domingo, 28 de maio de 2023

resenha filme Muito além do Jardim



Muito além do Jardim

Antes de aprofundarmos nos aspectos mais interessantes do filme, alguns dados históricos:

O filme é uma adaptação para o cinema, da obra “Being There”, de Jerzy Kosinski (1933-1991), publicado em 1970, feita por Hal Ashby (lançado em 1979). No Brasil, o filme também recebeu o título de “O Videota”.

No filme, Peter Sellers interpreta Chance, um homem ingênuo que nunca havia saído dos limites da casa de seu patrão e que passou sua vida toda cuidando do jardim e... vendo televisão. Ele nunca conheceu outras pessoas, além dos poucos funcionários da casa. Então, o que ele conhecia do mundo advinha basicamente do seu ofício de jardineiro e do “lixo cultural” advindo dos programas e propagandas que assistia pela TV.  

A situação dele de fato se complica quando seu patrão (dono da casa) morre. O protagonista é então despejado e, pela primeira vez, é forçado a interagir com pessoas desconhecidas que encontra nas ruas de Nova Iorque. Por conhecer apenas o mundo a partir da cosmovisão distorcida apresentada pela TV, sua ingenuidade o coloca em situações críticas, ao mesmo tempo engraçadas e perigosas. Como ele não possui os condicionamentos socioculturais, ele não reconhece situações de risco e tampouco tem noções de autodefesa (para se ter uma ideia, quando encontra uma gangue na rua, tira o controle remoto da TV que estava em seu bolso para tentar "desligar" os delinquentes). 

Mas o jardineiro Chance, curiosamente, não se preocupa com nada disso, já que não se é consciente da sua condição. Se por um lado é ingênuo e vulnerável, por outro lado, sua apatia o leva a nada temer, nada o deixa inseguro, ansioso, amedrontado ou envergonhado. 

Ele não se autodespreza, nem superestima a si próprio diante dos desafios que surgem naturalmente à frente dele. É assim que, aos poucos, de tanto se mostrar autoconfiante e destemido, acaba impressionando outras pessoas que passam a admirá-lo e, consequentemente, a superestimar suas falas, por mais simplórias que sejam, passando a interpretá-las como se fossem profundas metáforas de teor político-existencial ou filosófico.

Vê-se que o jardineiro fala do que conhece: flores, árvores, estações do ano... além, é lógico, de frases prontas que repete mecanicamente de tanto assistir TV. Contudo, por falar apenas do que conhece, fala com convicção, e assim ganha respeito.

Então, embora Chance fale objetiva e estritamente da “jardinagem e das coisas do jardim”, as pessoas insistem em buscar um significado oculto mais profundo onde simplesmente não há nada além da descrição de acontecimentos naturais. E é assim que, inusitadamente, a maioria dos que interagem com ele, acabam tomando-o como um erudito respeitável, um tipo de 'sábio contemporâneo'.

É fato que, nas sociedades humanas em geral, em todos os tempos, as pessoas se sentem carentes de bons conselheiros. Buscamos pessoas aparentemente mais inteligentes, mais cultas, mais fortes ou mais experientes que nós... esse não é o problema. O problema começa quando buscamos ansiosamente por “modelos” de conduta, anulando nosso próprio senso crítico ee de reflexão. Quando nos encantamos demasiado com os “super-homens”, passamos a superestimar suas capacidades, em detrimento do nosso próprio bom senso e capacidade de discernimento.

Entretanto, é fato também que o ser humano em algum momento sente-se perdido, sozinho ou desesperado, ao ver que seu destino se desenrola sem que suas ações/intenções exerçam controle sobre o que acontece ao redor. É então, quando buscamos um sentido, para a vida e para os acontecimentos... há uma busca por profetas, oráculos, alguém que nos “revele a verdade”. Se as pessoas passarem a acreditar que esse alguém tem dons especiais , então, facilmente passam a aceitar seus conselhos sobre “o que fazer” e “o que não fazer”.

No filme, acidentalmente o protagonista Chance é alçado à categoria de celebridade. Sem querer, chega até a inspirar um discurso do presidente norte-americano, que anda preocupado com a recessão... “Em um jardim, há uma estação para o crescimento das plantas. Há a primavera e o verão, mas também o outono e o inverno. E depois, a primavera e o verão voltam. Enquanto as raízes não forem cortadas, tudo está bem, e tudo continuará bem”. diz Chance. Ele está falando, obviamente, do jardim e de jardinagem, a única coisa que ele conhece... mas as pessoas escolhem acreditar que ele fala por metáforas, de profundas questões políticas e filosóficas...

Ora, neste ponto a obra apontar de forma sarcástica para uma realidade patente da nossa pós-modernidade: o protagonista que, no fundo, é ingênuo e de certo modo alienado dos problemas sociais, “educado estritamente por programas de TV”, acaba sendo erigido pela mídia a celebridade nacional. Isso nos faz refletir: quão grande é o poder de manipulação da mídia de massa, que consegue transformar pessoas rasas, em ícones exemplares, a serem respeitadas como modelos a serem admirados/copiados (muitas vezes, são essas pessoas que acabarão eleitas para dirigir as nações mundo afora).

