sábado, 2 de novembro de 2013

Integralismo e determinismo racial no Brasil

abaixo o excerto da tese de doutorado de Natalia dos Reis Cruz, publicado por Iba Mendes, abordando a questão do racismo no Brasil da primeira metade do século XX

 


"As idéias dos teóricos raciais citados podem ser agrupadas em uma corrente de pensamento em voga no período em questão: o darwinismo social, cuja base era o determinismo racial. Os darwinistas sociais eram pessimistas quanto à miscigenação de raças, pois acreditavam que nem mesmo um processo de evolução social levaria à transmissão de caracteres adquiridos. Dentro desta concepção, as raças eram vistas como produtos finais, não poderiam ser “melhoradas” ou “aperfeiçoadas”, sendo imutáveis por natureza. Por isso, o cruzamento racial era visto como um erro, que levaria à degeneração racial e social.

O darwinismo social representou uma extensão para a esfera das sociedades da teoria de Charles Darwin (1809- 1882), cujo norte central era a noção de leis “naturais” que comandavam a evolução das espécies. Haveria as espécies mais aptas que sobreviveriam na luta pela vida, enquanto as espécies “inferiores” tenderiam ao desaparecimento. Herbert Spencer (1820-1923), o criador da expressão “darwinismo social”, tinha como pressuposto a evolução biológica ou social, um processo de contínua diferenciação e especialização. Segundo ele, “o progresso não é um acidente, é uma necessidade. A civilização, em lugar de ser um artefato, é parte da natureza (...) As modificações que a humanidade sofreu e está sof rendo são resultado de uma lei que subjaz a toda criação orgânica.” (Apud Fernandes, 2000:120)

Para Spencer, os seres humanos são desiguais por natureza, possuindo qualidades inatas “superiores” e “inferiores”, e esta visão é estendida para as sociedades humanas, que seriam marcadas, assim como o mundo natural, pela luta pela existência. (Idem:120-121) Povos ou raças “inferiores” tenderiam a produzir sociedades cujo destino seria a decadência e o fim.

Neste aspecto, os darwinistas sociais diferenciavam-se da concepção evolucionista, que percebia as diferenças entre os povos como contingentes e passageiras, defendendo a idéia de que todos os grupos sociais passariam pelos mesmos estágios de desenvolvimento, em um progresso constante, adotando a noção de humanidade única. (Schwarcz, op.cit:58) O darwinismo social rompeu com esta visão, negando a possibilidade de evolução para todos os povos e raças e difundindo a idéia de raças “superiores” e aptas à evolução e raças “inferiores”, incapazes de progresso.

A partir do século XIX, com a teoria das raças elaborada pelos principais teóricos racistas europeus, a diferença entre os povos passa a ser naturalizada, passando do reino da cultura para o universo da biologia, estabelecendo-se uma correlação entre caracteres físicos e atributos morais. A biologização das diferenças conferiu ao debate da época um status de ciência, de cunho determinista. (Idem:65)

No Brasil de fina l do século XIX e início do século XX, diversos autores debruçaram-se sobre a questão racial, influenciados pelas teorias raciais européias. No entanto, tais teorias foram readaptadas para a realidade social brasileira, marcada por uma intensa miscigenação. Era preciso conciliar o ideal racista europeu com a elaboração de um projeto de nação viável, em que a mistura de raças não fosse considerada um empecilho para o futuro e o progresso nacionais.

Os pensadores brasileiros que pensavam o problema das raças eram vinculados a diversas instituições de saber, que se tornaram centros de produção de idéias e teorias acerca da realidade nacional e da questão racial. Um exemplo era os museus etnográficos brasileiros, com destaque para o Museu Nacional, o Museu Paulista e o Museu Paraense de História, que, no período de 1870 a 1930, foram centrais à pesquisa etnográfica e aos estudos das ciências naturais.

O Museu Paulista, por exemplo, foi projetado e construído pelo governo imperial entre 1895 e 1890, cujo objetivo originar era celebrar a proclamação da Independência e a fundação do Império por D. Pedro I. Mas a partir da República, revestiu-se de novos significados. A memória e a tradição que, ao longo do século XIX, atrelavam a independência à emergência do Império constitucional e à monarquia no Brasil, reapareceram, na década de 1890, modificadas pela articulação do ato da Independência ao imaginário “renascimento da nação”, projetado no ideal republicano. (Oliveira, 1995:6) Sob a República, o Museu Paulista transformou-se em um poderoso recurso na difusão de uma nova leitura da história nacional. As lideranças republicanas defendiam “o governo do povo pelo povo”, aludindo a uma participação política ampliada. Porém, acreditavam que a viabilização deste princípio dependia da superação da “ignorância geral da população”, decorrentes dos anos monárquicos. Assim, do ponto de vista dos republicanos, era necessário “emancipar o povo”, dando-lhe uma educação que o preparasse para a cidadania. (Idem:6)

