quarta-feira, 15 de abril de 2020

Obra "Linguagem e Ideologia", de José L. Fiorin

Linguagem e Ideologia


José Luiz Fiorin – ed. Ática, 1988 (série Princípios)

desconheço o autor da síntese abaixo. Se algum leitor souber, me informe, para que eu mencione os devidos créditos.


. Introdução
            A linguística não se preocupou com as relações entre a linguagem e a sociedade, mas apenas com as relações internas entre os elementos linguísticos.
        A linguagem é, antes de tudo, uma instituição social, o veículo das ideologias, o instrumento de mediação entre os homens e a natureza, entre os homens e outros homens.
          O objetivo do livro não é mostrar que uma pronúncia de prestígio é imposta com a finalidade de discriminar pessoas; nem que o acesso a certas posições de destaque está ligado à aquisição de variedades linguísticas consideradas certas ou elegantes; nem que a norma linguística utilizada pelos que detêm o poder transforma-se em “língua modelo”; nem que as variedades linguísticas utilizadas pelos segmentos sociais subalternos são consideradas “erros”, “transgressões” e por isso seus usuários são ridicularizados; não é dizer que a linguagem é um instrumento de poder e que os segmentos sociais dominantes tentam ridicularizar a palavra dos dominados... O objetivo do livro é refletir sobre as relações que a linguagem mantém com a ideologia: o autor deseja analisar qual o lugar das determinações ideológicas neste complexo fenômeno que é a linguagem, bem como analisar como a linguagem veicula a ideologia, demonstrando o que é que é ideologizado na linguagem.

2. Marx e Engels dão as primeiras dicas

        Os autores da obra A ideologia alemã mostram que, nem o pensamento, nem a linguagem constituem domínios autônomos, pois ambos são expressões da vida real.
      Ao mesmo tempo em que goza de certa autonomia, a linguagem sofre determinações sociais e é preciso separar estes dois níveis: o de sua autonomia e o de suas determinações.

3. As primeiras distinções

            A língua é social na medida em que é comum a todos os falantes de uma comunidade linguística.
            O sistema (língua) é mais do que uma lista de palavras, ela é um sistema de oposições, de valores ( /l/ é diferente de /r/, diferente de /m/.....; dizemos o homem e não *homem o ...)
            Um sistema linguístico é uma rede de relações que se estabelece entre um conjunto de elementos linguísticos e estas relações dão um determinado valor a cada componente do sistema e permitem selecionar o elemento apropriado para figurar em cada ponto da cadeia da fala e combinar adequadamente esses elementos entre si. A língua é uma estrutura internalizada pelos falantes (abstrata) que se realiza nos atos de fala.


Necessidade de distinguir discurso e fala

            Discurso: são as combinações de elementos linguísticos (frases ou conjuntos de frases), usadas pelos falantes como o propósito de exprimir seus pensamentos, de falar do mundo exterior ou de seu mundo interior, de agir sobre o mundo.
            Fala: é a exteriorização psico-físico-fisiológica do discurso. Ela é rigorosamente individual, pois é sempre um eu  quem toma a palavra e realiza o ato de exteriorizar o discurso.


4. Quem determina o quê?


            A fala não sofre qualquer determinação social, mas o discurso sim.
        Se o sistema se altera por causas internas ao próprio sistema (fatores linguísticos: stella> estrela; latu>lado; desaparecimento do neutro etc.) ocorre também que algumas categorias gramaticais ou semânticas podem se justificar podem depender de fatores sociais (no latim árvore é feminino = por ser reprodutora, gerar frutos; o uso do masculino como genérico = o prestígio dos homens nas sociedade patriarcais...)
            Se na história da língua se perdem as razões que motivam o aparecimento de certas categorias, é no nível do discurso que devemos, pois, estudar as coerções sociais que determinam a linguagem.

