sexta-feira, 27 de setembro de 2013

O Signo no Mundo do Dicionário e da Enciclopédia



O Signo no Mundo do Dicionário e da Enciclopédia
Introdução

Obs.: O trabalho abaixo foi apresentado no dia 19 de abril 1996, em Florianópolis, SC, na sede do "Traço Freudiano" (um grupo de psicólogos, terapeutas e psicanalistas), e será publicado na próxima edição da revista anual do grupo.

Publicações Markus J. Weininger

http://www.ced.ufsc.br/~uriel/signo.htm


Este trabalho discute uma tese básica, formulada por Umberto Eco na sua Semiótica e Filosofia da Linguagem. Eco, em continuidade de sua obra semiótica, quer descobrir se o valor do signo linguístico, o seu significado ou conteúdo, é constituído no campo lexical do dicionário, através de equivalências e definições, ou no campo textual de uma grande enciclopédia de todos os textos jamais formulados, através de instruções para a interpretação, tiradas da comparação com todas as ocorrências do signo nessa enciclopédia. A questão é, portanto, se o significado nasce da langue ou da parole, do sistema linguístico ideal ou do seu uso prático na linguagem concreta. Eco procura, assim, a resposta à pergunta de Nietzsche: „Quem fala?", se são as próprias palavras que falam, ou quem faz uso delas.

A resposta de Eco é bem clara em favor da enciclopédia. Em alguns trechos a análise dele parece mais uma cruzada, um verdadeiro exorcismo contra o “dicionário”. A postura deste trabalho é um pouco mais diferenciada: Por assim dizer, concorda com Eco em gênero e número, mas não no grau de suas afirmações. A análise mais detalhada de suas exposições mostra que o maniqueísmo entre os dois pólos elaborados por Eco serve-lhe mais com fins ilustrativos, e que, também no modelo de Eco, dicionário e enciclopédia são solidários.
Para seguir os caminhos do signo entre dicionário e enciclopédia, é preciso rever primeiro algumas teorias fundamentais sobre o próprio signo. Porque, necessariamente, a fundamentação do significado já está - in nucleo - na concepção teórica do signo.
Por último, segue uma breve análise das consequências dos resultados deste trabalho para o ensino de idiomas, ilustrada com alguns exemplos da experiência prática do ensino de alemão como língua estrangeira.

 

1. O Triângulo Semiótico


O baseamento teórico da semântica, a teoria dos signos, a semiótica, de uma forma ou outra, recorrem tradicionalmente a um modelo conhecido como o triângulo semiótico(1) para explicar os processos perceptivos, cognitivos e pragmáticos ligados ao uso de signos (linguísticos ou não). Os três pólos do triângulo semiótico são o signo, o significado e o objeto real ao qual ambos se referem. Existem muitas variações de terminologia que diversificam mais um ou outro aspecto do processo.




Isidoro Blikstein mostra que a relação triádica domina a discussão do tema desde a antiguidade grega: (2)
estóicos
semainon (significante)
semaimenon (significado)
pragma (objetos)
Santo Agostinho
verbum
dicibile
res
escolásticos
vox
conceptus
res
lógicos de Port Royal
nom
idée
chose
G. Frege
Zeichen
Sinn
Bedeutung
F. de Saussure(3)
signifiant
signifié
objet
K. Heger(4)
monema
semema
coisa
Ch. Morris(5)
veículo do signo
interpretante
designatum
R. Jakobson(6)
signo
Remetido
coisa
L. Hjelmslev(7)
expressão
conteúdo
continuum do mundo
C. Ogden/I. Richards
signo/símbolo
referência/pensamento
referente/coisa
Ch. Peirce
signo/representâmen
interpretante
objeto dinâmico/imediato
S. Ullmann(8)
nome
sentido
coisa
U. Eco
experiência verbal
unidade cultural/interpretante
objeto real
I. Blikstein(9)
símbolo/significante
referência/significado
referente/coisa
Em termos gerais, há uma congruência dos conceitos dentro de cada coluna. A primeira coluna representa o lado social, a segunda o lado individual do processo semiótico e a terceira o mundo dos objetos não-linguísticos. Apesar disso, encontram-se certas diferenças e paralelismos interessantes. Por exemplo, a mudança que ocorreu entre o modelo da antiguidade grega (incluindo os aqui não citados Platão e Aristóteles) e a sua adaptação na idade média pelos escolásticos: enquanto em Platão a ideia ficaria na terceira coluna, sendo que os objetos reais só representam ou manifestam a ideia, no começo da idade moderna a ideia se encontra na segunda coluna, como pensamento etc. Em outra palavras, o sujeito que era submisso ao mundo exterior das ideias universais, passa a dominá-lo através da usurpação do ideário, antes disso reservado a entidades transcendentais. (10)
Uma outra observação é que Frege coloca „Bedeutung" ( = significação/referência) na terceira coluna, no mundo não-linguístico, assim reaproximando-se de Platão, só que do extremo oposto: o mundo externo é repleto de sentido porque ele é criação do sujeito autônomo. Um autor que foge um pouco da linha geral é Hjelmslev, com seu continuum do mundo que inclui não somente os objetos, mas também signos e referências no mesmo nível.





