Surgimento e Queda de Paradigmas
Há progresso na ciência?
Comte - Pai do Positivismo |
Houve um tempo em que se pensava que a ciência (assim como ocorreria com a sociedade) evoluia e progredia continuamente, de modo ininterrupto. Tal noção de evolução e de progresso contínuos parte da suposição aparentemente óbvia de que o tempo é uma linha reta sem interrupção, homogênea. Contínuo e cumulativo, o tempo garantiria aperfeiçoamento a todos os seres (naturais e humanos), bem como a todos os produtos culturais de uma certa sociedade.
A ideia do Evolucionismo que afetou tanto as ciências naturais quanto as ciências humanas no século XIX, implica na concepção do progresso como lei absoluta e está embasada na crença da superioridade do momento presente em relação ao passado, bem como do futuro em relação ao momento presente. Assim, “europeus civilizados” seriam superiores aos africanos e aos índios, já que as culturas desses últimos eram tecnologicamente menos desenvolvidas, visivelmente “primitivas”, atrasadas e anacrônicas. Já, a cultura tecnologicamente sofisticada dos europeus indicaria sinais inequívocos de progresso, de evolução e, portanto, de superioridade. Entre as próprias ciências, a física de Galileu e Newton seria, portanto, superior à aristotélica, a física quântica, por sua vez, seria superior à de Galileu e Newton. Supunha-se que as mudanças científicas indicavam mera evolução ou progresso dos conhecimentos humanos.
A
Filosofia das Ciências, estudando as mudanças científicas, começou a desmentir
tais idéias de evolução e progresso. Alguns cientistas e filósofos começaram a
compreender que as elaborações científicas e os ideais de cientificidade são
diferentes e descontínuos.
Quando,
por exemplo, comparamos a geometria clássica ou geometria euclidiana (que opera
com o espaço plano) e a geometria contemporânea ou topológica (que opera com o
espaço tridimensional), vemos que não se trata de duas etapas ou de duas fases
sucessivas da mesma ciência geométrica, e sim de duas geometrias diferentes,
com princípios, conceitos, objetos, demonstrações completamente diferentes. Não
houve evolução e progresso de uma para outra, pois são duas geometrias diversas
e não geometrias sucessivas.
Do mesmo
modo, quando comparamos as físicas de Aristóteles, Galileu-Newton e Einstein,
não estamos diante de uma mesma física, que teria evoluído ou progredido, mas
diante de três físicas diferentes, baseadas em princípios, conceitos,
demonstrações, experimentações e tecnologias completamente diferentes. Em cada
uma delas, a idéia de natureza é diferente; em cada uma delas os métodos
empregados são diferentes; em cada uma delas o que se deseja conhecer é
diferente.
Quando
comparamos a biologia genética de Mendel e a genética formulada pela bioquímica
(baseada na descoberta de enzimas, de proteínas do DNA ou código genético),
também não encontramos evolução e progresso, mas diferença e descontinuidade.
Assim, verificamos surpresos que o modelo explicativo que orientava o trabalho
de Mendel era o da relação sexual como um encontro entre dois entes distintos
(espermatozóide e óvulo); enquanto o modelo que orienta a genética
contemporânea é o da cibernética e da teoria da informação.
Quando
comparamos a ciência da linguagem do século XIX (que era baseada nos estudos de
filologia, isto é, nos estudos da origem e da história das palavras) com a
lingüística contemporânea (que, como vimos no capítulo dedicado à linguagem,
estuda estruturas), vemos duas ciências diferentes. E o mesmo pode ser dito de
todas as ciências.
Verificou-se,
portanto, uma descontinuidade e uma diferença temporal entre as teorias
científicas como conseqüência não de uma forma mais evoluída, mais progressiva
ou melhorada de fazer ciência, e sim como resultado de diferentes maneiras de
conhecer e construir os objetos científicos, de elaborar os métodos e inventar
tecnologias.
Gastón Bachelard - autor do conceito de ruptura |
Para
identificar essa descontinuidade no conhecimento científico, o filósofo Gaston
Bachelard (1884-1962) criou a expressão “corte epistemológico” ou “ruptura
epistemológica”. Eis o primeiro golpe contra as posições empiristas-indutivistas.
Bachelard notou que cada novo modelo não se valia de nenhum material anterior,
pertencente à "ciência" que viria a substituir. E Bertrand Russel não
deixou por menos: "A física nos fala muito menos do mundo real do que se
supunha anteriormente".
O
dogmatismo cientificista estava condenado. A partir de então tem início um
processo de desmistificação da concepção de que método científico é
“procedimento regulado por normas rígidas para a produção do conhecimento
científico”, de que “conhecimento científico é sinônimo de conhecimento
verdadeiro e infalível”, bem como de que “a ciência é um conhecimento que
retrata objetivamente a realidade”.
George F. Kneller
complementa essa nossa reflexão quanto à relatividade do conhecimento científico,
ao constatar que “a ciência é apenas uma parte da tentativa da humanidade de
compreender o mundo em todos os seus aspectos”. Ele conclui afirmando que
(...) “Ciência,
literatura, arte, história, religião, misticismo iluminam aspectos da
realidade. A filosofia esforça-se por ver a realidade total. Analisa a natureza
e as descobertas dos diferentes ramos do conhecimento, examina os pressupostos
em que elas assentam e os problemas a que dão origem, e procura estabelecer uma
visão coerente do domínio total da experiência”.
“Cada uma
dessas formas do conhecimento merece ser cultivada per se. À sua maneira própria, cada uma delas familiariza-nos com
uma parte da realidade. Devemos ver a ciência em seu lugar e não esperar que
ela assimile ou desacredite essas outras atividades”. (A Ciência como atividade humana,
p. 149-52.)
Silvio
Motta Maximino
Fontes consultadas:
O QUE É
CIÊNCIA AFINAL?, de Alan F. Chalmers – Tradução: Raul Filker Editora
Brasiliense 1993
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