ROTA PARA A CIÊNCIA
NORMAL
KUHN, Thomas S. A
estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 2. ed. 1978, p.
24-42
Neste ensaio, "ciência
normal" significa a pesquisa firmemente baseada em uma ou mais realizações
científicas passadas. Essas realizações são reconhecidas durante algum tempo
por alguma comunidade e científica específica como proporcionando os
fundamentos para sua prática posterior. Embora raramente na sua forma original,
hoje em dia essas realizações são relatadas pelos manuais científicos
elementares e avançados. Tais livros expõem o corpo da teoria aceita, ilustram
muitas (ou todas) as suas aplicações bem sucedidas e comparam essas aplicações
com observações e experiências exemplares. Uma vez que tais livros se tornaram
populares no começo do século XIX (e mesmo mais recentemente, como no caso das
ciências amadurecidas há pouco), muitos dos clássicos famosos da ciência
desempenham uma função similar.
A Física de Aristóteles, o Almagesto de Ptolomeu, os Principia e a óptica de Newton, a Eletricidade de Franklin, a Química de Lavoisier e a Geologia de Lyell - esses e muitos outros trabalhos serviram, por algum tempo, para definir implicitamente os problemas e métodos legítimos de um campo de pesquisa para as gerações posteriores de praticantes da ciência. Puderam fazer isso porque partilhavam duas características essenciais. Suas realizações suficientemente sem precedentes para atrair um grupo duradouro de partidário afastando-os de outras formas de atividade científica dissimilares. Simultaneamente, suas realizações eram suficientemente abertas para deixar toda a espécie de problemas para serem resolvidos pelo grupo redefinido de praticantes da ciência.
A Física de Aristóteles, o Almagesto de Ptolomeu, os Principia e a óptica de Newton, a Eletricidade de Franklin, a Química de Lavoisier e a Geologia de Lyell - esses e muitos outros trabalhos serviram, por algum tempo, para definir implicitamente os problemas e métodos legítimos de um campo de pesquisa para as gerações posteriores de praticantes da ciência. Puderam fazer isso porque partilhavam duas características essenciais. Suas realizações suficientemente sem precedentes para atrair um grupo duradouro de partidário afastando-os de outras formas de atividade científica dissimilares. Simultaneamente, suas realizações eram suficientemente abertas para deixar toda a espécie de problemas para serem resolvidos pelo grupo redefinido de praticantes da ciência.
Daqui por diante deverei
referir-me às realizações que partilham essas duas características como
"paradigmas", um termo estreitamente relacionado com "ciência
normal". Com a escolha do termo pretendo sugerir que alguns exemplos
aceitos na prática científica real - exemplos que incluem, ao mesmo tempo, lei,
teoria, aplicação e instrumentação - proporcionam modelos dos quais brotam as
tradições coerentes e específicas da pesquisa científica. São essas tradições
que o historiador descreve com rubricas como: "Astronomia Ptolomaica"
(ou "Copernicana") "Dinâmica Aristotélica" (ou
"Newtoniana"), "óptica Corpuscular" (ou "óptica
Ondulatória"), e assim por diante. O estudo dos paradigmas, muitos dos quais
bem mais especializadas do que os indicados acima, é o que prepara basicamente
o estudante para ser membro da comunidade científica determinada na qual atuará
mais tarde. Uma vez que ali o estudante reúne-se a homens que aprenderam as
bases de seu campo de estudo a partir dos mesmos modelos concretos, sua prática
subseqüente raramente irá provocar desacordo declarado sobre pontos
fundamentais. Homens cuja pesquisa está baseada em paradigmas compartilhados
estão comprometidos com as mesmas regras e padrões para a prática científica.
Esse comprometimento e o consenso aparente que produz são pré-requisitos para a
ciência normal, isto é, para a gênese e a continuação de uma tradição de
pesquisa determinada.