A forma (sonora etc.) da expressão cria um sistema de tipos. Sua substância são as ocorrências. A forma do conteúdo (expressões) estrutura sua substância (o continuum). Ambos, expressões e conteúdo, fazem parte do grande continuum do qual eles tratam. O gráfico, de Eco(11), ilustra como os problemas do significado perceptivo e fenomenológico, do conteúdo semântico e cognoscitivo (Husserl), do objeto imediato e do objeto dinâmico (Peirce), estão estreitamente ligados, embora não deixe bem claro o que Eco pretende explicar com sua ajuda.(12)
Roman Jakobson renomea a referência para Remetido já que, para ele, o signo representa „une relation de renvoi", aliás, apenas uma sutil variação de Sto. Agostinho: aliquid stat pro aliquo, com ênfase para a visão teleológica do mundo, partindo do sujeito como ponto de partida e tomando o mundo real como alvo. No caso de Umberto Eco, vale salientar que ele, apesar de sua abordagem enciclopédica, não faz menção de Morris que emprega o mesmo termo „interpretante" para „significado" 50 anos antes do italiano.(13) Blikstein constata que o modelo em forma de trapézio de Heger consegue elaborar melhor e com mais detalhes o lado esquerdo do triângulo semiótico - a ligação entre signo e significado, mas ainda deixa de explicar a relação entre „conceito" e „coisa" como entre „coisa" e „substância fônica/signo".

Blikstein visa compensar essa deficiência do triângulo com o seu modelo, que inclui, na verdade, uma verdadeira teoria da percepção e cognição.





O gráfico do modelo de Blikstein prova a sua preocupação com o lado direito, perceptivo-cognitivo, do triângulo semiótico. Como ele não se interessa mais pelo lado esquerdo - já diferenciado por Heger, Blikstein simplesmente junta a primeira vista „signo" e „significado" num bloco maior „língua". A língua influencia a práxis social que, por sua vez, determina o aparelho de percepção e cognição, que estrutura a realidade amorfa e é alimentado e alterado por ela ao mesmo tempo. Por último, o aparelho cognitivo reformula, através do referente, o sistema linguístico.(18)
Esta abordagem traz várias vantagens: 1º) supera o impasse do triângulo semiótico fechado(19), que não consegue definir „signo", (20) ou não explica seu acesso ao mundo real; 2º) resolve o problema do significado, transferindo-o do triângulo e do sistema linguístico para o aparelho pré-cognitivo, formado por traços(14) , traços ideológicos(15) , corredores isotópicos(16) e estereótipos, erguidos pela práxis e baseados na experiência existencial da condição humana. Interessante é que, destarte os estereótipos, ao invés de serem considerados distorções abomináveis, ganham um valor básico para a percepção humana. Blikstein(17) não o diz explicitamente mas, necessariamente, os estereótipos não servem apenas de „óculos" socialmente adquiridos para ver o mundo mais nitidamente, mas também são como viseiras que dificultam que se enxergue algo fora da percepção convencionalizada.
Coerente com sua abordagem de transpor parte central do processo semiótico para fora do triângulo, Blikstein assume a existência de cognições e significados pré- ou não-linguísticos, ainda sem ligação com um conceito verbal. Evidentemente existem impressões cognitivas (ainda) não codificadas, como por exemplo um cheiro ou som, um trecho de música, podem evocar espontaneamente lembranças e emoções vivas e manifestas e que custam a serem verbalizados. Outro exemplo são casos quando se tem uma nítida ideia de algo, mas a palavra não vem, está „na ponta da língua". Este tipo de „significado" não-verbal seria parecido com a cognição animal, ou com o „olhar puro", ainda não convencionalizado pela práxis, no exemplo de Blikstein representado por Kaspar Hauser.
Na tradição de Wilhelm v. Humboldt, Sapir/Whorf, A.. Martinet, Roland Barthes e muitos outros, Blikstein acredita que o homem e a língua se modelam mutuamente, num processo interdependente, dentro de um sistema cibernético, onde não existem explicações monocausais ou rígidas, e sim uma rede de influências múltiplas que só em conjunto formam uma plataforma mais ou menos estável, porém na base de elementos flutuantes.
Mas só esta flexibilidade e capacidade de adaptação contínua garantem a possibilidade e funcionalidade do processo (21)semiótico. Em Bliksteins concepção só falta um ponto de vista: a possibilidade do homem transformar a realidade - por ele concebida como dada e invariável (apesar de amorfa) - através do uso da língua.(22)

