A verdade científica, a objetividade e a neutralidade na ciência
Se formos avaliar o papel da ciência na
história humana, seremos tentados a acreditar que o “método científico” seria
uma das formas de produção de conhecimentos mais bem sucedidas que o Homem já
elaborou.
Por meio dele, o Homem pôde superar inúmeros limites e transformar sua relação com a natureza: erradicou doenças
endêmicas, foi ao espaço sideral, está decodificando códigos genéticos,
inventou o rádio, a televisão, o telefone, o laser, o microprocessador etc.
Segundo a Professora Cristina G. Machado de
Oliveira, na medida em que a ciência se mostrou capaz de compreender a
realidade de forma mais rigorosa e tornou possível fazer previsões, rapidamente
transformou o mundo. Diante de tantas maravilhas, desenvolveu-se a tendência de
desprezar outras abordagens da realidade (religião, filosofia, arte, etc).
Já no séc. XIX, o positivismo valorizava
exageradamente o conhecimento científico. Essa forma de pensar foi explicitada
pelo filósofo francês Augusto Comte, fundador do positivismo, corrente
filosófica segundo a qual a humanidade teria passado por estágios sucessivos
(teológico e metafísico) até chegar ao ponto superior do processo,
caracterizado pelo conhecimento positivo, ou científico. A preocupação
positivista de tudo reduzir ao racional redunda no seu oposto, ou seja, na
criação do mito do cientificismo, segundo o qual o único conhecimento perfeito
é o científico. Então, em que consiste tal
“mito”?
É uma crença de que a ciência possui um poder
ilimitado sobre as coisas e os homens, dando-lhes o lugar que muitos costumam
dar às religiões, isto é, um conjunto doutrinário de verdades atemporais,
absolutas e inquestionáveis.
O mito do progresso
Embutido no ideal cientificista, existe o mito do progresso. Segundo essa
concepção, o progresso é inicialmente algo embrionário, cabendo à ação humana
transformadora trazer à luz as possibilidades latentes. O progresso é explicado
como um fenômeno linear, cuja tendência automática é o aperfeiçoamento humano.
Por isso o ideal do progresso justificaria todas as ações humanas realizadas em seu nome. Mas infelizmente já conhecemos as conseqüências (as fábricas poluem, a especulação imobiliária destrói, a opulência não expulsa a miséria) – o que são de fato indicativos de regressão humana, o que nos leva a rever a noção de progresso.
O mito da tecnocracia e o mito do
especialista
Outra decorrência do cientificismo e da
exaltação do progresso é o mito da
tecnocracia. O positivismo garante a justificação do poder pela técnica e,
mais que isso, do poder dos tecnocratas. O saber derivado da ciência passa a
ser considerado o único a ter autoridade: portanto, o poder pertence a quem
possui o saber. Cria-se assim o mito do
especialista, segundo o qual, apenas certas pessoas têm competência em
determinados setores específicos.
A ciência, pode, portanto, servir à dominação
como produtora de idéias e discursos que sirvam de respaldo ao discurso dos
econômica e politicamente poderosos. A ciência possui esta potencialidade
porque ela é apresentada, como portadora da verdade. Ninguém pode negar que em
nossa cultura a ciência adquiriu um status de suprema guardiã da veracidade.
Tudo o que se fala em seu nome é escutado com temor e reverência, como se
houvesse saído da boca do mais infalível oráculo. Um absurdo, dito por um
cientista (ou atribuído a algum), pode transformar-se, em pouco tempo, em
artigo de fé para grande parte da população mundial.
É claro que temos bons motivos para confiar
nos diagnósticos e prognósticos da ciência, e a vida contemporânea não seria
possível se não pudéssemos ter essa confiança. O problema é que as pessoas
costumam confiar cegamente nas decisões, informações e recomendações dos
cientistas sem levar em conta uma série de fatores e interesses que podem estar
por detrás de suas atividades. Pois, embora a maior parte delas o ignore, o
fato é que eles muitas vezes são assediados por representantes de interesses
escusos, que, em troca de tentadoras bonificações, procuram convencê-los a
“chegar” a determinadas conclusões. E, além disso, pretende-se muitas vezes que
a ciência saia de seu estreito círculo de atuação no mundo material e explique
fenômenos que não são de sua alçada.
O mito da neutralidade da ciência
Outra ramificação importante deste mito está
na crença de que a ciência constitui um saber
neutro, isto é, que as pesquisas não sofrem nenhuma influência econômica ou
política e que cientistas visam apenas ao conhecimento “puro” e desinteressado.
Desse modo, não só a atividade científica estaria à margem das questões
históricas, como não caberia ao cientista discutir o uso político de suas
descobertas.
Essa imagem de neutralidade científica também
é ilusória. A maioria dos resultados científicos que usamos em nossa vida
cotidiana teve como origem investigações militares e estratégicas, competições
econômicas entre grandes empresas transnacionais e competições políticas entre
grandes Estados. Muito do que usamos em nosso cotidiano provém de pesquisas nucleares,
bacteriológicas e espaciais. Como produtora de tecnologia, a ciência pode ser instrumento de poder.
A inconsciência dos cientistas é a causa da
ambigüidade de suas atividades. Esta aptidão para se transformar em instrumento
de poder resulta, em primeiro lugar, de um aspecto perigoso e problemático da
tecnologia, o qual começou a se tornar evidente desde os primórdios desta. No
momento em que o homem percebeu que a técnica lhe possibilitava dominar os
processos naturais, ele também percebeu que ela possibilitava a dominação de
outros homens. Trata-se de um setor sombrio da ciência, do qual o principal
propulsor é a guerra. Segundo a revista Impact
of Science on Society, editada pela UNESCO em 1980, quase a quarta
parte dos recursos mundiais dedicados à pesquisa científica era consumida pela
pesquisa militar, e mais de meio milhão de cientistas estavam atrelados ao
desenvolvimento de novas armas.