Será necessário acrescentar mais
sobre as razões da introdução do conceito de paradigma, uma vez que neste
ensaio ele substituirá uma variedade de noções familiares. Por que a realização
científica, como um lugar de comprometimento profissional, é anterior aos
vários conceitos, leis, teorias e pontos de vista que dela podem ser
abstraídos? Em que sentido o paradigma partilhado é uma unidade fundamental
para o estudo do desenvolvimento científico, uma unidade que não pode ser
totalmente reduzida a componentes atômicos lógicos que poderiam funcionar em seu
lugar? Quando as encontrarmos, as respostas a estas questões e outras similares
demonstrarão ser básicas para a compreensão, tanto da ciência normal, como do
conceito associado de paradigma Contudo, esta discussão mais abstrata vai
depender Ida exposição prévia de exemplos da ciência normal ou de paradigmas em
atividade. Mais especificamente, esses dois conceitos relacionados serão
esclarecidos indicando-se a possibilidade de uma espécie de pesquisa científica
sem paradigmas ou pelo menos sem aqueles de tipo tão inequívoco e obrigatório
como os nomeados acima. A aquisição de um paradigma e do tipo de pesquisa mais
esotérico que ele permite é um sinal de maturidade no desenvolvimento de
qualquer campo científico que se queira considerar.
Se o historiador segue,
desde a origem, a pista do conhecimento científico de qualquer grupo
selecionado de fenômenos interligados, provavelmente encontrará alguma variante
menor de um padrão ilustrado aqui a partir da História da óptica Física. Os
manuais atuais de Física ensinam ao estudante que a luz é composta de fótons,
isto é, entidades quântico-mecânicas que exibem algumas características de
ondas e outras de partículas. A pesquisa é realizada de acordo com este
ensinamento, ou melhor, de acordo com as caracterizações matemáticas mais
elaboradas a partir dás quais é derivada esta verbalização usual. Contudo, esta
caracterização da luz mal tem meio século. Antes de ter sido desenvolvida por
Planck, Einstein e outros no começo deste século, os textos de Física ensinavam
que a luz era um movimento ondulatório transversal, concepção que em última
análise derivava dos escritos ópticos de Young e Fresnel, publicados no início
do século XIX. Além disso, a teoria ondulatória não foi a primeira das
concepções a ser aceita pelos praticantes da ciência óptica. Durante o século
XVIII, o paradigma para este campo de estudos foi proporcionado pela óptica de
Newton, a qual ensinava que a luz era composta de corpúsculos de matéria.
Naquela época os físicos procuravam provas da pressão exercida pelas partículas
de luz ao colidir com os corpos sólidos, algo que não foi feito pelos primeiros
teóricos da concepção ondulatória.'
Essas transformações de
paradigmas da óptica Física são revoluções científicas e a transição sucessiva
de um paradigma a outro, por meio de uma revolução, é o padrão usual de
desenvolvimento da ciência amadurecida. No entanto, este não é o padrão usual
do período anterior aos trabalhos de Newton. É este contraste que nos interessa
aqui. Nenhum período entre a antigüidade remota e o fim do século XVII exibiu
uma única concepção da natureza da luz que fosse geralmente aceita. Em vez
disso havia um bom número de escolas e subescolas em competição, a maioria das
quais esposava uma ou outra variante das teorias de Epicuro, Aristóteles ou
Platão. Um grupo considerava a luz como sendo composta de partículas que
emanavam dos corpos materiais; para outro, era a modificação do meio que
intervinha entre o corpo e o olho; um outro ainda explicava a luz em termos de
uma interação do meio com uma emanação do olho; e haviam outras combinações e
modificações além dessas. Cada uma das escolas retirava forças de sua relação
com alguma metafísica determinada. Cada uma delas enfatizava, como observações
paradigmáticas, o conjunto particular de fenômenos ópticos que sua própria
teoria podia explicar melhor. Outras observações eram examinadas através de
elaboração ad hoc ou permaneciam como problemas especiais para a pesquisa
posterior.
