KARL POPPER
London School of Economics
Tradução de Octávio Mendes Cajado.
Fonte: A Crítica do Desenvolvimento do Conhecimento, Editoria Cultrix, 1979
Extraído das atas do Colóquio Internacional sobre Filosofia da Ciência (Londres, 1965)
A crítica do Professor Kuhn às minhas opiniões sobre ciência é a mais interessante que já encontrei até agora.
A
CIÊNCIA NORMAL E SEUS PERIGOS
KARL POPPER
London School of Economics
Tradução de Octávio Mendes Cajado.
Fonte: A Crítica do Desenvolvimento do Conhecimento, Editoria Cultrix, 1979
Extraído das atas do Colóquio Internacional sobre Filosofia da Ciência (Londres, 1965)
A crítica do Professor Kuhn às minhas opiniões sobre ciência é a mais interessante que já encontrei até agora. Há, reconhecidamente, alguns pontos, mais ou menos importantes, em que ele não me entende ou me interpreta mal. Kuhn, por exemplo, cita com desaprovação um trecho do início do primeiro capítulo do meu livro, The Logic of Scientific Discovery (A Lógica da Descoberta Científica). Pois eu gostaria de citar uma passagem que ele deixou passar, constante do Prefácio da Primeira Edição. (Na primeira edição a passagem em apreço vinha logo antes do trecho citado por Kuhn; mais tarde inseri o Prefácio da Edição Inglesa entre as duas passagens.) Ao passo que breve trecho citado por Kuhn poderá soar, fora do contexto, como se eu não estivesse a par do fato, destacado por ele, de que os cientistas desenvolvem necessariamente suas idéias dentro de uma estrutura teórica definida, seu imediato predecessor de 1934 soa quase como uma antecipação desse ponto central da opinião de Kuhn.
Depois de duas epígrafes tiradas de Schlick e
de Kant, meu livro começa com as seguintes palavras: "Um cientista
empenhado numa pesquisa, digamos no campo da física, pode atacar diretamente
o seu problema. Pode ir logo ao âmago do assunto: isto é, ao coração
de uma estrutura organizada. Pois já existe uma estrutura de doutrinas
científicas; e, com ela, uma situação-problema geralmente aceito. É por isso
que ele pode deixar para outros o ajuste de sua contribuição à estrutura do
conhecimento científico." E, a seguir, prossigo dizendo que o filósofo se
encontra em posição diferente.
Agora parece muito claro que a passagem
citada descreve a situação "normal" do cientista de modo muito
semelhante a Kuhn: há um edifício, uma estrutura organizada da ciência que
fornece ao cientista uma situação-problema geralmente aceito a que o seu
próprio trabalho pode ajustar-se. Isso se parece muito com um dos pontos
principais de Kuhn: a saber, que a ciência "normal", como ele a
chama, ou o trabalho "normal" do cientista, pressupõe uma estrutura
organizada de suposições, ou uma teoria, ou um programa de pesquisas,
necessário à comunidade de cientistas a fim de poderem discutir racionalmente o
seu trabalho.
O fato de haver Kuhn passado por alto esse ponto de concordância e de haver-se aferrado ao que vinha imediatamente depois, e que ele supunha fosse um ponto de discordância me parece significativo. Mostra que só lemos e compreendemos um livro com expectativas definidas em nossa mente. Isso, de fato, pode ser considerado uma das conseqüências de minha tese de que abordamos tudo à luz de uma teoria preconcebida. Assim também um livro. Em conseqüência disso, estamos sujeitos a escolher as coisas de que gostamos ou desgostamos ou que desejamos, por outros motivos, encontrar no livro; e assim fez Kuhn ao ler o meu livro.
Entretanto, apesar desses pontos secundários,
Kuhn me compreende muito bem melhor, creio eu, do que a maioria dos críticos
que conheço; e suas duas críticas principais são muito importantes.
A primeira dessas críticas sustenta, em
poucas palavras, que passei totalmente por alto o que ele denomina ciência
"normal", e me empenhei exclusivamente em descrever o que ele
denomina "pesquisa extraordinária" ou "ciência
extraordinária".
Creio que a distinção entre as duas espécies
de atividades talvez não seja tão nítida quanto o quer Kuhn; entretanto, estou
pronto para admitir que, na melhor das hipóteses, não tive mais que uma obscura
consciência dessa distinção; e o que é mais, que a distinção aponta para algo
de suma importância.
