Para
compreender como o sofrimento aparece, pratique observar a sua mente. Comece
simplesmente deixando-a relaxar. Sem pensar no passado nem no futuro, sem
sentir esperança nem medo em relação a isto ou aquilo, deixe que ela repouse
confortavelmente, aberta e natural. Nesse espaço da mente não há problemas, não
há sofrimento. Então, alguma coisa prende sua atenção – uma imagem, um som, um
cheiro. Sua mente se subdivide em interno e externo, “eu” e “outro”, sujeito e
objeto. Com a simples percepção do objeto, não há ainda nenhum problema. Porém,
quando você se foca nele, nota que é grande ou pequeno, branco ou preto, quadrado
ou redondo. Então, você faz um julgamento – por exemplo, se o objeto é bonito
ou feio. Tendo feito esse julgamento, você reage a ele: decide que gosta ou não
gosta do objeto.
É aí que o problema começa, pois “Eu gosto disto” conduz a “Eu quero
isto”. Igualmente, “Eu não gosto disto” conduz a “Eu não quero isto”. Se
gostamos de alguma coisa, se a queremos e não podemos tê-la, nós sofremos. Se a
queremos, a obtemos e depois a perdemos, nós sofremos. Se não a queremos, mas
não conseguimos mantê-la afastada, novamente sofremos. Nosso sofrimento parece
ocorrer por causa do objeto do nosso desejo ou aversão, mas realmente não é
assim – ele ocorre porque a mente se biparte na dualidade sujeito-objeto e fica
envolvida com querer ou não querer alguma coisa.
Com freqüência, pensamos que o único meio de criar felicidade é tentando
controlar as circunstâncias externas da nossa vida, tentando consertar o que
nos parece errado ou nos livrar de tudo o que nos incomoda. Mas o verdadeiro
problema encontra-se em nossa reação a estas circunstâncias. O que temos que
mudar é a mente e a maneira como ela vivencia a realidade.
Nossas emoções nos empurram de um extremo a outro: da excitação para a depressão, de experiências boas para ruins, da felicidade para a tristeza – um constante ir e vir.
O emocionalismo é um subproduto da esperança e do medo, do apego e da
aversão. Temos esperança porque estamos apegados a alguma coisa que queremos.
Temos medo porque temos aversão a alguma coisa que não queremos. Precisamos
interromper as oscilações extremadas do pêndulo emocional para podermos
encontrar um eixo de equilíbrio.
Quando começamos pela primeira vez nosso trabalho com as emoções, aplicamos o princípio de que o ferro corta o ferro, o diamante corta o diamante. Usamos o pensamento para transformar o pensamento. Um pensamento raivoso pode ter como antídoto um outro que seja compassivo ao passo que o desejo pode ter seu antídoto na contemplação da impermanência.
No caso do apego, comece examinando o que é o objeto ao qual você está
apegado. Por exemplo, pode ser que, depois de muito esforço, você consiga se
tornar famoso, pensando que isso o fará feliz. Então, sua fama provoca inveja
em alguém que tenta matá-lo. Aquilo que você trabalhou tanto para criar passa a
ser a causa do seu próprio sofrimento. Ou pode ser que você trabalhe com afinco
para se tornar rico, pensando que isso irá trazer-lhe felicidade, para então
ver todo o seu dinheiro se perder. A perda da riqueza em si não é a causa do
sofrimento, mas, sim, o apego a querer possuí-la.
Podemos reduzir o apego contemplando a impermanência. É certo que o
objeto ao qual estamos apegados, seja qual for, irá mudar ou se perder. Uma
pessoa talvez morra ou vá embora, um amigo pode se tornar inimigo, um ladrão
pode roubar seu dinheiro. Mesmo o nosso corpo, ao qual estamos apegados em grau
máximo, irá embora um dia. Saber disso não só ajuda a diminuir nosso apego,
como também nos proporciona maior apreciação das coisas que temos, enquanto as
temos. Por exemplo, não há nada de errado com o dinheiro em si, mas, se nos
apegarmos a ele, sofremos quando o perdemos. Em vez disso, podemos apreciá-lo
enquanto durar, desfrutar dele e ter prazer em compartilhá-lo com os outros,
sabendo, ao mesmo tempo, que ele é impermanente. Então, quando o perdermos, o
pêndulo emocional não fará um movimento tão largo em direção à tristeza.