Assim como procuramos por sábios e acabamos encontrando muitos personagens como Chance, também podemos considerar um outro olhar: 

Em muitas situações cotidianas, Chance somos nós: construímos parte de nossa visão de mundo a partir dos conteúdos audiovisuais que assistimos todos os dias, anos a fio, recebidos por meio de “programas” que assistimos em alguma tela. Sem perceber, estamos encarnando o papel de Peter Sellers, toda vez que ficamos por horas paralisados e maravilhados, engolindo conteúdos apresentados nas telas de uma TV, de um computador ou aparelho celular “smartphone” e/ou “tablet”.

Se formos realmente sinceros e autocríticos, vamos notar que, assim como Chance, gastamos um tempo inestimável de nossas vidas com “conteúdos midiáticos” quase que absolutamente ‘desconectados’ da verdadeira realidade da vida que acontece ao nosso redor, minuto a minuto. Em síntese: “Conectamo-nos” a quantidades cada vez maiores de conteúdos midiáticos tecnológicos, na mesma medida em que estamos nos “desconectando” das pessoas de verdade que nos rodeiam.

O filme retrata o personagem Chance como um ser humano individualista e apático, quase sem empatia e totalmente carente de experiências de vida em coletividade. Mas isso não é por acaso: Chance é uma metáfora da alienação do homem moderno, espectador de telas de TVs, PCs e “smartphones”: a falta de questionamento, a aceitação de fatos absurdos e de tragédias sem maiores reflexões. 

Um outro ponto importante que se destaca na obra: Quando Chance é forçado a “participar” da sociedade, ele não tenta fingir o que não é... são as próprias pessoas que escolhem como querem significar suas respostas (o que o fazem a partir de suas próprias expectativas e carências íntimas). 

E não isso mesmo que fazemos durante nossa vida toda? Não somos sempre nós a escolher os significados das experiências e discursos com os quais nos defrontamos? 

A escolha é, portanto, pessoal, subjetiva, o que não quer dizer que seja livre. Nossas escolhas são quase sempre condicionadas culturalmente. Quer dize: Somos nós que escolhemos interpretar nossa experiência pessoal no mundo, ou como um milagre empolgante ou como uma banalidade entediante... escolhemos, a cada momento, ver a bênção ou ver a maldição. 

Não há um significado intrínseco cem por cento objetivo nas filosofias e ideologias humanas, não resta uma verdade absoluta autoevidente. Somos sempre nós a eleger o sentido e/ou significado de cada paradigma ou fenômeno que se nos apresenta.

Então, como no caso dos demais personagens do filme, também nós mesmos estamos muitas vezes projetando nossos desejos e anseios nos outros. Seja carentes emocionalmente ou carentes racionalmente, buscamos respostas e sentidos para nossos dramas e tragédias íntimos. Quando não encontramos as respostas em nós, elegemos algum modelo (“pessoa ou ideologia salvadora”) para nos redimir e acalmar. O triste é que, se não encontramos o que estamos buscando em nós mesmos, na essência íntima de nosso próprio Ser, jamais o encontraremos tampouco “fora” de nós. Seja o que for que buscamos, não estará "fora". O "exterior" nunca preenche o vazio "interior". Um sempre é o reflexo do outro.

Há, por fim, um último aspecto a considerar: o jardineiro Chance, a exemplo do protagonista "Forresp Gump", não desenvolveu um ego. Por isso, nunca se sente vítima dos eventos/pessoas ao redor...  o brilho que emana desses protagonistas simula o brilho natural da própria essência humana, quando ainda não foi ofuscada pelos invólucros dos preconceitos, pelas barreiras dos traumas, pelo engessamento dos condicionamentos mecânicos. 

E essa condição nos faz de certo modo admirá-los, como admiraríamos o brilho essencial de uma criança inocente. A postura estoica de Chance e de Forrest, sem se importarem com elogios ou críticas, os permite viver em paz, mesmo rodeado de pessoas cheias de malícia e más intenções. Por estarem praticamente desprovidos de ego, não sofrem como as demais pessoas, vivem praticamente em um estado edênico.

Fica então um outro conselho sutil: busquemos nosso estado essencial, além do ego... quer dizer, cessemos o processo diário de identificação de nós mesmos com o ego. Não somos o ego! Abandonando aquilo que não somos, conquistamos a paz que almejamos, aqui e agora.. não amanhã ou noutro lugar, mas agora mesmo. Distintamente, porém, de "Chance" e de "Forrest Gump", não sejamos idiotas ou tolos, mas conscientes desse mesmo ego, conscientes da própria ignorância. 

 

Ficha Técnica
Título Original: Being There
Gênero: Comédia
Tempo de Duração: 130 minutos
Ano de Lançamento (EUA): 1979
Estúdio: BSB / CIP / Enigma / Fujisankei / Lorimar Film Entertainment / NatWest Ventures / Northstar
Distribuição: United Artists / Warner Bros.
Direção: Hal Ashby
Roteiro: Jerzy Kosinski
Produção: Andrew Braunsberg
Música: Johnny Mandel
Fotografia: Caleb Deschanel
Desenho de Produção: Michael D. Haller
Figurino: May Routh
Edição: Don Zimmerman


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