Nessas circunstâncias, é relativamente
secundário serem ou não os termos de Kuhn, ciência "normal" e ciência
"extraordinária", até certo ponto petições de princípio e (no sentido
de Kuhn) "ideológicos". Creio que são tudo isso; o que, porém, não
diminui meus sentimentos de gratidão a Kuhn por haver assinalado a distinção e
por haver assim aberto meus olhos para uma série de problemas que eu ainda não
tinha visto com clareza.
A ciência "normal", no sentido de
Kuhn, existe. É a atividade do profissional não-revolucionário, ou melhor, não
muito crítico: do estudioso da ciência que aceita o dogma dominante do dia; que
não deseja contestá-lo; e que só aceita uma nova teoria revolucionária quando
quase toda a gente está pronta para aceitá-la — quando ela passa a estar na
moda, como uma candidatura antecipadamente vitoriosa a que todos, ou quase
todos, aderem. Resistir a uma nova moda exige talvez tanta coragem quanto criar
uma.
Vocês talvez digam que, ao descrever dessa
maneira a ciência "normal" de Kuhn, eu o estou criticando implícita e
sub-repticiamente. Afiançarei, portanto, mais uma vez, que o que Kuhn escreveu
existe, e precisa ser levado em consideração pelos historiadores da ciência. O
fato de tratar-se de um fenômeno de que não gosto (porque o considero perigoso
para a ciência), ao passo que Kuhn, aparentemente, não desgosta dele (porque o
considera "normal") é outro assunto; assunto, aliás, muitíssimo
importante.
A meu ver, o cientista "normal",
tal como Kuhn o descreve, é uma pessoa da qual devemos ter pena. (Consoante as
opiniões de Kuhn acerca da história da ciência, muitos grandes cientistas devem
ter sido "normais"; entretanto, como não tenho pena deles, não creio
que as opiniões de Kuhn estejam muito certas.) O cientista "normal",
a meu juízo, foi mal ensinado. Acredito, e muita gente acredita como eu, que
todo o ensino de nível universitário (e se possível de nível inferior) devia
consistir em educar e estimular o aluno a utilizar o pensamento crítico. O
cientista "normal", descrito por Kuhn, foi mal ensinado. Foi ensinado
com espírito dogmático: é uma vítima da doutrinação. Aprendeu uma técnica que
se pode aplicar sem que seja preciso perguntar a razão pela qual pode ser
aplicada (sobretudo na mecânica quântica). Em conseqüência disso, tornou- se o que
pode ser chamado cientista aplicado, em contraposição ao que eu chamaria
cientista puro. Para usarmos a expressão de Kuhn, ele se contenta em resolver
"enigmas".
A escolha desse termo parece indicar que
Kuhn deseja destacar que não é um problema realmente fundamental o que o
cientista "normal" está preparado para enfrentar: é, antes, um
problema de rotina, um problema de aplicação do que se aprendeu; Kuhn o
descreve como um problema em que se aplica a teoria dominante (a que ele dá o
nome de "paradigma"). O êxito do cientista "normal"
consiste tão-só em mostrar que a teoria dominante pode ser apropriada e
satisfatoriamente aplicada na obtenção de uma solução para o enigma em questão.
A descrição do cientista "normal"
feita por Kuhn lembra-me claramente uma conversa que tive com meu falecido
amigo, Philipp Frank, por volta de 1933. Nessa ocasião Frank se queixava
amargamente do enfoque da ciência sem espírito crítico característico da
maioria dos estudantes de engenharia. Eles queriam simplesmente "conhecer
os fatos". Rejeitavam as teorias ou hipóteses problemáticas, que não
fossem "geralmente aceitas": elas intranqüilizavam os estudantes, que
só queriam conhecer as coisas, os fatos, que pudessem aplicar em sã consciência
e sem análises introspectivas.
Admito que esse tipo de atitude existe; e
existe não só entre engenheiros, mas também entre pessoas educadas como
cientistas. Só posso dizer que vejo um grande perigo nisso e na possibilidade
que tem de tornar-se normal (assim como vejo um grande perigo no aumento da
especialização, outro fato histórico inegável) : um perigo para a ciência e, na
verdade, para nossa civilização. O que mostra por que considero tão importante
a ênfase dada por Kuhn à existência desse tipo de ciência.
Acredito, porém, que Kuhn se equivoca quando
sugere que é normal o que ele chama de ciência "normal".
