismo que retratava os caboclos como heróis fortes. Essa idealização de uma figura que, segundo Lobato não existia, impedia que se enxergassem os verdadeiros problemas do país. Segundo Passiani, os artigos “Uma Velha Praga” e “Urupês” denunciavam a deformação romântica que os literatos da cidade faziam ao homem do campo. Conforme o autor

[...] a reação de Lobato, travestida sob a forma do Jeca Tatu, não representava apenas a reação individual dele, Lobato, mas de todo um setor consideravelmente importante da sociedade paulista, uma oligarquia rural em crise. O fato de agir despropositadamente como porta-voz de parcela da aristocracia rural de São Paulo é também um fator a ser levado em conta no sucesso da recepção dos dois artigos já referidos. É por ser representante de todo um conjunto social específico que Lobato foi tão bem aceito nas páginas d’O Estado, e não devido apenas ao seu “talento” literário.

E em carta a Rangel encontramos a crítica aos românticos:

Rangel, é preciso matar o caboclo que evoluiu dos índios de Alencar e veio até Coelho Neto [...]. A nossa literatura é fabricada nas cidades por sujeitos que não penetram nos campos de medo dos carrapatos. [...] O meio de curar esses homens de letras é retificar-lhes a visão. Como? Dando a cada um [...], uma fazenda na serra para que a administrem. Se eu não houvesse virado fazendeiro e visto como é realmente a coisa, o mais certo era estar lá na cidade a perpetuar a visão erradíssima do nosso homem rural. O romantismo indianista foi todo ele uma tremenda mentira; e morto o indianismo, os nossos escritores o que fizeram foi mudar a ostra. Conservaram a casca... Em vez de índio, caboclo.

Contudo, Lobato acreditava estar retratando o Jeca exatamente como ele era, porém, ele desfigurava o homem do campo, uma vez que o via com os “olhos, interesses e preconceitos do fazendeiro,” pois na época ele ainda era dono da fazenda herdada do avô.

Por trás desta ideia, havia a intenção de implantar um sistema de trabalho eficiente, dentro das exigências da economia de mercado. Uma população doente não produziria.

Para Del Priore, o personagem criado por Monteiro Lobato (o Jeca Tatu) é a expressão do fazendeiro “com dificuldades em disciplinar a própria mão-de-obra.” Afinal, “vivenciou o colapso do sistema escravista [...]. Ele culpava os próprios ex-escravos e caipiras pelo fracasso das tentativas de regeneração do nosso sistema agrário.” Temos a confirmação disto em carta enviada ao amigo Rangel, em 20/10/1914, em que fala de sua intenção em escrever uma obra que fale sobre o caboclo piolho-de-serra “Atualmente estou em luta contra quatro piolhos desta ordem – “agregados” aqui das terras. [...] Meu grande incêndio de matas deste ano a eles o devo. Estudo-os.”

André Campos afirma que Monteiro Lobato deu tanta importância para este sujeito social pela necessidade que sentia em “atualizar as formas de dominação sobre os trabalhadores livres, no momento em que o país vivia a transição para o trabalho livre e a formação de um mercado interno capitalista”, uma vez que o Jeca Tatu representava um tipo de relação social herdada da escravidão.
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Fonte

VANESSA BALSANÉLLO XAVIER: "OS BRASIS DE MONTEIRO LOBATO: DE JECA TATU AO DESENCANTAMENTO". (Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em História junto ao Programa de Pós-Graduação em História, do Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Andréa Carla Doré). Curitiba, 2010.

Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

Disponível digitalmente no site: Domínio Público


FONTE: http://www.ibamendes.com/

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