5. Discurso: autonomia e determinação

            A frase não é um amontoado de palavras e o discurso não é um amontoado de frases.
            O discurso pressupõe uma sintaxe e uma semântica.
            A sintaxe discursiva compreende os processos de estruturação do discurso:
a)      se ele é construído na primeira pessoa ou não:
Eu acho que Pedro foi ao cinema: efeito de subjetividade
            Pedro foi ao cinema: efeito de objetividade
b)      o tipo de discurso:
Discurso direto (efeito de sentido de “verdade”): Vou trabalhar pelo social.
Discurso indireto: Ele disse que vai trabalhar pelo social.  Ele pensa trabalhar pelo social
            A semântica discursiva diz respeito aos conteúdos que são investidos nos moldes abstratos sintáticos: determinar o tipo de discurso é um procedimento sintático, mas a personagem a quem se delega voz, o que ela diz, pertence à semântica.
(Exemplo: João disse que os EEUU vão entrar em guerra/ O presidente Bush disse que os EEUU vão entrar em guerra).
            O conteúdo do que se diz pertence à semântica discursiva: depende da estrutura social.

            Há no discurso o campo da manipulação consciente (sintaxe: como o falante organiza sua estratégia argumentativa) e o campo da manipulação inconsciente. Já, falando a respeito dos elementos semânticos de um discurso, o autor ressalta que:
 o conjunto de elementos semânticos habitualmente utilizados nos discursos de uma dada época constitui a maneira de ver o mundo numa dada formação social. Estes elementos surgem a partir de outros discursos já construídos, cristalizados e cujas condições de produção forma apagadas. Esses elementos semânticos, assimilados por cada homem ao longo de sua educação, constituem a consciência e, por conseguinte, sua maneira de pensar o mundo. Por isso, certos temas são recorrentes na maioria dos discursos: "os homens são desiguais por natureza"; "na vida, vencem os mais fortes"; "o dinheiro não traz a felicidade".

            A semântica discursiva é o campo da determinação ideológica propriamente dita.


6. Variabilidade na invariabilidade


            Se discursos de natureza muito diferentes utilizam-se dos mesmos elementos semânticos (como por exemplo, liberdade, felicidade, justiça), de que maneira podemos distingui-los?
            É preciso estabelecer diferença entre nível profundo e nível de superfície. Assim, numa história infantil, o anel mágico, a espada mágica, pertencem ao nível de superfície = o objeto necessário para vencer o dragão. Esses objetos são variações que concretizam um "elemento semântico invariante", mais abstrato e mais profundo, o "poder vencer".
            Vários textos que falam de “liberdade” pressupõem que esta pode ser concretizada de várias maneiras (evasão espacial = uma ilha no Pacífico; evasão temporal = volta à infância; direito à diferença = de certas minorias...) – ao analisarmos a maneira como um elemento semântico se concretiza, não podemos confundir dois ou três discursos distintos só porque todos falam em “liberdade”.
            Embora a determinação ideológica, a maneira de ver o mundo seja mostrada na semântica discursiva (estrutura profunda), é no nível superficial, isto é, na concretização dos elementos semânticos da estrutura profunda, que se revelam, com plenitude, as determinações ideológicas, porque o falante pode dar valores distintos aos elementos semânticos que utiliza: alguns desse valores são considerados eufóricos (positivos) e outros podem ser considerados disfóricos (negativos). Os elementos de valor positivo em um texto, podem não ser positivos em outro e vice-versa (ex: a morte).

7. Duas maneiras de dizer a mesma coisa

Texto A: “Um cavalo, quase morto de fome e de sede, caminhava em busca de água e de comida. De repente, deparou com um campo de feno, ao lado do qual corria um regato de águas cristalinas. O cavalo, não sabendo se primeiro bebia da água ou comia do feno, morreu de fome e de sede”.                
Texto B: “Há pessoas tão indecisas que são incapazes de realizar qualquer escolha e acabam perdendo muitas oportunidades na vida”.

            Se os textos acima dizem praticamente a mesma coisa, qual é a diferença entre eles? O primeiro é mais concreto e o segundo é mais abstrato; o primeiro é mais figurativo (figuras: cavalo, sede, fome, regato, feno...) e o segundo temático (temas: indecisão, escolha, oportunidades...). Temas e figuras são dois níveis de concretização dos elementos semânticos da estrutura profunda.
            Assim como diferentes temas podem concretizar o mesmo elemento semântico da estrutura profunda (viver numa ilha; viver no campo; fazer o que quizer = liberdade), o mesmo tema pode ser figurativizado de maneiras diversas (“uma calça velha, azul e desbotada”; "fumar cigarros Free"; "pescar à beira de um lago" =>  liberdade).

            Tema: elemento semântico que designa um elemento não-presente no mundo natural, mas que exerce o papel de categoria ordenadora dos fatos observáveis. São temas: o amor, paixão, lealdade, ódio, alegria...
            Figura: é o elemento semântico que remete a um elemento do mundo natural: casa, mesa, mulher, rosa ...

