A cultura como hierarquia de sistemas semióticos
A linguagem é
comumente entendida como elemento fundamental distintivo do ser humano. O homo
sapiens teria surgido por ter assumido uma posição ereta, liberado as mãos e
braços. Contudo, isso seria de pouco valor sem a especial capacidade cognitiva para
tornar-se especialista na comunicação com os demais indivíduos, substituindo o
grito animalesco pela palavra.
Para Heidegger e Gadamer, a linguagem é entendida como o solo da cultura, ou seja, ela não é apenas capaz de influenciar sensivelmente nos valores intelectuais ou artísticos, mas antropologicamente, opera como acervo de tudo aquilo que a espécie humana veio acumulando ao longo de sua experiência histórica. A linguagem da ciência também se intercomunica com os outros domínios (motivo pelo qual a cultura é sempre interdisciplinar). Um dado texto, por mais específico que seja, não vive isolado de outros textos. A própria cultura que envolve um texto é de certa forma um “texto” (uma textura) com suas próprias características, que dá o suporte para que o texto específico possa circular.
Entropia e isolamento
É característica de
qualquer cultura ser a própria referência para si própria e buscar proteção
contra todos os elementos culturais alienígenas. Essa tendência ao isolamento e
à inércia visa fazer frente à entropia. Contudo, sem o novo, toda cultura acaba
estagnada e pode desintegrar-se. A convivência com elementos
estranhos opera como mecanismo de arejamento. As teses russas sobre a cultura
eslava (Lotman apud Prevignano) consideram que:
“a cultura terá a
aparência de uma certa esfera delimitada que se opõe aos fenômenos da história,
à experiência, ou à atividade humana fora dela. Assim, o conceito de cultura
está indissoluvelmente ligado à oposição de sua ‘não-cultura’”, que é a
contraparte externa. Sobre essa ideia de oposição, Iasbeck escreve no ensaio
Vícios e virtudes (veja nas dicas de leitura) que “a mais absoluta virtude se
equivale em densidade, valor e mérito ao mais execrável dos vícios”.
De acordo com as teses russas, cultura e não-cultura
aparecem como esferas mutuamente condicionadas, complementares e
interdependentes:
“O mecanismo da
cultura transforma a esfera externa em interna, ou seja, desorganização em
organização, ignorantes em iniciados, pecadores em santos, entropia em
informação. Pelo fato de a cultura não viver somente da oposição das esferas
internas e externas, mas também de se movimentar de uma esfera à outra, ela não
somente luta contra o ‘caos’ externo, mas dele também necessita; ela não
somente o destrói, como continuamente o cria”.
Assim, verificamos que cada cultura tem seu tipo
correspondente de caos (não-cultura). A tendência de ampliar seus limites a leva
a adentrar os espaços extraculturais. Porém, a expansão da esfera da
organização leva, da mesma forma, à expansão da esfera da não-organização.
Há a ideia de que “no centro situa-se um certo ‘nós’
normal, ao que se opõe os outros povos com outro conjunto paradigmático de
anomalias. Enfatize-se que do ponto de vista ‘interno‘ a cultura aparece como o
membro positivo da já mencionada oposição, ao passo que do ponto de vista
‘externo’ toda a oposição aparece como um fenômeno cultural”.
A cultura não representa um mecanismo imóvel e
equilibrado, mas um sistema dicotômico de agressão da ordem contra a desordem
e, no sentido contrário, como a invasão da desordem na esfera da organização.
Para simplificar, basta pensar na religião e seus dogmas, que tem no ambiente
externo um tipo de ameaça à sua organização e, ao mesmo tempo, um campo em
potencial para ser organizado (recriado) de acordo com suas regras.
“Em momentos
diferentes do desenvolvimento histórico pode prevalecer uma ou outra tendência.
A incorporação na esfera cultural de textos que vieram de fora prova ser,
algumas vezes, um poderoso fator estimulante para o desenvolvimento cultural”. (Lotman
apud Prevignano).
A cultura é, portanto, construída como
uma hierarquia de sistemas semióticos, envolta de diferentes
camadas da esfera extracultural. São a estrutura interna, a composição e
correlação de subsistemas semióticos que determinam, fundamentalmente, o tipo
de cultura. Assim, o texto escolhido pelo emissor precisa necessariamente estar
sintonizado com o “texto da cultura” supracitado para não soar artificial.
Em termos
gerais, portanto, a cultura é o complexo e inconcluso mundo dos objetos do
conhecimento, sendo que a linguagem constitui
sua expressão comunicativa. Nomear as coisas significa criá-las e dar-lhes
significado, razão pela qual Gadamer entende que toda criação, tanto nas
ciências como nas artes, no fundo, constitui um ato de interpretação ou de hermenêutica.
A
cultura não fica restrita ao valor das palavras isoladas, mas procura captar o
sentido global que elas têm em dado campo da pesquisa ou atividade.
Silvio
Motta Maximino
Texto
elaborado com base nos artigos de Miguel Reale e Luiz Carlos Assis Iasbeck
(Ensaio – Vícios e virtudes)
Principais fontes pesquisadas:
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