José Luiz
Fiorin – ed. Ática, 1988 (série Princípios)
desconheço o autor da síntese abaixo. Se algum leitor souber, me informe, para que eu mencione os devidos créditos.
. Introdução
A linguística não se preocupou com as relações entre
a linguagem e a sociedade, mas apenas com as relações internas entre os
elementos linguísticos.
A
linguagem é, antes de tudo, uma instituição social, o veículo das ideologias, o
instrumento de mediação entre os homens e a natureza, entre os homens e outros
homens.
O objetivo
do livro não é mostrar que uma pronúncia de prestígio é imposta com a
finalidade de discriminar pessoas; nem que o acesso a certas posições de destaque
está ligado à aquisição de variedades linguísticas consideradas certas ou
elegantes; nem que a norma linguística utilizada pelos que detêm o poder
transforma-se em “língua modelo”; nem que as variedades linguísticas utilizadas
pelos segmentos sociais subalternos são consideradas “erros”, “transgressões” e
por isso seus usuários são ridicularizados; não é dizer que a linguagem é um
instrumento de poder e que os segmentos sociais dominantes tentam ridicularizar
a palavra dos dominados... O objetivo
do livro é refletir sobre as relações que a linguagem mantém com a ideologia: o autor deseja analisar qual o lugar das determinações ideológicas neste complexo fenômeno que é a
linguagem, bem como analisar como a linguagem veicula a ideologia, demonstrando o que é que é
ideologizado na linguagem.
2. Marx e Engels dão as primeiras dicas
Os autores da obra A ideologia alemã mostram que, nem
o pensamento, nem a linguagem constituem domínios autônomos, pois ambos são
expressões da vida real.
Ao
mesmo tempo em que goza de certa autonomia, a linguagem sofre determinações
sociais e é preciso separar estes dois níveis: o de sua autonomia e o de suas
determinações.
3. As primeiras distinções
A língua é social na medida em que é comum a todos os
falantes de uma comunidade linguística.
O
sistema (língua) é mais do que uma lista de palavras, ela é um sistema de
oposições, de valores ( /l/ é diferente de /r/, diferente de /m/.....; dizemos o
homem e não *homem o ...)
Um
sistema linguístico é uma rede de relações que se estabelece entre um conjunto
de elementos linguísticos e estas relações dão um determinado valor a cada
componente do sistema e permitem selecionar o elemento apropriado para figurar
em cada ponto da cadeia da fala e combinar adequadamente esses elementos entre
si. A língua é uma estrutura internalizada pelos falantes (abstrata) que
se realiza nos atos de fala.
Necessidade de distinguir discurso e fala
Discurso: são as combinações de elementos linguísticos
(frases ou conjuntos de frases), usadas pelos falantes como o propósito de
exprimir seus pensamentos, de falar do mundo exterior ou de seu mundo interior,
de agir sobre o mundo.
Fala:
é a exteriorização psico-físico-fisiológica do discurso. Ela é
rigorosamente individual, pois é sempre um eu quem toma a palavra e realiza o ato de
exteriorizar o discurso.
4. Quem determina o quê?
A fala não sofre qualquer determinação social, mas o
discurso sim.
Se
o sistema se altera por causas internas ao próprio sistema (fatores linguísticos:
stella> estrela; latu>lado; desaparecimento do neutro etc.) ocorre também
que algumas categorias gramaticais ou semânticas podem se justificar podem
depender de fatores sociais (no latim árvore é feminino = por ser
reprodutora, gerar frutos; o uso do masculino como genérico = o prestígio dos
homens nas sociedade patriarcais...)
Se
na história da língua se perdem as razões que motivam o aparecimento de certas
categorias, é no nível do discurso que devemos, pois, estudar as coerções
sociais que determinam a linguagem.
5. Discurso: autonomia e determinação
A frase não é um amontoado de palavras e o discurso
não é um amontoado de frases.
O
discurso pressupõe uma sintaxe e uma semântica.