            Considerações importantes:
- a diferença entre tema e figura é o grau de concretude;
- o discurso figurativo é a concretização de um discurso temático;
- não existem textos exclusivamente figurativos ou temáticos, mas predominantemente figurativos ou temáticos;
- para entender um texto figurativo é preciso, antes de mais nada, apreender o discurso temático que subjaz a ele.
- nos textos não-figurativos, a ideologia manifesta-se, com toda a clareza, no nível dos temas (os temas dos discurso políticos de 64); 
- nos textos figurativos, essa manifestação ocorre na relação temas-figuras (a família pobre, onde a mãe realiza os trabalhos domésticos, com um sorriso nos lábios = tema a família como célula da sociedade, os papéis sociais vistos como naturais, uma relação que prescreve que cada um deve contentar-se com o que tem.- p. 25).


8. O que é ideologia?


            Em toda formação social há sempre dois níveis de realidade: 1) um de essência e 2) outro de aparência; Ou seja, um profundo e um superficial, um não-visível e um fenomênico.
            O autor busca exemplo na análise que Marx faz do salário: este aparece como pagamento do trabalho (aparência) e não da força do trabalho - a capacidade de produzir (essência) – o funcionário não recebe o valor que produziu, mas uma parte dele.
           
 A realidade aparece invertida.
“A partir do nível fenomênico da realidade, constroem-se as idéias dominantes numa dada formação social. Essas idéias são racionalizações que explicam e justificam a realidade. Na sociedade capitalista, a partir do nível aparente, constroem-se os conceitos de individualidade, de liberdade como algo individual etc. Aparecem as idéias da desigualdade natural dos homens, uma vez que uns são mais inteligentes ou mais espertos que os outros. Daí se deduz que as desigualdades sociais são naturais. Outras idéias pias, presas às formas fenomênicas da realidade, vão construindo-se: a riqueza é fruto do trabalho (só se omite que é fruto do trabalho dos outros); pobres e ricos vão sempre existir; a pobreza é uma bênção, pois a riqueza só traz preocupação”.
....................................................................................................
“A esse conjunto de idéias, a essas representações que servem para justificar e explicar a ordem social, as condições de vida do homem e as relações que ele mantém com os outros homens, são o que comumente se chama ideologia. Como ela é elaborada a partir das formas fenomênicas da realidade, que ocultam a essência da ordem social, a ideologia é ‘falsa consciência”. p.28

            Não há conhecimento neutro (nem nas ciências), pois o conhecimento sempre expressa o ponto de vista de uma classe a respeito da realidade – todo conhecimento está comprometido com os interesses sociais. A ideologia é uma “visão de mundo”, ou seja, o ponto de vista de uma classe social a respeito da realidade, a maneira como uma classe ordena, justifica e explica a ordem social – há tantas visões de mundo  numa dada formação social quantas forem as classes sociais.

            Ideologia não se confunde com “falsa consciência” – “não me venha com ideologias”!
            A ideologia é constituída pela realidade e constituinte da realidade. Não é um conjunto de idéias que surge do nada ou da mente privilegiada de alguns pensadores. Por isso, diz-se que ela é determinada, em última instância, pelo nível econômico.
            Embora haja, numa formação social, a ideologia dominante é a ideologia da classe dominante. No modo de produção capitalista, a ideologia dominante é a ideologia burguesa.



9. Formações Ideológicas e Formações Discursivas


            Formação ideológica: uma formação ideológica deve ser entendida como a visão de mundo de uma determinada classe social, isto é, um conjunto de representações, de idéias que revelam a compreensão que uma dada classe tem do mundo.
            Como não existem idéias fora dos quadros da linguagem, entendida no seu sentido mais amplo de instrumento de comunicação verbal e não verbal, essa visão de mundo não existe desvinculada da linguagem. Por isso a cada formação ideológica corresponde uma formação discursiva, que é um conjunto de temas e figuras que materializa uma dada visão de mundo.
                        Figuras:
 classe pobre: comprar uma casa
classe rica: fazer uma viagem pelo mundo
jovem: uma calça azul e desbotada = liberdade

                                              
“Essa formação discursiva é ensinada a cada um dos membros de uma sociedade ao longo do processo de aprendizagem linguística. É com essa formação discursiva assimilada que o homem constrói seus discursos, que ele reage linguisticamente aos acontecimentos. Por isso, o discurso é mais o lugar da reprodução que o da criação. Assim como uma formação ideológica impõe o que pensar, uma formação discursiva determina o que dizer. Há numa formação social, tantas formações discursivas quantas forem as formações ideológicas”.