Claro está que eu nem sonharia brigar por
causa de um termo. Mas gostaria de sugerir que poucos cientistas lembrados pela
história da ciência foram "normais" no sentido de Kuhn, se é que
houve algum que o fosse. Em outras palavras, discordo de Kuhn não só no tocante
a certos fatos históricos, mas também no tocante ao que é característico da
ciência.
Tome-se, por exemplo, Charles Darwin antes da
publicação de The Origin of Species
(A Origem das Espécies). Mesmo depois dessa publicação ele foi o que se poderia
descrever como um "revolucionário relutante", para usarmos a bela
descrição de Max Planck feita pelo Professor Pearce Williams; antes dela,
Darwin não tinha nada de revolucionário. Nada se assemelha a uma atitude
revolucionária consciente em sua descrição de The Voyage of the Beagle (A Viagem do Beagle). Mas ela está cheia
de problemas; problemas autênticos, novos e fundamentais, e engenhosas
conjeturas — conjeturas que competem freqüentemente umas com as outras — a
respeito de possíveis soluções.
Dificilmente haverá uma ciência menos
revolucionária do que a botânica descritiva. Não obstante, o botânico
descritivo enfrenta constantemente problemas autênticos e interessantes:
problemas de distribuição, problemas de localizações características, problemas
de diferenciação de espécies ou subespécies, problemas como os da simbiose,
inimigos característicos, doenças características, variedades resistentes,
variedades mais ou menos férteis, e assim por diante. Muitos problemas
descritivos obrigam o botânico a empregar um enfoque experimental; e isso leva
à fisiologia das plantas e, assim, a uma ciência teórica e experimental (em
lugar de uma ciência puramente "descritiva"). As várias fases dessas
transições fundem-se de modo quase imperceptível e surgem em cada fase
problemas autênticos em lugar de "enigmas".
Mas talvez Kuhn chame "enigma" ao
que eu chamaria "problema"; e o fato é que não queremos brigar por
causa de palavras. Seja-me, portanto, permitido dizer alguma coisa mais geral a
respeito da tipologia dos cientistas de Kuhn.
Afirmo que entre o "cientista
normal" de Kuhn e o seu "cientista extraordinário" há muitas
gradações; e é preciso que haja. Tome-se Boltzmann, por exemplo; haverá poucos
cientistas maiores do que ele. Dificilmente, porém, se poderá dizer que sua
grandeza consiste em haver ele preparado uma revolução importante porque era,
em extensão considerável, um seguidor de Maxwell. Mas estava tão longe de ser
um "cientista normal" quanto se pode estar; lutador corajoso,
resistiu à moda imperante em seu tempo — moda que, a propósito, só imperou no
continente e teve poucos seguidores, naquela época, na Inglaterra.
Acredito que a idéia de Kuhn de uma tipologia
dos cientistas e dos períodos científicos é importante, mas necessita de
restrições. O seu esquema de períodos "normais", dominados por uma
teoria imperante (um "paradigma", segundo a terminologia de Kuhn) e
seguidos de revoluções excepcionais, parece ajustar-se muito bem à astronomia.
Mas não se ajusta, por exemplo, à evolução da teoria da matéria; nem à evolução
da teoria das ciências biológicas desde, digamos, Darwin e Pasteur. Em relação
ao problema da matéria, sobretudo, tivemos pelo menos três teorias dominantes
que competiram desde a Antigüidade: as teorias da continuidade, as teorias
atômicas e as teorias que tentavam combinar as duas primeiras. Além disso,
tivemos por algum tempo a versão de Berkeley feita por Mach — a teoria de que a
"matéria" era um conceito mais metafísico do que científico: de que
não havia nada parecido com uma teoria física da estrutura da matéria; e de que
a teoria fenomenológica do calor deveria tornar-se o paradigma por excelência
de todas as teorias físicas. (Emprego aqui a palavra "paradigma" num
sentido um pouco diferente do que lhe dá Kuhn: não para indicar uma teoria
dominante, mas um programa de pesquisa - um modo de explicação considerado tão
satisfatório por alguns cientistas que eles exigem a sua aceitação geral.)