Imagine duas pessoas que compram o mesmo tipo de relógio, no mesmo dia,
na mesma loja. A primeira pessoa pensa, “Este relógio é muito bonito. Vai me
ser útil, mas pode ser que não dure muito tempo”.
A segunda pessoa pensa, “Este é o melhor relógio que já tive. Aconteça o
que acontecer, não posso perdê-lo nem deixar que se quebre”. Se ambas pessoas
perderem o seu relógio, aquela que está apegada ficará muito mais contrariada
que a outra.
Se somos enganados pela vida e depositamos grande valor em uma coisa ou
outra, podemos nos pegar lutando por aquilo que queremos, opondo-nos a tudo e a
todos. Podemos pensar que aquilo por que lutamos é duradouro, verdadeiro e
real, mas não é. É impermanente, não é verdadeiro, não é duradouro e, em última
análise, sequer é real.
Nossa vida pode ser comparada a uma tarde num shopping center. Andamos
pelas lojas, conduzidos por nossos desejos, pegando coisas das prateleiras e as
jogando em nossas cestas. Passeamos de um lado para outro, olhando tudo,
querendo e desejando. Vemos uma ou duas pessoas, talvez sorrimos, e seguimos
adiante, sem nunca mais vê-las.
Impelidos pelo desejo, deixamos de apreciar e valorizar aquilo que já
temos. Precisamos nos dar conta de que o tempo que temos com aqueles que nos
são caros – nossos amigos, nossos parentes, nossos colegas de trabalho -, é
muito curto. Mesmo se vivêssemos até cento e cinqüenta anos, isto seria muito
pouco tempo para desfrutar da nossa oportunidade humana e fazermos uso dela.
Aqueles que são jovens pensam que sua vida será longa e os velhos pensam
que a vida terminará logo. Mas não podemos pressupor essas coisas. Nossa vida
vem com uma data de expiração embutida. Há muitas pessoas fortes e saudáveis
que morrem jovens, enquanto muitos que são velhos, doentes e debilitados
continuam vivendo dia após dia. Sem saber quando iremos morrer, precisamos
cultivar apreciação e aceitação das coisas que temos, enquanto as temos, em vez
de ficarmos procurando defeitos em nossas experiências e buscarmos,
incessantemente, preencher nossos desejos.
Se começamos a nos preocupar se o nosso nariz é grande ou pequeno
demais, deveríamos pensar, “E se eu não tivesse cabeça – isso sim seria um
problema!” Enquanto tivermos vida, deveríamos nos regozijar. Se nem tudo sai
exatamente como gostaríamos, podemos aceitar isso. Se contemplarmos a
impermanência em profundidade, paciência e compaixão irão aparecer. Iremos nos
apegar menos à verdade aparente das nossas experiências, e nossa mente se
tornará mais flexível. Ao nos darmos conta de que um dia este corpo vai ser
enterrado ou cremado, vamos nos regozijar com cada momento que tivermos, em vez
de fazermos infelizes a nós mesmos ou aos outros.
Agora vivemos contaminados pela infecção do “eu-meu”, uma condição
causada pela ignorância. Nossa atitude auto-centrada e nossos pensamentos de
auto-importância tornaram-se hábitos muito fortes. A fim de mudá-los, precisamos
alterar nosso foco.
Em vez de ficarmos preocupados com “eu” o tempo todo, devemos
redirecionar a atenção para “você” ou “ele” ou “os outros”. Com a redução da
auto-importância, diminui também o apego que resulta dela. Quando pomos o foco
da nossa atenção fora de nós mesmos, isso nos leva, ao final, a compreender a
igualdade que há entre nós e todos os demais seres. Todos querem ter
felicidade, ninguém quer sofrer. O apego à nossa própria felicidade amplia-se
para se tornar apego à felicidade de todos.