Formação social = classes sociais = formações ideológicas = formações discursivas

            As visões de mundo não se desvinculam da linguagem, porque a ideologia é vista como algo imanente à realidade é indissociável da linguagem. As idéias e, por conseguinte, os discursos são expressões da vida real. A realidade exprime-se pelos discursos.
            Não há pensamento sem linguagem: se o que caracteriza o pensamento humano é seu caráter conceptual, o pensamento não existe fora da linguagem. Isto não significa que há identidade entre linguagem e pensamento, mas uma indissocialização de ambos, que não se apresentam jamais de uma forma pura.


10. A consciência é um fato social


            Marx e Engels  - A ideologia alemã : “a linguagem é a consciência real”

            Bakhtin – “ a consciência constitui um fato socioideológico” pois a realidade da consciência é a linguagem – sem linguagem não se pode falar em psiquismo humano, pois o que define o conteúdo da consciência são fatores sociais, que determinam a vida concreta dos indivíduos nas condições do meio social.

            O discurso não é, pois, a expressão da consciência, mas a consciência é formada pelo conjunto de discursos interiorizados pelo indivíduo ao longo de sua vida. O homem aprende como ver o mundo pelos discursos que assimila e, na maior parte das vezes, reproduz esses discursos em sua fala – p.35
          certa relutância em nossa sociedade em aceitar a tese de que a consciência seja social – a consciência seria o lugar da liberdade humana – daí deriva o conceito de liberdade abstrata do pensamento e expressão, e de uma criatividade – expressão da subjetividade do indivíduo.
            O homem não é apenas uma individualidade que reside no espírito, é também e principalmente produto das relações sociais ativas e inteligentes, ou seja, que dependem, como mostrava Gramsci, do grau maior ou menor de inteligibilidade que delas tenha o homem individual.
            É impossível pensar um homem livre de todas as coerções sociais (Kapar Kauser?), mesmo no interior do ser humano – as normas sociais impõem até que desejos são admissíveis e que desejos são inadmissíveis.
            O discurso, por sua vez, também é determinado por coerções ideológicas. Ora, se a consciência é constituída a partir dos discursos assimilados por cada membro de um grupo social e se o homem é limitado por relações sociais, não há uma individualidade de espírito nem uma individualidade discursiva absoluta. – p.36


11. A individualidade na linguagem


            Crença: o discurso não pode ser determinado socialmente, porque cada indivíduo expressa suas idéias de maneira diferente – a sociedade até cultiva a originalidade de expressão e sanciona cópias e repetições
            Signo linguístico: imagem mental, conceito (significado = plano do conteúdo) e imagem acústica (significante – plano de expressão)
-  o discurso pertence ao plano do conteúdo
-  o texto pertence ao plano de expressão
-  Discurso é diferente de texto: Um mesmo discurso pode ser manifestado por diferentes textos. Exemplos de “negação”: não, no, non, gesto da cabeça, das mãos etc

Necessidade de separar imanência e manifestação – pois um discurso, ao ser expresso por dois textos diferentes, reproduz o sentido básico do discurso, mas cada um apresenta certas peculiaridades significativas.
Cita vários exemplos onde mostra que o material do plano de expressão é responsável pelo fato de determinados aspectos do sentido serem mais bem expressos por um tipo de manifestação do que por outro
Em síntese, o mesmo discurso pode ser manifestado por diferentes meios de expressão. Nessa manifestação, atuarão as coerções do material e agregar-se-ão os conteúdos engendrados pelos efeitos estilísticos da expressão. – p. 40