A
sintaxe discursiva compreende os processos de estruturação do discurso:
a)
se ele é construído na primeira pessoa ou não:
Eu acho que Pedro foi ao cinema: efeito de subjetividade
Pedro foi ao cinema: efeito de
objetividade
b)
o tipo de discurso:
Discurso
direto (efeito de sentido de “verdade”): Vou trabalhar pelo social.
Discurso
indireto: Ele disse que vai trabalhar pelo social. Ele pensa trabalhar pelo social
A
semântica discursiva diz respeito aos conteúdos que são investidos nos
moldes abstratos sintáticos: determinar o tipo de discurso é um procedimento
sintático, mas a personagem a quem se delega voz, o que ela diz, pertence à
semântica.
(Exemplo: João disse que os EEUU vão entrar em guerra/ O presidente Bush disse que os EEUU vão entrar em guerra).
(Exemplo: João disse que os EEUU vão entrar em guerra/ O presidente Bush disse que os EEUU vão entrar em guerra).
O
conteúdo do que se diz pertence à semântica discursiva: depende da estrutura
social.
Há
no
discurso o campo da manipulação consciente (sintaxe: como o falante
organiza
sua estratégia argumentativa) e o campo da manipulação inconsciente. Já,
falando a respeito dos elementos semânticos de um discurso, o autor
ressalta que:
o conjunto de elementos semânticos habitualmente utilizados nos discursos de uma dada época constitui a maneira de ver o mundo numa dada formação social. Estes elementos surgem a partir de outros discursos já construídos, cristalizados e cujas condições de produção forma apagadas. Esses elementos semânticos, assimilados por cada homem ao longo de sua educação, constituem a consciência e, por conseguinte, sua maneira de pensar o mundo. Por isso, certos temas são recorrentes na maioria dos discursos: "os homens são desiguais por natureza"; "na vida, vencem os mais fortes"; "o dinheiro não traz a felicidade".
o conjunto de elementos semânticos habitualmente utilizados nos discursos de uma dada época constitui a maneira de ver o mundo numa dada formação social. Estes elementos surgem a partir de outros discursos já construídos, cristalizados e cujas condições de produção forma apagadas. Esses elementos semânticos, assimilados por cada homem ao longo de sua educação, constituem a consciência e, por conseguinte, sua maneira de pensar o mundo. Por isso, certos temas são recorrentes na maioria dos discursos: "os homens são desiguais por natureza"; "na vida, vencem os mais fortes"; "o dinheiro não traz a felicidade".
A semântica discursiva é o campo da determinação ideológica propriamente dita.
6. Variabilidade na invariabilidade
Se discursos de natureza muito diferentes utilizam-se
dos mesmos elementos semânticos (como por exemplo, liberdade, felicidade,
justiça), de que maneira podemos distingui-los?
É
preciso estabelecer diferença entre nível profundo e nível de
superfície. Assim, numa história infantil, o anel mágico, a espada mágica,
pertencem ao nível de superfície = o objeto necessário para vencer o dragão. Esses objetos são variações
que concretizam um "elemento semântico invariante", mais abstrato e mais
profundo, o "poder vencer".
Vários
textos que falam de “liberdade” pressupõem que esta pode ser concretizada de várias maneiras
(evasão espacial = uma ilha no Pacífico; evasão temporal = volta à infância;
direito à diferença = de certas minorias...) – ao analisarmos a maneira como um
elemento semântico se concretiza, não podemos confundir dois ou três discursos
distintos só porque todos falam em “liberdade”.
Embora
a determinação ideológica, a maneira de ver o mundo seja mostrada na semântica
discursiva (estrutura profunda), é no nível superficial, isto é, na concretização
dos elementos semânticos da estrutura profunda, que se revelam, com
plenitude, as determinações ideológicas, porque o falante pode dar valores
distintos aos elementos semânticos que utiliza: alguns desse valores são
considerados eufóricos (positivos) e outros podem ser considerados disfóricos
(negativos). Os elementos de valor positivo em um texto, podem não ser positivos em outro e
vice-versa (ex: a morte).
