segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Porque somos peritos em falar, não precisamos ser tão amadores em escutar



 

O Segredo do Passeador de Humanos




Você por certo já ouviu falar no ‘passeador de cães’. Com o tempo rarefeito, terceiriza-se os passeios com os queridos peludos domésticos. Mas que tal se alguém cobrasse dinheiro para dar um passeio com seu amigo ou ente da sua família? Pois esse “serviço” já existe nos EUA, em Israel, e quem sabe mais aonde. Para dar uma voltinha básica de um quilômetro e meio, um passeador norte-americano cobra por volta de R$ 23,00. 

O fato foi manchete recente na imprensa britânica, a qual destacou ainda que “outra pessoa no Reino Unido quer que o americano se mude para lá para expandir os serviços”. O próximo passo, diz o insólito empreendedor, será criar uma espécie de Uber de passeadores, uma vez que ele não está dando conta de atender a demanda e já precisou até contratar uma ‘equipe de passeadores’. 


É verdade que, graças ao espaço cibernético, ampliamos nossa ‘rede de contatos’. Multiplicaram-se assim nossas ‘personas’, à base de muitos bits e pixels. Com tantos contatos “on line”, me pergunto: por que afinal alguém precisaria contratar um ‘passeador’? É fato que todo humano carece de interações sociais. Aristóteles já admitia: um homem só, ou é um deus, ou é uma besta. Ser humano exige a condição da convivência. As ciências humanas admitem que nos fazemos humanos a partir de interações com outros humanos. Psicólogos e sociólogos há muito se debruçam sobre o modo como somos afetados pelos fenômenos da aceitação, do reconhecimento, da validação, do ajustamento... Paradoxalmente, sentimos que crescemos em “ambiente ácido”... e talvez isso até explique porque somos tão ávidos por “açúcar & afeto” (como já insinuava um antigo slogan da indústria alimentícia).

No universo televisivo e virtual, pessoas seguem fazendo barulho e exibindo “plumagens”. Parece haver uma ânsia crescente por ‘ser ouvido’, por ‘se fazer notar’. Por tantas razões, no limite, vale até entrar na fila prá fazer papel de idiota no picadeiro do circo tecnológico, desde que isso lhes renda visualizações (leia-se: atenção) em seus perfis cibernéticos... Contudo, não são só os cães que estão gradualmente perdendo a atenção de seus donos. Nossas mais básicas relações pessoais também não vão lá muito bem, desde o âmbito familiar até o ambiente pedagógico-escolar. Tais relações se alimentam de nossas posturas corporais, dos códigos ocultos em nossos olhares, do contato pele a pele, de cheiros, de toques e jeitos. Atualmente, resta a casca quase vazia da mera presença fisiológica: corpos-zumbis de presentes-ausentes. 

Alunos, filhos, amigos... todos formalmente presentes, na sala de aula ou no jantar. É o protocolo... mas em segundos, lá se foram ao longe, pelas fascinantes portas virtuais. Enquanto a atenção se dispersa, poucos restam para ouvir... e os espaços de con-vivência presencial seguem definhando. Hoje, os corpos não garantem mais presença autêntica. As interações sim, são milhares, mas cada vez mais parecidas como muitas frutas de hipermercado: inodoras... insípidas... começa a faltar-lhes o aroma e o sabor da presença intensa e honesta. 

Por isso, talvez, tal inusitada ‘profissão’: a do passeador de humanos! O segredo de tanto sucesso, segundo admite o próprio passeador citado na reportagem, está na “capacidade de ouvir a pessoa com quem está caminhando”. Note: o tão humano ato de ouvir tornando-se habilidade rara e onerosa... 

O fato aqui não é sobre caminhar, mas sobre algo além daquela escuta mecânica que termina atropelando a fala alheia (porque no fundo só ouvíamos mesmo era o barulho dos nossos próprios pensamentos). Até Deus precisa ser ouvido! Mas para isso o humano precisa calar sua própria voz, seu pensamento e sua ânsia. 

Há campanhas para se doar sangue, agasalhos, dinheiro e até livros... Proponho outra! Sejamos dadores de escuta qualificada, sagrada, desarmada e gratuita. Esse tipo de atenção nos conecta intensamente, sem “plugs”, sem “wi-fi”, sem “bluetooth” ou “apps”, sem 3G ou 4G, sem rotular e sem julgar (e sem tanto Inglês no meio do Português). 

Quer dar um belo presente a alguém? Eis a dica: Ouça-o! Silêncios viraram artigos de luxo. Porque somos peritos em falar, não precisamos ser tão amadores em escutar.

 
publicado no Jornal da Cidade (Bauru) em 28 de novembro de 2016

http://www.jcnet.com.br/editorias_noticias.php?codigo=246014

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