12. A trapaça discursiva


            Texto x discurso = “Enquanto o discurso é a materialização das formações ideológicas, sendo, por isso, determinado por elas, o texto é unicamente um lugar de manipulação consciente, em que o homem organiza, da melhor maneira possível, os elementos de expressão que estão a sua disposição para veicular seu discurso. O texto é, pois, individual, enquanto o discurso é social”.
            - enquanto que no nível do texto é grande a liberdade individual, no nível do discurso o homem está preso a temas e figuras das transformações discursivas existentes na formação social em que está inserido.
Segundo Edward Lopes, o texto tem uma “função citativa” em relação a outros discursos. Ele não é único e irrepetível – na medida em que é determinado pelas formações ideológicas o discurso cita outros discursos – os mesmos discursos temáticos e figurativos se repetem – p. 41 e por ter essa função citativa, a liberdade discursiva é muito pequena, quando não é nula.
- exemplos tais como o tema da “salvação da pátria” pelos militares depois de 1964
- tema do luxo e do requinte – porcelanas, baixelas de prata, carrões, iates....
            O enunciador é o suporte da ideologia, vale dizer, de discursos, que constituem a matéria-prima com que elabora seu discurso. Seu dizer é a reprodução inconsciente do dizer de seu grupo social. Não é livre para dizer, mas coagido a dizer o que seu grupo diz.
            Já o texto é individual. O falante organiza sua maneira de veicular o discurso. A ilusão da liberdade discursiva tem sua origem nesse fato. O discurso simula ser individual, porque aquilo que, em si, o plano da expressão, é o campo da organização individual, é o plano da manifestação pessoal. – p.42
            - mas formas de dizer o discurso são aprendidas e estão de acordo com as tradições culturais de uma sociedade – quero falar como Bilac, como Machado
            - como o mesmo discurso pode manifestar-se em diferentes textos, a liberdade de textualizar é muito grande, estando condicionado apenas pelos processos modelizantes de aprendizagem – pela tradição textual.
            O discurso é, pois, o lugar das coerções sociais, enquanto o texto é o espaço da “liberdade” individual.
            Edward Lopes – “combinando uma simulação com uma dissimulação, o discurso é uma trapaça: ele simula ser meu para dissimular que é do outro” – p.42
            “Assim o discurso simula ser individual para ocultar que é social. Ao realizar essa simulação e essa dissimulação, a linguagem serve de apoio para as teses da individualidade de cada ser humano e da liberdade abstrata de pensamento e de expressão. O homem coagido, determinado, aparece como criatura absolutamente livre de todas as coerções sociais”. p . 42


13. Falar ou ser falado?

           
            O falante, suporte das formações discursivas, ao construir seu discurso o faz a partir de sua formação social – por isso ele não pode ser visto como o agente do seu discurso – por ser produto de relações sócias, assimila uma ou várias formações discursivas, que existem em sua formação social, e as reproduz em seu discurso – ele é o suporte dos discursos.
            Quem é, então, o agente discursivo?
            Na medida em que as formações discursivas materializam as formações ideológicas e estas estão relacionadas às classes sociais, os agentes discursivos são as classes sociais e as frações de classe” p. 43
            De maneira geral a formação discursiva dominante é a da classe dominante.
            O indivíduo não pensa e fala o que quer, mas o que a realidade impõe que ele pense e fale.
            Mas o homem não é um ser racional, livre?
            Essa liberdade absoluta do ser humano é contestada – sendo o homem um produto de relações sociais, age, reage, pensa e fala, na maior parte das vezes, como os membros de seu grupo social.
            A aprendizagem linguística, que é a aprendizagem de um discurso, cria uma consciência verbal, que une cada indivíduo aos membros de seu grupo social. Por isso, a aprendizagem linguística está estreitamente vinculada à produção de uma identidade ideológica, que é o papel que o indivíduo exerce no interior de uma formação social.
            Na medida em que o homem é suporte de formações discursivas, não fala, mas é falado por um discurso.



14. Arena de conflitos e palco de acordo


            - o discurso não é fechado em si mesmo, já que cita outros discursos.
            - ele é o lugar de trocas enunciativas, em que a história se inscreve – pois é um espaço conflitual de vozes.
            - um discurso pode aceitar, implícita ou explicitamente outro discurso, rejeitar, repetir com ironia, irreverência – é o espaço do conflito e da heterogeneidade
            Assim, as relações interdiscursivas podem, assim, ser contratuais ou polêmicas. p45
            Ex: o discurso religioso pode estar em polêmica com outro: o homem cometeu o pecado capital x o homem não cometeu o pecado capital (O bichinho da maçã de Ziraldo)
                        Canção do Exílio de Gonçalves Dias   e o Hino Nacional Brasileiro p. 46
                        “Nossa terra tem palmeiras
                        onde canta o sabiá
                        as aves que aqui gorjeiam
                        não gorjeiam como lá.
                       