7. Duas maneiras de dizer a mesma coisa
Texto A:
“Um
cavalo, quase morto de fome e de sede, caminhava em busca de água e de comida.
De repente, deparou com um campo de feno, ao lado do qual corria um regato de
águas cristalinas. O cavalo, não sabendo se primeiro bebia da água ou comia do
feno, morreu de fome e de sede”.
Texto B: “Há pessoas tão
indecisas que são incapazes de realizar qualquer escolha e acabam perdendo
muitas oportunidades na vida”.
Se
os textos acima dizem praticamente a mesma coisa, qual é a diferença entre
eles? O primeiro é mais concreto e o segundo é mais abstrato; o primeiro é mais
figurativo (figuras: cavalo, sede, fome, regato, feno...) e o segundo temático
(temas: indecisão, escolha, oportunidades...). Temas e figuras são
dois níveis de concretização dos elementos semânticos da estrutura profunda.
Assim
como diferentes temas podem concretizar o mesmo elemento semântico da estrutura
profunda (viver numa ilha; viver no campo; fazer o que quizer = liberdade), o mesmo
tema pode ser figurativizado de maneiras diversas (“uma calça velha, azul e
desbotada”; "fumar cigarros Free"; "pescar à beira de um lago" => liberdade).
Tema: elemento semântico que designa um elemento não-presente no mundo natural, mas que exerce o papel de categoria ordenadora dos fatos observáveis. São temas: o amor, paixão, lealdade, ódio, alegria...
Figura:
é o elemento semântico que remete a um elemento do mundo natural: casa,
mesa, mulher, rosa ...
Considerações importantes:
- o discurso figurativo é a concretização de um discurso temático;
- não existem textos exclusivamente figurativos ou temáticos, mas predominantemente figurativos ou temáticos;
- para entender um texto figurativo é preciso, antes de mais nada, apreender o discurso temático que subjaz a ele.
- nos textos não-figurativos, a ideologia manifesta-se, com toda a clareza, no nível dos temas (os temas dos discurso políticos de 64);
- nos textos figurativos, essa manifestação ocorre na relação temas-figuras (a família pobre, onde a mãe realiza os trabalhos domésticos, com um sorriso nos lábios = tema a família como célula da sociedade, os papéis sociais vistos como naturais, uma relação que prescreve que cada um deve contentar-se com o que tem.- p. 25).
8. O que é ideologia?
Em toda formação social há sempre dois níveis de realidade: 1) um
de essência e 2) outro de aparência; Ou seja, um profundo e um superficial, um
não-visível e um fenomênico.
O autor busca
exemplo na análise que Marx faz do salário: este aparece como pagamento do
trabalho (aparência) e não da força do trabalho - a capacidade de produzir
(essência) – o funcionário não recebe o valor que produziu, mas uma parte dele.
A realidade aparece invertida.
“A partir do nível fenomênico da realidade, constroem-se as idéias
dominantes numa dada formação social. Essas idéias são racionalizações que
explicam e justificam a realidade. Na sociedade capitalista, a partir do nível
aparente, constroem-se os conceitos de individualidade, de liberdade como algo
individual etc. Aparecem as idéias da desigualdade natural dos homens, uma vez
que uns são mais inteligentes ou mais espertos que os outros. Daí se deduz que
as desigualdades sociais são naturais. Outras idéias pias, presas às formas
fenomênicas da realidade, vão construindo-se: a riqueza é fruto do trabalho (só
se omite que é fruto do trabalho dos outros); pobres e ricos vão sempre
existir; a pobreza é uma bênção, pois a riqueza só traz preocupação”.
....................................................................................................