Em épocas diferentes, todas estas escolas fizeram contribuições
significativas ao corpo de conceitos, fenômenos e técnicas dos quais Newton
extraiu o primeiro paradigma quase uniformemente aceito na óptica Física.
Qualquer definição do cientista, que exclua os membros mais criadores dessas
várias escolas, excluirá igualmente seus sucessores modernos. Esses homens eram
cientistas. Contudo, qualquer um que examine uma amostra da óptica Física
anterior a Newton poderá perfeitamente concluir que, embora os estudiosos dessa
área fossem cientistas, o resultado líquido de suas atividades foi algo menos
que ciência. Por não ser obrigado a assumir um corpo qualquer de crenças
comuns, cada autor de óptica Física sentia-se forçado a construir novamente seu
campo de estudos desde os fundamentos. A escolha das observações e experiências
que sustentavam tal reconstrução era relativamente livre. Não havia qualquer
conjunto-padrão de métodos ou de fenômenos que todos os estudiosos da óptica se
sentissem forçados a empregar e explicar. Nestas circunstâncias o diálogo dos
livros resultantes era freqüentemente dirigido aos membros das outras escolas
tanto como à natureza. Hoje em dia esse padrão é familiar a numerosos campos de
estudos criadores e não é incompatível com invenções e descobertas
significativas. Contudo, este não é o padrão de desenvolvimento que a óptica
Física adquiriu depois de Newton e nem aquele que outras ciências da natureza
tornaram familiar hoje em dia.
A história da pesquisa
elétrica na primeira metade do século XVIII proporciona um exemplo mais
concreto e melhor conhecido da maneira como uma ciência se desenvolve antes de
adquirir seu primeiro paradigma universalmente aceito. Durante aquele período
houve quase tantas concepções sobre a natureza da eletricidade como
experimentadores importantes nesse campo, homens como Hauksbee, Gray,
Desaguliers, Du Fay, Nollet, Watson, Franklin e outros. Todos seus numerosos
conceitos de eletricidade tinham algo em comum - eram parcialmente derivados de
uma ou outra versão da filosofia mecânico-corpuscular que orientava a pesquisa
científica da época. Além disso, eram todos componentes de teorias científicas
reais, teorias que tinham sido parcialmente extraídas de experiências e
observações e que determinaram em parte a escolha e a interpretação de
problemas adicionais enfrentados pela pesquisa. Entretanto, embora todas as
experiências fossem elétricas e a maioria dos experimentadores lessem os
trabalhos uns dos outros, suas teorias não tinham mais do que uma semelhança de
família.
Um primeiro grupo de teorias,
seguindo a prática do século XVII, considerava a atração e a geração por
fricção como os fenômenos elétricos fundamentais. Esse grupo tendia a tratar a
repulsão como um efeito secundário devido a alguma espécie de rebote mecânico.
Tendia igualmente a postergar por tanto tempo quanto possível tanto a discussão
como a pesquisa sistemática sobre o novo efeito descoberto por Gray - a
condução elétrica. Outros "eletricistas" (o termo é deles mesmo)
consideravam a atração e a repulsão como manifestações igualmente elementares
da eletricidade e modificaram suas teorias e pesquisas de acordo com tal
concepção. (Na realidade este grupo é extremamente pequeno - mesmo a teoria de
Franklin nunca explicou completamente a repulsão mútua de dois corpos
carregados negativamente.) Mas estes tiveram tanta dificuldade como o primeiro
grupo para explicar simultaneamente qualquer coisa que não fosse os efeitos
mais simples da condução. Contudo, esses efeitos proporcionaram um ponto de
partida para um terceiro grupo, grupo que tendia a falar da eletricidade mais
como um "fluido" que podia circular através de condutores do que como
um "fluido" que emanasse de não-condutores. Por seu turno, esse grupo
tinha dificuldade para reconciliar sua teoria corri numerosos efeitos de
atração e repulsão. Somente através dos trabalhos de Franklin e de seus
sucessores imediatos surgiu uma teoria capaz de dar conta, com quase igual
facilidade, de aproximadamente todos esses efeitos. Em vista disso essa teoria
podia e de fato realmente proporcionou um paradigma comum para a pesquisa de
uma geração subseqüente de "eletricistas".