                        “Canção do Exílio” – Murilo Mendes


15. Análise não é investigação policial


            Um enunciador pode ocultar sua verdadeira visão de mundo, construindo um discurso que revele outra ideologia.
            Saber se o falante revela ou não sua verdadeira visão de mundo, ao enunciar um discurso, não é problema do analista do discurso, uma vez que a análise não é uma investigação policial – preocupa-se a AD não com o enunciador real, mas com o enunciador inscrito no discurso – aquele que no interior do discurso diz “eu”.
            A AD vai mostrar a qual formação discursiva pertence um determinado discurso.
            O “sujeito” inscrito no interior do discurso “é um efeito de sentido”, produzido pelo próprio discurso, isto é, seus temas e figuraras é que configuram a “visão de mundo” do sujeito.
            É o discurso que vai revelar quem é o sujeito, qual é sua visão de mundo.
            O que importa para o analista é que todo discurso desvela uma ou várias visões de mundo existentes numa formação social
            Um romance com um único enunciador pode revelar uma única visão de mundo, mas com vários personagens pode apresentar várias visões.
            A AD não se interessa pela “verdadeira” posição ideológica do enunciador real, mas pelas visões de mundo dos enunciadores (um ou vários) inscritos no discurso.

16. O discurso é reflexo da realidade?


            Idealistas: “A linguagem cria uma imagem de mundo” - a linguagem contém uma visão de mundo, que determina nossa maneira de perceber e conceber a realidade, e impõe-nos essa visão. A linguagem é como um molde, que ordena o caos, que é a realidade em si. Como a linguagem dá forma a esse caos, determinando o que é uma coisa, um acontecimento etc., cria uma imagem ordenada do mundo. Cada língua ordena o mundo à sua maneira – as diferenças entre as línguas.
            Para os idealistas_ a linguagem tem um papel ativo no processo de aquisição do conhecimento.
            Dualismo: a linguagem “cria a imagem do mundo” x “a linguagem é também produto social e histórico”
            “Assim, a linguagem “criadora de uma imagem de mundo é também criação desse mundo”. A linguagem formou-se, no decorrer da evolução filogenética, constituindo um produto e um elemento da atividade prática do homem. À medida que os sistemas linguísticos se vão constituindo, vão ganhando certa autonomia em relação à formações ideológicas. Entretanto o componente semântico do discurso continua sendo determinado por fatores sociais. É esse componente que contém a visão de mundo veiculada pela linguagem. Por isso, essa visão de mundo não é arbitrária, mas resulta de fatores sociais, não podendo, por conseguinte, ser alterada em razão de uma escolha arbitrária. Assim, o que está na consciência é provocado por algo exterior a ela e independente dela. p. 53

            Materialistas: “a linguagem é reflexo da realidade”
            - o termo “reflexo” – margem a grandes discussões
            O que é preciso considerar quando se diz que a linguagem é reflexo da realidade? O espírito humano não é passivo e sua função não consiste apenas em refletir a realidade
            O discurso não reflete uma representação sensível do mundo, mas uma categorização do mundo, ou seja, uma abstração efetuada pela prática social. A percepção pura não existe. Pelo contrário, certos dados da psicologia autorizam a dizer que a percepção é guiada pela linguagem. Porque o homem age e transforma a realidade, não a apreende passivamente. A forma de apreensão depende do sujeito cognoscente, isto é, do gênero de prática, acumulada na filogênese e na ontogênese, de que dispõe. É por isso que uma mesma realidade pode ser apreendida diversamente por homens distintos
            A consciência humana depende, pois, da linguagem assimilada. Não só os elementos semânticos, diretamente determinados pelas formações ideológicas, mas também as categorias linguísticas que gozam de certa autonomia em relação às formações sociais exercem um papel ativo na percepção do mundo. P. 54
            .......
            A linguagem tem influência também sobre os comportamentos do homem. O discurso transmitido contém em si, como parte da visão de mundo que veicula, um sistema de valores, isto é, estereótipos dos comportamentos humanos que são valorizados positiva ou negativamente. Ele veicula os tabus comportamentais. A sociedade transmite aos indivíduos – com a linguagem e graças a ela – certos estereótipos, que determinam certos comportamentos. Esses estereótipos entranham-se de tal moda na consciência que acabam por ser considerados naturais. Figuras como “negro”, “comunista”, “puta”, têm um conteúdo cheio de preconceitos, aversões e hostilidades, ao passo que outras como “branco”, “esposa” estão impregnados de sentimentos positivos. Não devemos esquecer que os estereótipos só estão na linguagem porque representam a condensação de uma prática social.
            Veja-se texto sobre “comunismo” – p. 55