“A esse conjunto de
idéias, a essas representações que servem para justificar e explicar a ordem
social, as condições de vida do homem e as relações que ele mantém com os
outros homens, são o que comumente se chama ideologia. Como ela é elaborada a
partir das formas fenomênicas da realidade, que ocultam a essência da ordem
social, a ideologia é ‘falsa consciência”. p.28
Não
há conhecimento neutro (nem nas ciências), pois o
conhecimento sempre expressa o ponto de vista de uma classe a
respeito da realidade – todo conhecimento está comprometido com os interesses
sociais. A ideologia é uma “visão de mundo”, ou seja, o ponto de vista de uma
classe social a respeito da realidade, a maneira como uma classe ordena,
justifica e explica a ordem social – há tantas visões de mundo numa dada formação social quantas forem as
classes sociais.
Ideologia não se confunde com “falsa consciência” – “não me venha com ideologias”!
A
ideologia é constituída pela realidade e constituinte da realidade. Não é um
conjunto de idéias que surge do nada ou da mente privilegiada de alguns
pensadores. Por isso, diz-se que ela é determinada, em última instância, pelo
nível econômico.
Embora
haja, numa formação social, a ideologia dominante é a ideologia da classe
dominante. No modo de produção capitalista, a ideologia dominante é a ideologia
burguesa.
9. Formações Ideológicas e Formações Discursivas
Formação
ideológica: uma
formação ideológica deve ser entendida como a visão de mundo de uma determinada
classe social, isto é, um conjunto de representações, de idéias que revelam a
compreensão que uma dada classe tem do mundo.
Como não existem idéias fora dos quadros da
linguagem, entendida no seu sentido mais amplo de instrumento de comunicação
verbal e não verbal, essa visão de mundo não existe desvinculada da linguagem. Por isso a cada formação
ideológica corresponde uma formação
discursiva, que é um
conjunto de temas e figuras que materializa uma dada visão de mundo.
Figuras:
classe pobre: comprar uma casa
classe rica: fazer uma viagem pelo mundo
jovem: uma calça azul e desbotada = liberdade
classe pobre: comprar uma casa
classe rica: fazer uma viagem pelo mundo
jovem: uma calça azul e desbotada = liberdade
“Essa formação
discursiva é ensinada a cada um dos membros de uma sociedade ao longo do
processo de aprendizagem linguística. É com essa formação discursiva assimilada
que o homem constrói seus discursos, que ele reage linguisticamente aos
acontecimentos. Por isso, o discurso é mais o lugar da reprodução que o da
criação. Assim como uma formação ideológica impõe o que pensar, uma formação
discursiva determina o que dizer. Há numa formação social, tantas formações
discursivas quantas forem as formações ideológicas”.
Formação social = classes sociais
= formações ideológicas = formações discursivas
As
visões de mundo não se desvinculam da linguagem, porque a ideologia é vista
como algo imanente à realidade é indissociável da linguagem. As idéias e, por
conseguinte, os discursos são expressões da vida real. A realidade exprime-se
pelos discursos.
Não
há pensamento sem linguagem: se o que caracteriza o pensamento humano é seu
caráter conceptual, o pensamento não existe fora da linguagem. Isto não significa que há
identidade entre linguagem e pensamento, mas uma indissocialização de ambos,
que não se apresentam jamais de uma forma pura.
10. A consciência é um fato social
Marx
e Engels - A ideologia alemã : “a linguagem é a
consciência real”
Bakhtin
– “ a consciência constitui um fato socioideológico” pois a realidade da
consciência é a linguagem – sem linguagem não se pode falar em psiquismo
humano, pois o que define o conteúdo da consciência são fatores sociais, que
determinam a vida concreta dos indivíduos nas condições do meio social.
O discurso não é, pois, a expressão da consciência,
mas a consciência é formada pelo conjunto de discursos interiorizados pelo
indivíduo ao longo de sua vida. O homem aprende como ver o mundo pelos
discursos que assimila e, na maior parte das vezes, reproduz esses discursos em
sua fala – p.35
Há certa relutância em nossa sociedade em aceitar a tese de que a consciência
seja social – a consciência seria o lugar da liberdade humana – daí deriva o
conceito de liberdade abstrata do pensamento e expressão, e de uma criatividade
– expressão da subjetividade do indivíduo.