Conquanto eu considere importantíssimo o
descobrimento de Kuhn do que ele chama de ciência "normal", não
concordo com a afirmativa de que a história da ciência lhe apóia a doutrina
(essencial à sua teoria da comunicação racional) segundo a qual
"normalmente" temos uma teoria dominante — um paradigma — em cada
domínio científico, e ainda segundo a qual a história de uma ciência consiste
numa seqüência de teorias dominantes, com períodos revolucionários
intervenientes de ciência "extraordinária"; períodos que ele descreve
como se a comunicação entre cientistas se houvesse interrompido mercê da
ausência de uma teoria dominante.
Essa imagem da história da ciência conflita
com os fatos tais como os vejo. Pois sempre houve, desde a Antigüidade,
constante e proveitosa discussão entre as teorias dominantes concorrentes da
matéria.
Agora, em seu atual ensaio, Kuhn parece
propor a tese de que a lógica da ciência tem pouco interesse e nenhum poder
explanatório para o historiador da ciência.
Afigura-se-me que, vinda de Kuhn, essa tese é
quase tão paradoxal quanto o foi a tese "Eu não uso hipóteses"
exposta na Optics de Newton. Pois
assim como Newton usava hipóteses, assim Kuhn usa a lógica — não só para
argumentar, mas também no mesmíssimo sentido em que me refiro à Lógica da
Descoberta. Ele emprega, todavia, uma lógica da descoberta que, em certos
pontos, difere radicalmente da minha a lógica de Kuhn é a lógica do
relativismo histórico.
Permitam-me mencionar primeiro alguns pontos
de concordância. Acredito que a ciência é essencialmente crítica; que consiste
em conjeturas audazes e, portanto, pode ser descrita como revolucionária.
Sempre acentuei, todavia, a necessidade de algum dogmatismo: o cientista
dogmático tem um papel importante para representar. Se nos sujeitarmos à
crítica com demasiada facilidade, nunca descobriremos onde está a verdadeira
força das nossas teorias.
Mas Kuhn não quer saber desse dogmatismo.
Acredita no domínio de um dogma imperante por períodos consideráveis; e não
acredita que o método da ciência seja, normalmente, o método de conjeturas
audazes e de crítica.
Quais são os seus principais argumentos? Não
são psicológicos nem históricos — são lógicos: Kuhn sugere que a racionalidade
da ciência pressupõe a aceitação de uma referencial comum. Sugere que a
racionalidade depende de algo como uma linguagem comum e um conjunto comum de
suposições. Sugere que a discussão racional e a crítica racional só serão
possíveis se estivermos de acordo sobre questões fundamentais.
Essa é uma tese amplamente aceita e, com
efeito, está na moda: a tese do relativismo. E é uma tese lógica.
Considero-a equivocada. Admito, naturalmente,
que é muito mais fácil discutir enigmas dentro de um referencial comum aceito e
ser levado pela maré de uma nova moda imperante a um novo referencial, do que
discutir princípios fundamentais — isto é, o próprio referencial de nossas
suposições. Mas a tese relativista de que a estrutura não pode ser discutida
criticamente pode ser discutida criticamente e não resiste à crítica.
Dei-lhe o nome de O Mito do Referencial, e
discuti-a em várias ocasiões. Considero-a um equívoco lógico e filosófico.
(Lembro-me de que Kuhn não gosta do meu emprego da palavra
"equívoco"; mas essa aversão é simplesmente parte do seu
relativismo.)
Eu gostaria de dizer em poucas palavras por
que não sou relativista: acredito na verdade "absoluta" ou
"objetiva", no sentido de Tarski (embora, naturalmente, não seja um
"absolutista", pois não penso que eu, nem qualquer outra pessoa,
temos a verdade no bolso). Não duvido de que este seja um dos pontos em que
estamos mais profundamente divididos; e é um ponto lógico.
Admito que a qualquer momento, somos
prisioneiros apanhados no referencial das nossas teorias; das nossas
expectativas; das nossas experiências passadas; da nossa linguagem. Mas somos
prisioneiros num sentido pickwickiano; se o tentarmos, poderemos sair de nosso
referencial a qualquer momento. É verdade que tornaremos a encontrar-nos em
outro referencial, mas este será melhor e mais espaçoso; e poderemos, a
qualquer momento, deixá-lo também.
O ponto central é que é sempre possível uma
discussão crítica e uma comparação dos vários referenciais. Não passa de um
dogma — e um dogma perigoso — o que estatui que os diversos referenciais são
como linguagens mutuamente intradutíveis. O fato é que nem línguas totalmente
diferentes (como o inglês e o hopi, ou o chinês) são intraduzíveis, e que
existem inúmeros índios ou chineses que aprenderam a dominar perfeitamente o
inglês.