Até agora nossos desejos tenderam a ser muito superficiais, egoístas e
imediatistas. Se tivermos que querer algo, então que seja nada menos do que a
completa iluminação de todos os seres. Eis aí algo digno de ser desejado.
Recordarmo-nos continuamente do que verdadeiramente vale a pena querer é um
importante elemento da prática espiritual.
Desejo e apego não mudam da noite para o dia. Porém, o desejo se torna
menos comum à medida que redirecionamos nossos anseios mundanos para a
aspiração de fazer tudo o que está a nosso alcance para ajudar todos os seres a
encontrar felicidade permanente. Não temos que abandonar os objetos habituais
dos nossos desejos – relacionamentos, riqueza, fama -, mas, na medida em que
contemplamos sua impermanência, ficamos menos apegados a eles. Se temos a
atitude de nos regozijarmos com nossa sorte quando eles aparecem, e ao mesmo
tempo, reconhecemos que não irão durar, começamos a desenvolver qualidades
espirituais.
Com o tempo, na proporção em que nossa prática de meditação amadurece,
podemos tentar uma abordagem diferente da contemplação, diferente de usar o
pensamento para transformar o pensamento: revelar a natureza mais profunda ou o
princípio de sabedoria das emoções no ato delas surgirem.
Se você estiver no meio de um ataque de desejo – alguma coisa prendeu
sua mente e você precisa tê-la -, não conseguirá se livrar do desejo tentando
reprimi-lo. Em vez disso, você pode olhar através do desejo, começando a
examinar o que ele é. Quando o desejo aparece na mente, pergunte-se, “De onde
ele vem? Onde ele permanece? Será que ele pode ser descrito? Será que ele tem
cor, forma ou contorno? Quando desaparece, para onde ele vai?”.
Essa situação é interessante. Você pode dizer que o desejo existe, mas
se buscar pela experiência, não consegue pôr a mão nela. Por outro lado, se
disser que ele não existe, estará negando o fato óbvio de que você está
sentindo desejo. Você não pode dizer que valem “ambas” as coisas ou “nenhuma”
delas, que ele tanto existe quanto não existe, ou que ele nem existe nem não
existe. Este é o significado da verdadeira natureza do desejo, além dos
extremos da mente conceitual.
É nossa incapacidade de compreender a natureza essencial de uma emoção
quando ela surge, que nos mete em dificuldades. Uma vez que consigamos fazer
isso, a emoção tende a se dissolver. Então, não a estaremos reprimindo nem
incentivando. Estaremos simplesmente olhando com clareza para o que ocorre. Se
pusermos de lado, por um tempo, um copo com água turva, ela vai se assentar por
si só e ficar transparente. Em vez de julgarmos a experiência do desejo,
olhamos diretamente para sua natureza, o que se chama “liberá-lo em sua própria
base”.
Cada uma das emoções negativas ou venenos mentais possui uma pureza
intrínseca que não reconhecemos por estarmos tão acostumados à sua aparência de
emoção. A verdadeira natureza dos cinco venenos – ignorância, apego, aversão,
inveja e orgulho – são as cinco sabedorias. Da mesma forma que um veneno pode
ser ingerido como remédio para se obter cura, cada veneno da mente, se
trabalhado adequadamente, pode ser remetido à sua natureza de sabedoria e,
assim, incrementar nossa prática espiritual.
Se, em meio à intensidade do desejo, você simplesmente relaxar, sem
remover sua atenção, aquele espaço da mente chama-se sabedoria discriminativa.
Você não abandona o desejo – antes, revela sua natureza de sabedoria.
Texto extraído do Livro “Portões da Prática Budista”, por S.Em. Chagdud Tulku Rinpoche, páginas 19-30.
Texto extraído do Livro “Portões da Prática Budista”, por S.Em. Chagdud Tulku Rinpoche, páginas 19-30.
leia a continuação deste texto (perguntas e respostas) no seguinte link:
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