17. Um exemplo: a igualdade burguesa


            - Nos textos não figurativos, as coerções ideológicas manifestam-se, com toda nitidez, no nível dos temas.
            Ex: cita um texto sobre o funcionário público – p. 57
            Aparecem, no texto, três temas básicos da ideologia burguesa: a liberdade, a igualdade e a naturalidade das relações sociais – estas seriam naturais porque fundadas na liberdade e na igualdade – que os homens são livres e iguais, porque são seres racionais
            -O discurso, refletindo o nível da aparência da realidade, considera a razão como um fato que independe das coerções sociais – não vê a desigualdade presente na sociedade burguesa e a subordinação de uma classe à outra.


18. Outros exemplos: uma reprodução polêmica

           
Nos textos figurativos
            Tema do texto apresentado: o homem é determinado pelo meio – tema constante nos discursos da segunda metade do século XIX


19. A linguagem faz parte da superestrutura?


            -superestrutura (instituições políticas, jurídicas etc)
            Marr responde afirmativamente.
            Um dos pontos básico do marrismo: a língua teria origem no desejo de uma classe social dominar a outra.
            Classifica as línguas de acordo com seus estádios de desenvolvimento: quatro estádios.
            Suas idéias causam polêmicas mas têm o mérito de apontar para a necessidade de refletir sobre as relações entre linguagem e formação social.
            -sua falha maior – buscar relações entre linguagem e história no nível do sistema e não do discurso.
            As posições de Stálin: um artigo “A propósito do marxismo em linguística” – 1950 – duas teses:  a língua não é um fenômeno de superestrutura; ela não tem caráter de classe.
-          considera a língua uma gramática e um fundo léxico comum;
-          ideia da homegeneidade linguística – a língua é um determinante da nacionalidade;
-          como vê a linguagem de maneira muito restrita, uma vez que leva em conta apenas a dimensão sistêmica (a língua), não se ocupando do discurso, não pode perceber as determinações históricas que atuam sobre a linguagem.

. O lugar da linguagem
Obs. – Texto importante p. 72 e 73


20. Comunicar é agir


            Quando um enunciador comunica alguma coisa, tem em vista agir no mundo – ao exercer seu fazer informativo, produz um sentido como a finalidade de influir sobre os outros – fazer acreditar – “fazer-fazer
            Sem pretender que o discurso possa transformar o mundo, pode-se dizer que a linguagem pode ser instrumento de libertação ou de opressão, de mudança ou de conservação.
            Resume o que expôs nas últimas páginas:
a)      as formações discursivas, constituídas por um conjunto de temas e de figuras, materializam as formações ideológicas;
b)      essas formações discursivas são fenômenos de superestruturas, embora a linguagem em geral e a língua em particular sejam apenas o instrumento de materialização doas representações ideológicas;
c)      o uso de um determinado discurso é, de certa forma, uma ação no mundo.
Ver texto de O 18 Brumário de Luís Bonaparte, de Marx.

21. Conclusão – p. 76 a 78


a)  a linguagem é, ao mesmo tempo, autônoma em relação às formações sociais e determinada por fatores ideológicos;
b)  as coerções ideológicas constituem um elementos pré-semântico que determina o componente semântico;
c)  a concepção do discurso como fenômeno, ao mesmo tempo, autônomo e determinado obriga a análise a voltar-se para dentro e para fora, para o texto e para o contexto, para os mecanismo internos de agenciamento de sentido e para a formação discursiva que governa o texto;
d) o itinerário pelo discurso não se esgota no interior do próprio discurso, mas se projeta na história. É preciso levar em conta o intertexto par ler o texto;
e)  a AD deve desfazer a ilusão idealista de que o homem é senhor absoluto de seu discurso. Ele é antes servo da palavra, uma que vez que os temas, figuras, valores, juízos etc. provêm das visões de mundo existentes na formação social.



Observação: desconheço o autor desta ótima síntese da obra supracitada. Se alguém puder indicar o autor,eu agradeço. Assim, poderei dar os devidos créditos





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