Excluindo áreas como a
Matemática e a Astronomia, nas quais os primeiros paradigmas estáveis datam da
pré-história, e também aquelas, como a Bioquímica, que surgiu da divisão e
combinação de especialidades já amadurecidas, as situações esboçadas acima são
historicamente típicas. Sugiro que desacordos fundamentais de tipo similar
caracterizaram, por exemplo, o estudo do movimento antes de Aristóteles e da
Estática antes de Arquimedes, o estudo do calor antes de Black, da Química
antes de Boyle e Boerbaave e da Geologia Histórica antes de Hutton - embora
isso envolva de minha parte o emprego continuado de simplificações infelizes
que rotulam um extenso episódio histórico com um único nome, um tanto
arbitrariamente escolhido (por exemplo, Newton ou Franklin). Em partes da
Biologia - por exemplo, no estudo da hereditariedade - os primeiros paradigmas
universalmente aceitos são ainda mais recentes. Permanece em aberto a questão a
respeito de que áreas da ciência social já adquiriram tais paradigmas. A
História sugere que a estrada para um consenso estável na pesquisa é
extraordinariamente árdua.
Contudo, a História sugere
igualmente algumas razões para as dificuldades encontradas ao longo desse
caminho. Na ausência de um paradigma ou de algum candidato a paradigma, todos
os fatos que possivelmente são pertinentes ao desenvolvimento de determinada
ciência têm a probabilidade de parecerem igualmente relevantes. Como
conseqüência disso, as primeiras coletas de fatos se aproximam muito mais de
uma atividade ao acaso do que daquelas que o desenvolvimento subseqüente da
ciência torna familiar. Além disso, na ausência de uma razão para procurar
alguma forma de informação mais recôndita, a coleta inicial de fatos é
usualmente restrita à riqueza de dados que estão prontamente a nossa
disposição. A soma de fatos resultantes contém aqueles acessíveis à observação
e à experimentação casuais, mais alguns dos dados mais esotéricos procedentes
de ofícios estabelecidos, como a Medicina, a Metalurgia e a confecção de
calendários. A tecnologia desempenhou muitas vezes um papel vital no surgimento
de novas ciências, já que os ofícios são uma fonte facilmente acessível de
fatos que não poderiam ter sido descobertos casualmente.
Embora esta espécie de
coleta de fatos tenha sido essencial para a origem de muitas ciências
significativas, qualquer pessoa que examinar, por exemplo, os escritos
enciclopédicos de Plínio ou as Histórias Naturais de Bacon, descobrirá que ela
produz uma situação de perplexidade. De certo modo hesita-se em chamar de
científica a literatura resultante. As "histórias" baconianas do
calor, da cor, do vento, da mineração e assim por diante, estão repletas de
informações, algumas das quais recônditas. Mas justapõem fatos, que mais tarde
demonstrarão ser reveladores (por exemplo, o aquecimento por mistura), com
outros (o calor dos montes de esterco) que continuarão demasiado complexos para
serem integrados na teoria. Além disso, visto que qualquer descrição tem que
ser parcial, a História Natural típica omite com freqüência de seus relatos
imensamente circunstanciais exatamente aqueles detalhes que cientistas
posteriores considerarão fontes de iluminações importantes. Por exemplo, quase
nenhuma das primeiras "histórias" da eletricidade mencionam que o
farelo, atraído por um bastão de vidro coberto de borracha, é repelido
novamente. Esse efeito parecia mecânico e não elétrico. Além do mais, visto que
o coletor de dados casual raramente possui o tempo ou os instrumentos para ser
crítico, as histórias naturais justapõem freqüentemente descrições como as
mencionadas acima como outras de, digamos, aquecimento por antiperístase (ou
por esfriamento), que hoje em dia não temos condição alguma de confirmar. Apenas
muito ocasionalmente, como no caso da Estática, Dinâmica e óptica Geométrica
antigas, fatos coletados com tão pouca orientação por parte de teorias
preestabelecidas falam com suficiente clareza para permitir o surgimento de um
primeiro paradigma.