No final do século XIX, quando o museu foi construído, São Paulo era um Estado enriquecido pelo café e possuía algumas indústrias, convivendo com novas figuras sociais, como os imigrantes. O projeto de construção de uma instituição de ensino veio ao encontro dos ideais da elite paulista, ilustrada e preocupada com a cultura, o progresso e a modernidade. Esta elite estava influenciada pelas idéias positivistas que a ligavam aos princípios da ciência e da razão. (Elias, 1995:13)

Na década de 1920, o imaginário da Independência inscrito no Museu Paulista desdobrou-se e adquiriu novos contornos. Foi ao longo desse período que se conformou o projeto de transformar o museu em um museu propriamente histórico, pois até então, a instituição dedicava- se, prioritariamente, às ciências naturais. Esse projeto, idealizado por Affonso de Escragnolle Taunay, ao assumir a direção do estabelecimento, em 1917, visava recuperar o caráter de memorial, originalmente previsto, e voltava- se para a organização de espaços concernentes à rememoração de fatos históricos e tradições brasileiras e paulistas. (Oliveira, op. cit:7)

Os museus tinham em seus quadros muitos antropólogos, que se dedicavam a sistematizar e classificar povos e culturas. Eram, em sua maioria, adeptos das máximas do evolucionismo social, e pressupunham a existência de uma estreita analogia entre a vida biológica e a vida social. Seu foco de interesse era o desenvolvimento cultural da humanidade como um todo e não de uma sociedade específica, e consideravam que havia etapas de desenvolvimento pelas quais todos os grupos sociais passariam.

Dessa forma, o país era entendido como um imenso arquivo de documentos originais para o estudo das “etapas atrasadas da humanidade”, conforme pensava J. Batista Lacerda, que dirigiu o Museu Nacional de 1895 a 1915. Por compartilhar das idéias evolucionistas, Lacerda via um destino comum para a humanidade, e achava que a ciência poderia auxiliar na união entre os povos: “Cada século tem a sua missão a cumprir como cada indivíduo o seu papel a representar no teatro da vida ou na comunhão social, a do século atual é universalizar a ciência e confraternizar os povos.” (Apud Schwarcz, op. cit:70).

Apesar de adotarem o evolucionismo social como teoria para compreender a realidade social brasileira e sua ampla diversidade cultural e racial, os teóricos dos museus compartilhavam também algumas noções dos darwinistas sociais europeus, como a idéia de degeneração propiciada pela mistura de raças. Segundo Schwarcz (idem:93), esses cientistas procuravam encontrar não somente exemplos de culturas “atrasadas”, mas populações asselvajadas pela mistura racial. Herman von Ihering, zoólogo do Museu Paulista, afirmava: “É preciso entender a degeneração racial humana, para depois supor uma futura evolução.” (Apud idem:93)

Diante do inevitável fenômeno da depuração das raças, a teoria do branqueamento surge como paradigma de salvação nacional, fazendo a ponte entre a realidade brasileira altamente desfavorável, por ser miscigenada, e um futuro promissor, por meio do prevalecimento da raça branca. Lacerda, por exemplo, descobriu nos Botocudos o exemplo máximo de inferioridade humana, visto que se tratava de um povo “atrasado” ou “primitivo”, do ponto de vista da teoria da evolução social, mas via o branqueamento como uma grande perspectiva nacional. Havia a crença nas projeções populacionais, que, contrariando os censos demográficos, previa uma população cada vez mais branca. (Idem:94)"

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Fonte:NATALIA DOS REIS CRUZ: "O INTEGRALISMO E A QUESTÃO RACIAL. A INTOLERÂNCIA COMO PRINCÍPIO". (Tese apresentada ao Curso de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do Grau de Doutor. Área de Concentração: História Política. Orientador: Profa Dr.a Márcia Motta). NITERÓI, 2004.

Nota:
O título e a imagem inseridos no texto não se incluem na referida tese.

FONTE:
http://www.ibamendes.com/2010/11/integralismo-e-determinismo-racial-no.html


Tese de doutorado na íntegra, disponível em:
http://www.bdtd.ndc.uff.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=2187

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