O
homem não é apenas uma individualidade que reside no espírito, é também e principalmente produto das relações
sociais ativas e inteligentes, ou seja, que dependem, como mostrava Gramsci, do
grau maior ou menor de inteligibilidade que delas tenha o homem individual.
É impossível pensar um homem livre
de todas as coerções sociais (Kapar Kauser?), mesmo no interior do ser humano –
as normas sociais impõem até que desejos são admissíveis e que desejos são
inadmissíveis.
O discurso, por sua vez, também é determinado por
coerções ideológicas. Ora, se a consciência é constituída a partir dos
discursos assimilados por cada membro de um grupo social e se o homem é
limitado por relações sociais, não há uma individualidade de espírito nem uma
individualidade discursiva absoluta. – p.36
11. A individualidade na linguagem
Crença:
o discurso não pode ser determinado socialmente, porque cada indivíduo expressa
suas idéias de maneira diferente – a sociedade até cultiva a originalidade de expressão e
sanciona cópias e repetições
Signo
linguístico: imagem mental, conceito (significado = plano do conteúdo) e imagem
acústica (significante – plano de expressão)
- o
discurso pertence ao plano do conteúdo
- o
texto pertence ao plano de expressão
- Discurso é diferente de texto: Um mesmo discurso pode ser
manifestado por diferentes textos. Exemplos de “negação”: não, no, non, gesto da cabeça,
das mãos etc
Necessidade de separar imanência e manifestação –
pois um discurso, ao ser expresso por dois textos diferentes, reproduz o
sentido básico do discurso, mas cada um apresenta certas peculiaridades
significativas.
Cita vários exemplos onde mostra que o material do
plano de expressão é responsável pelo fato de determinados aspectos do sentido
serem mais bem expressos por um tipo de manifestação do que por outro
Em síntese, o mesmo discurso pode ser manifestado por diferentes meios
de expressão. Nessa manifestação, atuarão as coerções do material e
agregar-se-ão os conteúdos engendrados pelos efeitos estilísticos da expressão.
– p. 40
12. A trapaça discursiva
Texto
x discurso = “Enquanto o discurso é a materialização das formações ideológicas,
sendo, por isso, determinado por elas, o texto é unicamente um lugar de
manipulação consciente, em que o homem organiza, da melhor maneira possível, os
elementos de expressão que estão a sua disposição para veicular seu discurso. O
texto é, pois, individual, enquanto o discurso é social”.
- enquanto que no nível do texto é
grande a liberdade individual, no nível do discurso o homem está preso a temas e figuras das transformações discursivas existentes na formação social
em que está inserido.
Segundo Edward Lopes, o texto tem uma “função
citativa” em relação a outros discursos. Ele não é único e irrepetível – na
medida em que é determinado pelas formações ideológicas o discurso cita outros
discursos – os mesmos discursos temáticos e figurativos se repetem – p. 41 e por ter essa função citativa, a liberdade discursiva
é muito pequena, quando não é nula.
- exemplos tais como o tema da “salvação da pátria”
pelos militares depois de 1964
- tema do luxo e do requinte – porcelanas, baixelas
de prata, carrões, iates....
O enunciador é o suporte da ideologia, vale dizer, de
discursos, que constituem a matéria-prima com que elabora seu discurso. Seu
dizer é a reprodução inconsciente do dizer de seu grupo social. Não é livre
para dizer, mas coagido a dizer o que seu grupo diz.
Já o
texto é individual. O falante organiza sua maneira de veicular o discurso. A
ilusão da liberdade discursiva tem sua origem nesse fato. O discurso simula ser
individual, porque aquilo que, em si, o plano da expressão, é o campo da
organização individual, é o plano da manifestação pessoal. – p.42
- mas formas de dizer o discurso são
aprendidas e estão de acordo com as tradições culturais de uma sociedade –
quero falar como Bilac, como Machado
-
como o mesmo discurso pode manifestar-se em diferentes textos, a liberdade de
textualizar é muito grande, estando condicionado apenas pelos processos
modelizantes de aprendizagem – pela tradição textual.