As escolas características
dos primeiros estágios do desenvolvimento de uma ciência criam essa situação.
Nenhuma História Natural pode ser interpretada na ausência de pelo menos algum
corpo implícito de crenças metodológicas e teóricas interligadas que permita a
seleção, avaliação e a crítica. Se esse corpo de crenças já não está implícito
na coleção de fatos - quando então temos à disposição mais do que "meros
fatos" - precisa ser suprido externamente, talvez por uma metafísica em
voga, por outra ciência ou por um acidente pessoal e histórico. Não é de
admirar que nos primeiros estágios do desenvolvimento de qualquer ciência,
homens diferentes confrontados com a mesma gama de fenômenos - mas em geral não
com os mesmos fenômenos particulares - os descrevam e interpretem de maneiras
diversas. É surpreendente (e talvez também único, dada a proporção em que
ocorrem) que tais divergências iniciais - possam em grande parte desaparecer
nas áreas que chamamos ciência.
As divergências realmente
desaparecem em grau considerável e então, aparentemente, de uma vez por todas.
Além disso, em geral seu desaparecimento é causado pelo triunfo de uma das
escolas pré-paradigmáticas, a qual, devido a suas próprias crenças e
preconceitos característicos, enfatizava apenas alguma parte especial do
conjunto de informações demasiado numeroso e incoativo. Os eletricistas que
consideravam a eletricidade um fluido, e por isso davam uma ênfase especial à
condução, proporcionam um exemplo típico excelente. Conduzidos por essa crença,
que mal e mal podia dar conta da conhecida multiplicidade de efeitos de atração
e repulsão, muitos deles conceberam a idéia de engarrafar o fluido elétrico. O
fruto imediato de seus esforços foi a Garrafa de Leyden, um artifício que nunca
poderia ter sido descoberto por alguém que explorasse a natureza fortuitamente
ou ao acaso. Entretanto, este artifício foi desenvolvido independentemente,
pelo menos por dois investigadores no início da década de 1740. Quase desde o
começo de suas pesquisas elétricas, Franklin estava especialmente interessado
em explicar aquele estranho e, em conseqüência, tão revelador aparelho. O
sucesso na explicação proporcionou o argumento mais efetivo para a
transformação de sua teoria em paradigma, apesar de este ser ainda incapaz de
explicar todos os casos conhecidos de repulsão elétrica. Para ser aceita como
paradigma, uma teoria deve parecer melhor que suas competidoras, mas não
precisa (e de fato isso nunca acontece) explicar todos os fatos com os quais
pode ser confrontada.
Aquilo que a teoria do
fluido elétrico fez pelo subgrupo que a defendeu, o paradigma de Franklin fez
mais tarde por todo o grupo dos eletricistas. Este sugeria as experiências que
valeriam a pena ser feitas e as que não tinham interesse, por serem dirigidas a
manifestações de eletricidade secundárias ou muito complexas. Entretanto, o
paradigma realizou esta taref a bem mais eficientemente do que a teoria do
fluido elétrico, em parte porque o fim do debate entre as escolas deu um fim à
reiteração constante de fundamentos e em parte porque a confiança de estar no
caminho certo encorajou os cientistas a empreender trabalhos de um tipo mais
preciso, esotérico e extenuantes Livre da preocupação com todo e qualquer
fenômeno elétrico, o grupo unificado dos eletricistas pôde ocupar-se bem mais
detalhadamente de fenômenos selecionados, projetando equipamentos especiais
para a tarefa e empregando-os mais sistemática e obstinadamente do que jamais
fora feito antes. Tanto a acumulação de fatos como a articulação da teoria tornaram-se
atividades altamente orientadas. O rendimento e a eficiência da pesquisa
elétrica aumentaram correspondentemente, proporcionando provas para uma versão
societária do agudo dito metodológico de Francis Bacon: "A verdade surge
mais facilmente do erro do que da confusão".