O Mito do Referencial, em nosso tempo, é o
baluarte central do irracionalismo. A tese que lhe oponho é que ele
simplesmente exagera a dificuldade, transformando-a numa impossibilidade. Não
se pode deixar de admitir a dificuldade da discussão entre pessoas educadas
situadas em diferentes referências. Mas nada é mais proveitoso que uma
discussão dessa natureza; do que o embate cultural que estimulou algumas das
maiores revoluções intelectuais.
Admito que uma revolução intelectual se
assemelha com freqüência a uma conversão religiosa. Uma nova visão das coisas
pode apanhar-nos como o fuzilar de um raio. Mas isso não quer dizer que não
podemos avaliar, crítica e racionalmente, nossos pontos de vista anteriores à
luz dos novos.
Seria, desse modo, simplesmente falso dizer
que a transição da teoria da gravidade de Newton para a de Einstein é um salto
irracional e que as duas não são racionalmente comparáveis. Existem, ao
contrário, inúmeros pontos de contato (tais como o papel da equação de Poisson)
e pontos de comparação: segue-se da teoria de Einstein que a teoria de Newton é
uma excelente aproximação (a não ser no que concerne aos planetas e cometas que
se movem em órbitas elípticas com excentricidades consideráveis).
Nessas condições, em ciência, à diferença do
que acontece na teologia, é sempre possível o confronto crítico das teorias
concorrentes, dos referenciais que competem entre si. E a negação dessa
possibilidade representa um equívoco. Na ciência (e só na ciência) podemos
dizer que fizemos progressos genuínos e que sabemos mais agora do que sabíamos
antes.
Assim sendo, a diferença entre mim e Kuhn
remonta, de maneira fundamental, à lógica. E o mesmo acontece com toda a teoria
de Kuhn. À sua proposta: "A Psicologia em lugar da Lógica da
Descoberta" podemos responder: todos os seus argumentos advém da tese de
que o cientista é logicamente obrigado a aceitar um referencial, visto que
nenhuma discussão racional é possível entre referenciais. Eis aí uma tese
lógica — mesmo que seja uma tese equivocada.
De fato, como já expliquei alhures, o
"conhecimento científico" pode ser considerado como destituído de
objeto. Pode ser encarado como um sistema de teorias do qual trabalhamos como
trabalham os pedreiros numa catedral. A meta é descobrir teorias que, à luz da
discussão crítica, cheguem mais perto da verdade. Desse modo, a meta é o
aumento do conteúdo de verdade das nossas teorias (o que, como já demonstrei4,
só pode ser conseguido pelo aumento do seu conteúdo).
Não posso concluir sem assinalar que, no meu
entender, é surpreendente e decepcionante a idéia de recorrer à sociologia ou à
psicologia (ou ainda, como Pearce Williams recomenda, à história da ciência) a
fim de informar-se a respeito das metas da ciência e do seu progresso possível.
De fato, cotejadas com a física, a sociologia
e a psicologia estão cheias de modas e dogmas não-controlados. A sugestão de
que podemos encontrar aqui algo parecido com uma "descrição pura,
objetiva" está claramente equivocada. Além disso, como pode o retrocesso a
tais ciências, ditas espúrias,
ajudar-nos a resolver essa dificuldade? Não será sociológica (nem psicológica,
ou histórica) a ciência a que vocês desejam recorrer a fim de decidir quanto
monta a pergunta "Que é ciência?" ou "Que é, de fato, normal em
ciência?" Pois vocês, evidentemente, não querem recorrer à orla lunática
sociológica (ou psicológica ou histórica)? E a quem desejam consultar: ao
sociólogo (ou psicólogo, ou historiador) "normal" ou ao
"extraordinário"?
Por isso considero tão surpreendente a idéia
de recorrer à sociologia ou à psicologia. E considero-a tão decepcionante porque
ela mostra que foi baldado tudo o que eu disse até agora contra as tendências e
processos sociologistas e psicologistas, especialmente na história.
Não, esta não é a maneira, como a simples
lógica pode mostrar; e assim a resposta à pergunta de Kuhn "Lógica da Descoberta ou Psicologia da
Pesquisa?" é a seguinte: enquanto que a Lógica da Descoberta tem muito
pouca coisa para aprender com a Psicologia da Pesquisa, esta tem muito que
aprender com aquela.
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