O discurso é, pois, o lugar das coerções sociais,
enquanto o texto é o espaço da “liberdade” individual.
Edward
Lopes – “combinando uma simulação com uma dissimulação, o discurso é uma
trapaça: ele simula ser meu para dissimular que é do outro” – p.42
“Assim
o discurso simula ser individual para ocultar que é social. Ao realizar essa
simulação e essa dissimulação, a linguagem serve de apoio para as teses da
individualidade de cada ser humano e da liberdade abstrata de pensamento e de
expressão. O homem coagido, determinado, aparece como criatura absolutamente
livre de todas as coerções sociais”. p . 42
13. Falar ou ser falado?
O falante, suporte das formações
discursivas, ao construir seu discurso o faz a partir de sua formação social –
por isso ele não pode ser visto como o agente
do seu discurso – por
ser produto de relações sócias, assimila uma ou várias formações discursivas,
que existem em sua formação social, e as reproduz em seu discurso – ele é o suporte dos discursos.
Quem
é, então, o agente discursivo?
“Na medida em que as formações discursivas
materializam as formações ideológicas e estas estão relacionadas às classes
sociais, os agentes discursivos são as classes sociais e as frações de classe”
p. 43
De maneira geral a formação
discursiva dominante é a da classe dominante.
O
indivíduo não pensa e fala o que quer, mas o que a realidade impõe que ele
pense e fale.
Mas
o homem não é um ser racional, livre?
Essa
liberdade absoluta do ser humano é contestada – sendo o homem um produto de
relações sociais, age, reage, pensa e fala, na maior parte das vezes, como os
membros de seu grupo social.
A aprendizagem linguística, que é a aprendizagem de
um discurso, cria uma consciência verbal, que une cada indivíduo aos membros de
seu grupo social. Por isso, a aprendizagem linguística está estreitamente
vinculada à produção de uma identidade ideológica, que é o papel que o
indivíduo exerce no interior de uma formação social.
Na
medida em que o homem é suporte de formações discursivas, não fala, mas é
falado por um discurso.
14. Arena de conflitos e palco de acordo
- o discurso não é fechado em si
mesmo, já que cita outros discursos.
-
ele é o lugar de trocas enunciativas, em que a história se inscreve –
pois é um espaço conflitual de vozes.
-
um discurso pode aceitar, implícita ou explicitamente outro discurso, rejeitar,
repetir com ironia, irreverência – é o espaço do conflito e da heterogeneidade
Assim,
as relações interdiscursivas podem, assim, ser contratuais ou polêmicas. p45
Ex:
o discurso religioso pode estar em polêmica com outro: o homem cometeu o pecado
capital x o homem não cometeu o pecado capital (O bichinho da maçã de Ziraldo)
Canção
do Exílio de Gonçalves Dias e o Hino
Nacional Brasileiro p. 46
“Nossa
terra tem palmeiras
onde
canta o sabiá
as
aves que aqui gorjeiam
não
gorjeiam como lá.
“Canção
do Exílio” – Murilo Mendes
15. Análise não é investigação policial
Um
enunciador pode ocultar sua verdadeira visão de mundo, construindo um discurso
que revele outra ideologia.
Saber
se o falante revela ou não sua verdadeira visão de mundo, ao enunciar um
discurso, não é problema do analista do discurso, uma vez que a análise não é
uma investigação policial – preocupa-se a AD não com o enunciador real, mas com
o enunciador inscrito no discurso – aquele que no interior do discurso diz
“eu”.
A
AD vai mostrar a qual formação discursiva pertence um determinado discurso.
O
“sujeito” inscrito no interior do discurso “é um efeito de sentido”, produzido
pelo próprio discurso, isto é, seus temas e figuraras é que configuram a “visão
de mundo” do sujeito.