No próximo capítulo examinaremos
a natureza dessa pesquisa precisamente orientada ou baseada em paradigma, mas
antes indicaremos brevemente como a emergência de um paradigma afeta a
estrutura do grupo que atua nesse campo. Quando, pela primeira vez no
desenvolvimento de uma ciência da natureza, um indivíduo ou grupo produz uma
síntese capaz de atrair a maioria dos praticantes de ciência da geração
seguinte, as escolas mais antigas começam a desaparecer gradualmente. Seu
desaparecimento é em parte causado pela conversão de seus adeptos ao novo
paradigma. Mas sempre existem alguns que se aferram a uma ou outra das
concepções mais antigas; são simplesmente excluídos da profissão e seus
trabalhos são ignorados. O novo paradigma implica uma definição nova e mais
rígida do campo de estudos. Aqueles que não desejam ou não são capazes de
acomodar seu trabalho a ele têm que proceder isoladamente ou unir-se a algum
grupo." Historicamente, tais pessoas têm freqüentemente permanecido em
departamentos de Filosofia, dos quais têm brotado tantas ciências especiais.
Como sugerem essas indicações, algumas vezes é simplesmente a recepção de um
paradigma que transforma numa profissão ou pelo menos numa disciplina um grupo
que anteriormente interessava-se pelo estudo da natureza. Nas ciências (embora
não em campos como a Medicina, a Tecnologia e o Direito, que têm a sua raison
d'être numa necessidade social exterior) a criação de jornais especializados, a
fundação de sociedades de especialistas e a reivindicação de um lugar especial
nos currículos de estudo, têm geralmente estado associadas com o momento em que
um grupo aceita pela primeira vez um paradigma único. Pelo menos foi isso que
ocorreu, há século e meio atrás, durante o período que vai desde o desenvolvimento
de um padrão institucional de especialização científica até a época mais
recente, quando a parafernália de especializações adquiriu prestígio próprio.
A definição mais estrita de
grupo científico tem outras conseqüências. Quando um cientista pode considerar
um paradigma como certo, não tem mais necessidade, nos seus trabalhos mais
importantes, de tentar construir seu campo de estudos começando pelos primeiros
princípios e justificando o uso de cada conceito introduzido. Isso pode ser
deixado para os autores de manuais. Mas, dado o manual, o cientista criador
pode começar suas pesquisa onde o manual a interrompe e desse modo
concentrar-se exclusivamente nos aspectos mais sutis e esotéricos dos fenômenos
naturais que preocupam o grupo. Na medida em que fizer isso, seus relatórios de
pesquisa começarão a mudar, seguindo tipos de evolução que têm sido muito pouco
estudados, mas cujos resultados finais modernos são óbvios para todos e
opressivos para muitos. Suas pesquisas já não serão habitualmente incorporadas
a livros como Experiências... sobre a Eletricidade de Franklin ou a Origem das
Espécies de Darwin, que eram dirigidos a todos os possíveis interessados no
objeto de estudo do campo examinado. Em vez disso, aparecerão sob a forma de
artigos breves, dirigidos apenas aos colegas de profissão, homens que
certamente conhecem o paradigma partilhado e que demonstram ser os únicos
capazes de ler os escritos a eles endereçados.