Além disso, muitos pesquisadores acabam
trabalhando para projetos bélicos sem sequer sabê-lo, visto que seus trabalhos
são usados para fins clandestinos. É o que aconteceu, por exemplo, no caso dos
desfolhantes que foram utilizados pelos EUA na guerra do Vietnã, os quais
tiveram sua origem numa pesquisa que visava o desenvolvimento de produtos
agrícolas cujos resultados foram desviados pelos militares americanos.
Essa má utilização da tecnologia também é
geradora da falta de critério na seleção das pesquisas a serem realizadas. A
viagem à lua, por exemplo, que custou bilhões de dólares, foi um contra-senso
diante da situação calamitosa do mundo, com populações inteiras vivendo na
miséria e morrendo de fome.
Ainda segundo Cristina G. M. Oliveira, é a
filosofia que, diante do saber e do poder, avalia se estes resultados estão a
serviço do homem ou contra ele, isto é, se servem para seu crescimento
espiritual ou se o degradam se contribuem para a liberdade ou para a dominação.
Cabe, portanto, à filosofia recolocar o
problema da unidade do saber, tornado “esquizofrênico” pela ciência moderna, na
medida em que foi compartimentalizado. O resultado dessa fragmentação é que o
homem se torna o grande ausente da ciência, já que a razão é posta a serviço da
destruição da natureza, da alienação humana e da dominação.
Em síntese, temos a ilusão de progresso e de
evolução na ciência por dois motivos principais, segundo M. Chauí:
1. do lado do cientista, porque este sente
que sabe mais e melhor do que antes, já que o paradigma anterior não lhe
permitia conhecer certos objetos ou fenômenos. Tem o sentimento de que o
passado estava errado, era inferior ao presente aberto por seu novo trabalho;
2. do lado dos não-cientistas, porque vivemos
sob a ideologia do progresso e da evolução, do “novo” e do “fantástico”. Vemos
os resultados tecnológicos das ciências: naves espaciais, computadores,
satélites, fornos microondas, telefones celulares, cura de doenças julgadas
incuráveis, objetos plásticos descartáveis... e tais resultados tecnológicos
são apresentados pelos governos, pelas empresas e pela propaganda como “signos
do progresso”. O progresso é uma crença ideológica.
A conclusão é que, se há um 'discurso
competente', em contraposição, há os incompetentes (os elaborados por não cientistas...), cujo
não-saber supõe a aceitação passiva do discurso do saber.
Algumas referências bibliográficas utilizadas como fonte para elaborar desta breve síntese:
ResponderExcluir“A fabricação da ciência”, de A. F. CHALMERS;
“O que é ciência afinal?”, do mesmo autor.
“A estrutura das revoluções científicas”, de T. KUHN;
“A crítica e o desenvolvimento do conhecimento”, de T. LAKATOS e I. MUSGRAVE;
“A Lógica da Pesquisa Científica”, de K. R. POPPER
Se tiver alguma dúvida, entre em contato.
ótimo texto!
ResponderExcluirMuito grato, Thiago.
ExcluirQue bom que você gostou!
na verdade, esse texto é um pequeno resumo de um artigo muito mais extenso que estou elaborando, já que, evidentemente, o tema é bem mais complexo.
abraço!
muito bom mesmo
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ExcluirMuito Grato!!
ResponderExcluirMuito bom, bem elaborado e ao mesmo tempo com foco nas questões principais.Ótimo para utilizar com alunos do ensino médio!
ResponderExcluirGrato pelo comentário.
ExcluirA intenção era realmente essa: um texto sintético e simplificado tratando um tema bastante complexo e profundo, para que até um aluno que nunca viu esse assunto, pudesse ter uma noção básica elementar e clara.
ótima reflexão, Julio Cesar.
ResponderExcluirTudo é dual, tudo tem os dois lados. Tudo neste mundo é instrumento, ferramenta em nossas mãos. A ciência e as tecnologias funcionam da mesma forma...
Cabe a nós, refletir e questionar seus usos e fins...
Ótimas anotações!!
ResponderExcluirEspero o dia em que a humanidade aprenda que o caráter e o desenvolvimento social é que deveriam ser a pauta principal da ciência.
De nada adianta desenvolver algo além daquilo que não conseguimos enxergar, se fechamos os olhos para o que enxergamos.
Carlos! grato pelo seu comentário e reflexões!
ExcluirParabéns ao autor!
ResponderExcluirComo o colega disse mais acima, ótimo para trabalhar com alunos de ensino médio, simples sem desprezar nenhum aspecto importante do tema.
grato pelo seu comentário! fico contente que o texto lhe tenha sido útil.
ExcluirÓtimo texto! Acabei aprendendo mais do que esperava, mas, te trago uma dica: tente usar mais exemplos para colocarmos essas teorias em coisas do cotidiano!
ResponderExcluirObrigada!
Agradeço pela dica, Duda!
Excluirabraço!!
quais podem ser os exemplos de cada um?
ResponderExcluirÉ muito bom quando alguém competente contesta os "donos da verdade".
ResponderExcluirAjudou muito para a minha prova. Tô no 9°ano
ResponderExcluirque bom!!!
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