É
o discurso que vai revelar quem é o sujeito, qual é sua visão de mundo.
O
que importa para o analista é que todo discurso desvela uma ou várias visões de
mundo existentes numa formação social
Um
romance com um único enunciador pode revelar uma única visão de mundo, mas com
vários personagens pode apresentar várias visões.
A
AD não se interessa pela “verdadeira” posição ideológica do enunciador real,
mas pelas visões de mundo dos enunciadores (um ou vários) inscritos no
discurso.
16. O discurso é reflexo da realidade?
Idealistas: “A linguagem cria uma imagem de
mundo” - a linguagem contém uma visão de mundo, que determina nossa maneira de
perceber e conceber a realidade, e impõe-nos essa visão. A linguagem é como um
molde, que ordena o caos, que é a realidade em si. Como a linguagem dá
forma a esse caos, determinando o que é uma coisa, um acontecimento etc., cria
uma imagem ordenada do mundo. Cada língua ordena o mundo à sua maneira – as
diferenças entre as línguas.
Para
os idealistas_ a linguagem tem um papel ativo no processo de aquisição do
conhecimento.
Dualismo:
a linguagem “cria a imagem do mundo” x “a linguagem é também produto social e
histórico”
“Assim, a linguagem “criadora de uma imagem de mundo
é também criação desse mundo”. A linguagem formou-se, no decorrer da evolução
filogenética, constituindo um produto e um elemento da atividade prática do
homem. À medida que os sistemas linguísticos se vão constituindo, vão ganhando
certa autonomia em relação à formações ideológicas. Entretanto o componente
semântico do discurso continua sendo determinado por fatores sociais. É esse
componente que contém a visão de mundo veiculada pela linguagem. Por isso, essa
visão de mundo não é arbitrária, mas resulta de fatores sociais, não podendo,
por conseguinte, ser alterada em razão de uma escolha arbitrária. Assim, o que
está na consciência é provocado por algo exterior a ela e independente dela. p.
53
Materialistas:
“a linguagem é
reflexo da realidade”
-
o termo “reflexo” – margem a grandes discussões
O
que é preciso considerar quando se diz que a linguagem é reflexo da realidade?
O espírito humano não é passivo e sua função não consiste apenas em refletir a
realidade
O discurso não reflete uma representação sensível do
mundo, mas uma categorização do mundo, ou seja, uma abstração efetuada pela
prática social. A percepção pura não existe. Pelo contrário, certos dados da
psicologia autorizam a dizer que a percepção é guiada pela linguagem. Porque o
homem age e transforma a realidade, não a apreende passivamente. A forma de apreensão
depende do sujeito cognoscente, isto é, do gênero de prática, acumulada na
filogênese e na ontogênese, de que dispõe. É por isso que uma mesma realidade
pode ser apreendida diversamente por homens distintos
A
consciência humana depende, pois, da linguagem assimilada. Não só os elementos
semânticos, diretamente determinados pelas formações ideológicas, mas também as
categorias linguísticas que gozam de certa autonomia em relação às formações sociais
exercem um papel ativo na percepção do mundo. P. 54
.......
A
linguagem tem influência também sobre os comportamentos do homem. O discurso
transmitido contém em si, como parte da visão de mundo que veicula, um sistema
de valores, isto é, estereótipos dos comportamentos humanos que são valorizados
positiva ou negativamente. Ele veicula os tabus comportamentais. A sociedade
transmite aos indivíduos – com a linguagem e graças a ela – certos
estereótipos, que determinam certos comportamentos. Esses estereótipos
entranham-se de tal moda na consciência que acabam por ser considerados
naturais. Figuras como “negro”, “comunista”, “puta”, têm um conteúdo cheio de
preconceitos, aversões e hostilidades, ao passo que outras como “branco”,
“esposa” estão impregnados de sentimentos positivos. Não devemos esquecer que
os estereótipos só estão na linguagem porque representam a condensação de uma
prática social.