Hoje em dia os livros científicos são
geralmente ou manuais ou reflexões retrospectivas sobre um ou outro aspecto da
vida científica. O cientista que escreve um livro tem mais probabilidades de
ver sua reputação comprometida do que aumentada. De uma maneira regular,
somente nos primeiros estágios do desenvolvimento das ciências, anteriores ao
paradigma, o livro possuía a mesma relação com a realização profissional que
ainda conserva em outras áreas abertas à criatividade. É somente naquelas áreas
em que o livro, com ou sem o artigo, mantém-se como um veículo para a
comunicação das pesquisas que as linhas de profissionalização permanecem ainda
muito tenuemente traçadas. Somente nesses casos pode o leigo esperar manter-se
a par dos progressos realizados fazendo a leitura dos relatórios originais dos
especialistas. Tanto na Matemática como na Astronomia, já na Antigüidade os
relatórios de pesquisas deixaram de ser inteligíveis para um auditório dotado
de cultura geral. Na Dinâmica, a pesquisa tornou-se igualmente esotérica nos
fins da Idade Média, recapturando sua inteligibilidade mais generalizada apenas
por um breve período, durante o início do século XVII, quando um novo paradigma
substituiu o que havia guiado a pesquisa medieval. A pesquisa elétrica começou
a exigir uma tradução para leigos no fim do século XVIII. Muitos outros campos
da ciência física deixaram de ser acessíveis no século XIX. Durante esses
mesmos dois séculos transições simulares podem ser identificadas nas
diferentes. áreas das ciências biológicas. Podem muito bem estar ocorrendo
hoje, em determinados setores das ciências sociais. Embora se tenha tornado
costumeiro (e certamente apropriado) lamentar o hiato cada vez maior que separa
o cientista profissional de seus colegas de outras disciplinas, pouca atenção
tem sido prestada à relação essencial entre aquele hiato e os mecanismos
intrínsecos ao progresso científico.
Desde a Antigüidade um
campo de estudos após o outro tem cruzado a divisa entre o que o historiador
poderia chamar de sua pré-história como ciência e sua história propriamente
dita. Essas transições à maturidade raramente têm sido tão repentinas ou tão
inequívocas como minha discussão necessariamente esquemática pode ter dado a
entender. Mas tampouco foram historicamente graduais, isto é, coextensivas com
o desenvolvimento total dos campos de estudo em que ocorreram. Os que
escreveram sobre a eletricidade durante as primeiras décadas do século XVIII
possuíam muito mais informações sobre os fenômenos elétricos que seus
predecessores do século XVI. Poucos fenômenos elétricos foram acrescentados a
seus conhecimentos durante o meio século posterior a 1740. Apesar disso, em
pontos importantes, a distância parece maior entre os trabalhos sobre a
eletricidade de Cavendish, Coulomb e Volta (produzidos nas três últimas décadas
do século XVIII) e os de Gray, Du Fay e mesmo Franklin (início do mesmo
século), do que entre esses últimos e os do século XVI. Em algum momento entre
1740 e 1780, os eletricistas tornaram-se capazes de, pela primeira vez, dar por
estabelecidos os fundamentos de seu campo de estudo. Daí para a frente
orientaram-se para problemas mais recônditos e concretos e passaram cada vez
mais a relatar os resultados de seus trabalhos em artigos endereçados a outros
eletricistas, ao invés de em livros endereçados ao mundo instruído em geral.
Alcançaram, como grupo, o que fora obtido pelos astrônomos na Antigüidade,
pelos estudantes do movimento na Idade Média, pela óptica Física no século XVII
e pela Geologia Histórica nos princípios do século XIX. Elaboraram um paradigma
capaz de orientar as pesquisas de todo o grupo. Se não se tem o poder de
considerar os eventos retrospectivamente, torna-se difícil encontrar outro
critério que revele tão claramente que um campo de estudos tornou-se uma
ciência.
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