por
Silvia
Chakian de Toledo Santos *
"O
racismo e o sexismo influenciaram as relações que determinaram a sociedade
brasileira no seu momento fundador. Isso está no DNA de nossa sociedade, é
estruturante. E hoje, mesmo considerando tudo o que já mudou em relação ao que
consideramos violência, não há como discutir violência contra as mulheres sem
discutir racismo e sexismo no Brasil."
Luiza
Bairros, socióloga, ex-ministra da Secr. de Política de Promoção da Igualdade
Racial
Apesar
dos inegáveis avanços e conquistas civilizatórias relacionadas aos direitos das
mulheres, o modo de produção e reprodução da sociedade contemporânea ainda dá
demonstrações de tolerabilidade quanto às violências e discriminações baseadas
no gênero. Isto se deve, em larga medida, à histórica - e distorcida - concepção
ontológica de mulher, deliberadamente associada ao pertencimento a um homem,
permitido, de quebra, o uso de violência para perpetuação desse
domínio.
O
quotidiano revela que ainda vivemos em uma sociedade marcada por relações
assimétricas de poder, responsáveis por profundas desigualdades sociais e
naturalização da violência contra a mulher, essa compreendida como um sistema
amplo de dominação masculina, onde masculinidade e poder são
sinônimos.
Mas se é fato que a discriminação de gênero, enquanto fenômeno social que afeta o pleno desenvolvimento da sociedade em geral, e das mulheres em particular, se acha presente indistintamente em todas as culturas, também é notório que ela não atinge de idêntica forma todas as mulheres, especialmente quando considerada sua combinação com os demais marcadores sociais, tais como raça, etnia, classe, identidade e orientação sexual - a feminista afroamericana Bell Hooks dizia que as mulheres não compartilham a mesma opressão, mas sim a luta para acabar com o sexismo, empreendendo esforços para o fim das relações baseadas em desigualdades de gênero socialmente construídas.
Nesse
sentido, a condição da mulher negra e as desigualdades que a impactam mais
negativamente devem ser analisadas sob a ótica da interseccionalidade definida
por Kimberlé Crenshaw, como a "forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a
opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades
básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes
e outras".
E
a combinação desses diferentes fatores de subordinação tem definido
historicamente a posição social das mulheres negras em inegável desvantagem em
relação aos demais grupos sociais.
Em
diversas nações as mulheres negras aparecem como a maioria das vítimas de
violência (aqui compreendidas a violência física, moral, patrimonial,
psicológica, sexual, simbólica, nas relações de trabalho, etc.) - e no Brasil
essa condição de maior vulnerabilidade também é evidente.
Segundo
dados da Central de Atendimento à Mulher (ligue 180), relativos ao ano de 2013,
59,4% dos registros de violência doméstica referem-se a mulheres negras. Com
relação às agressões físicas, segundo o dossiê Mulheres Negras do IPEA, também
de 2013, 74% das violências contra as mulheres negras ocorreram dentro de sua
rede de relações afetivas e de parentesco/conhecimento.
O
Dossiê Mulher 2015 do Instituto de Segurança do Rio de Janeiro aponta que 56,8%
das vítimas dos estupros registrados no Estado em 2014 eram
negras.
Além
disso, há registros de que nos exames sexológicos e demais perícias, são elas as
menos "tocadas" e analisadas pelos médicos.
O
mesmo documento revela que 62,2% dos feminicídios vitimaram mulheres pretas e
pardas, dado confirmado pelo IPEA, que conclui que entre as mulheres
assassinadas, mais de 60% são pretas ou pardas.
De
acordo com o Ministério do Trabalho, as mulheres negras são também a maioria
dentre as vítimas de assédio moral e sexual, bem como entre as vítimas de
tráfico de pessoas. Mulheres negras são maioria entre as pessoas que realizam
visitas a familiares em instituições prisionais e as que mais sofrem com as
revistas vexatórias; bem como são as que mais sofrem com a revitimização por
parte dos agentes públicos, invariavelmente desconfiados de sua narrativa -
lamentável situação que acontece, por exemplo, quando comparecem a Delegacia de
Polícia e são mais questionadas, tratadas com desprezo, menos valorizadas na sua
dor, etc.
Na
mesma linha, conforme dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade do
Ministério da Saúde de 2012, mulheres negras são 62,8% das vítimas de morte
materna - e não se deve perder de vista que especialistas consideram esse tipo
de morte evitável com o acesso a informações e atenção adequada.
Mais
ainda: 65,9% das mulheres submetidas a algum tipo de violência obstétrica no
Brasil (manifestação de violência de gênero ainda pouco estudada no país) também
são pretas ou pardas, segundo o estudo "Desigualdades sociais e satisfação das
mulheres com o atendimento ao parto no Brasil", estudo nacional de base
hospitalar publicado em 2014. Há registros de que sejam as menos anestesiadas,
como se fossem mais resistentes e tivessem que "suportar mais a
dor".
Mas
não é apenas na temática "violência" que os índices relacionados às mulheres
negras são mais alarmantes. Dados do Ministério do Trabalho sinalizam que essas
mulheres são contratadas em menor número e em ocupações mais precarizadas. Além
disso, revela-se que a mulher negra percebe vencimentos mais reduzidos para
exercer a mesma função desempenhada pelo seu semelhante masculino, seja ele
branco ou negro.
O
mesmo se afirma em relação à sua participação em postos de comando. A falta de
representatividade das mulheres negras nos espaços de poder é, talvez, a mais
eloquente demonstração do lugar social a ela destinado, limitando, portanto,
suas possibilidades de exercício da cidadania plena.
Não
bastasse, é fato que a sociedade cria estereótipos de gênero distintos para
mulheres brancas e negras. E isto se reveste em inaceitável forma de violência
simbólica.
Sob
essa ótica, a menina sofre diante da imagem de mulher perfeita vendida pela
mídia, de forma massificada, inatingível para padrões da raça negra, cabelo
liso, loira, olhos e pele clara. A mulher negra passa a ser adjetivada como
"beleza exótica", mesmo compondo 25% da população brasileira, o que pode
resultar na diminuição de sua autoestima em função do padrão de beleza racista,
desde muito cedo.
Pior.
A cultura de discriminação à mulher negra perpetua a hiperssexualização de seu
corpo, tratado como objeto sexual, com curvas atraentes e formas exuberantes, de
que são expoentes as famosas mulatas, em trajes mínimos, cujas imagens são
"vendidas" em larga escala aos estrangeiros, o que favorece e estimula a
acentuada exploração sexual no Brasil.
O
debate sobre os estereótipos de raça e gênero faz lembrar a famosa frase da
feminista negra e pioneira Lélia Gonzalez: "Além disso, o seguinte: sou negra e
mulher. Isso não significa que sou uma mulata gostosa, a doméstica escrava ou a
mãe preta de bom coração. Escreve isso aí, esse é o meu recado para a mulher
preta brasileira".
Assim,
os dados apresentados sobre as condições de segurança, trabalho e saúde das
mulheres negras revelam mais que estatísticas frias de vidas homogeneizadas e
massificadas. Desnudam que, além das opressões e violências características das
desigualdades de gênero, as mulheres negras ainda enfrentam as idiossincrasias
de sua cor da pele. E experimentam, cotidianamente, as manifestações mais
perversas do racismo e do sexismo no Brasil.
*
Silvia
Chakian de Toledo Santos
é Promotora de Justiça, Coordenadora do Grupo de Enfrentamento à Violência
Doméstica do MPSP-GEVID
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