Veja-se
texto sobre “comunismo” – p. 55
17. Um exemplo: a igualdade burguesa
- Nos textos não figurativos, as
coerções ideológicas manifestam-se, com toda nitidez, no nível dos temas.
Ex:
cita um texto sobre o funcionário público – p. 57
Aparecem,
no texto, três temas básicos da ideologia burguesa: a liberdade, a igualdade e
a naturalidade das relações sociais – estas seriam naturais porque fundadas na
liberdade e na igualdade – que os homens são livres e iguais, porque são seres
racionais
-O
discurso, refletindo o nível da aparência da realidade, considera a razão como
um fato que independe das coerções sociais – não vê a desigualdade presente na
sociedade burguesa e a subordinação de uma classe à outra.
18. Outros exemplos: uma reprodução polêmica
Nos textos figurativos
Tema
do texto apresentado: o homem é determinado pelo meio – tema constante nos
discursos da segunda metade do século XIX
19. A linguagem faz parte da superestrutura?
-superestrutura
(instituições políticas, jurídicas etc)
Marr responde afirmativamente.
Um
dos pontos básico do marrismo: a língua teria origem no desejo de uma classe
social dominar a outra.
Classifica
as línguas de acordo com seus estádios de desenvolvimento: quatro estádios.
Suas
idéias causam polêmicas mas têm o mérito de apontar para a necessidade de
refletir sobre as relações entre linguagem e formação social.
-sua
falha maior – buscar relações entre linguagem e história no nível do sistema e
não do discurso.
As
posições de Stálin: um artigo “A propósito do marxismo em linguística” – 1950 –
duas teses: a língua não é um fenômeno
de superestrutura; ela não tem caráter de classe.
-
considera
a língua uma gramática e um fundo léxico comum;
-
ideia
da homegeneidade linguística – a língua é um determinante da nacionalidade;
-
como
vê a linguagem de maneira muito restrita, uma vez que leva em conta apenas a
dimensão sistêmica (a língua), não se ocupando do discurso, não pode perceber
as determinações históricas que atuam sobre a linguagem.
. O lugar da linguagem
Obs. – Texto importante p. 72 e 73
20. Comunicar é agir
Quando um enunciador comunica
alguma coisa, tem em vista agir no mundo – ao exercer seu fazer informativo,
produz um sentido como a finalidade de influir sobre os outros – fazer
acreditar – “fazer-fazer
Sem
pretender que o discurso possa transformar o mundo, pode-se dizer que a
linguagem pode ser instrumento de libertação ou de opressão, de mudança ou de
conservação.
Resume
o que expôs nas últimas páginas:
a) as formações discursivas,
constituídas por um conjunto de temas e de figuras, materializam as formações
ideológicas;
b) essas formações discursivas são fenômenos
de superestruturas, embora a linguagem em geral e a língua em particular sejam
apenas o instrumento de materialização doas representações ideológicas;
c) o uso de um determinado discurso
é, de certa forma, uma ação no mundo.
Ver texto de O 18 Brumário de Luís Bonaparte, de Marx.
21. Conclusão – p. 76 a 78
a) a linguagem é, ao mesmo tempo,
autônoma em relação às formações sociais e determinada por fatores ideológicos;
b) as coerções ideológicas constituem
um elementos pré-semântico que determina o componente semântico;
c) a concepção do discurso como
fenômeno, ao mesmo tempo, autônomo e determinado obriga a análise a voltar-se
para dentro e para fora, para o texto e para o contexto, para os mecanismo
internos de agenciamento de sentido e para a formação discursiva que governa o
texto;
d) o itinerário pelo discurso não se
esgota no interior do próprio discurso, mas se projeta na história. É preciso
levar em conta o intertexto par ler o texto;
e) a AD deve desfazer a ilusão
idealista de que o homem é senhor absoluto de seu discurso. Ele é antes servo
da palavra, uma que vez que os temas, figuras, valores, juízos etc. provêm das
visões de mundo existentes na formação social.
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