Apesar da diferença enorme entre os dois modelos na disposição gráfica, Hjelmslev expõe basicamente a mesma ideia de Blikstein. Este último enfoca mais a função da práxis no aparelho perceptivo-cognitivo. O continuum global hjelmsleviano exprime melhor os aspectos da reciprocidade e abrangência das várias relações entre o mundo real, o homem e a língua. Incompreensivelmente, nem Eco, o enciclopedista, nem Blikstein, o ecleticista, se referem a um último modelo semiótico que abrange com facilidade e simplicidade estes três pólos: o triângulo invertido de Karl Buhler.(23)
O triângulo é invertido na maneira que ele põe a peça chave do processo semiótico, o signo, literalmente de fora para dentro, para o seu lugar adequado, no centro da análise semiótica. Esta forma abrange todas as relações imagináveis no processo comunicativo: entre o signo e os três pólos em volta, como também entre emissor, destinatário e mundo real - sempre através de signos. Claro que o esquema de Buhler ainda não diz tudo sobre a natureza das relações entre os vários elementos do seu modelo, pois seu ponto de partida não é só a análise linguística, mas também o enfoque sociológico da comunicação humana. Assim completam- se os aspectos até agora expostos pela posição funcional do signo no processo semiótico.
Outro elo em comum entre os modelos de Hjelmslev, Blikstein e Buhler é que eles acabam decididamente com a discussão infrutífera sobre a questão se há, e qual seria a influência do contexto sobre o significado.(24) Hjelmslev, pela construção recíproca de signo (expressão), significado (conteúdo) e continuum do mundo, Blikstein pela ênfase à práxis na criação não somente do signo, mas sim de toda a realidade perceptiva, e Buhler porque o signo não acontece sem uma das partes constitutivas em volta dele.

2. Dicionário e enciclopédia



Enquanto a primeira parte deste trabalho focaliza a questão da relação entre significado e o mundo real, o lado direito do triângulo semiótico, agora trata-se dos vínculos entre o significado e o signo, o lado esquerdo do triângulo. O lado inferior (sic!) do triângulo, ou seja, a relação entre signo e mundo real não tem despertado muito interesse entre teóricos da semiótica e filósofos. Há um consenso que o signo é „arbitrário",(25) com poucas exceções como signos onomatopéicos e icônicos, signos semi-motivados, por exemplo, derivações e composições. (26)Não por acaso, o vértice do triângulo é formado pelo significado, que hoje em dia é situado no domínio do sujeito do processo linguístico.(27)
no primeiro capítulo de seu livro, Eco afirma que o signo não é semelhança/identidade mas sim „instrução para a interpretação".(28) Ele define como „interpretância": (29)
„Condição de um signo não é portanto só a da substituição (aliquid stat pro aliquo), mas a de que haja uma possível interpretação. (...) O conteúdo interpretado permite-me ir além do signo originário, permite-me entrever a necessidade da futura ocorrência contextual de um outro signo. (...) O signo (...) é sempre o que me abre para algo mais. Não há interpretante que, ao conformar o signo que interpreta, não modifique, mesmo que só um pouco, seus limites. Interpretar um signo significa definir a porção de conteúdo veiculada em suas relações com as outras porções derivadas da segmentação global do conteúdo; e definir uma porção através do emprego de outras porções, veiculadas por outras expressões." (grifos do autor)
A partir deste ponto fica claro que Eco descarta o dicionário, ou seja, a definição intralinguística do significado, como base única da semântica. A interpretância significa o recurso enciclopédico de atribuir significado ao signo através da comparação com todos os contextos possíveis ou disponíveis, em outras palavras: com os registros da enciclopédia. Porém, antes disso ele prefere dar toda a volta pelo reino do abominável, ele quer vencer a batalha no terreno e com as armas do inimigo. A primeira intenção dele é rebater a ideia do signo linguístico como equivalência bicondicional - fundo do pensamento de dicionário - que, para ele, é coerente com uma noção esclerosada e ideológica de „sujeito".
„... o signo, como momento (sempre em crise) do processo de semiose, é o instrumento através do qual o próprio sujeito se constrói e se desconstrói constantemente. O sujeito entra numa crise benéfica porque participa da crise histórica (e constitutiva) do signo. O sujeito é aquilo que os constantes processos de resegmentação do conteúdo permitem que ele seja. Neste sentido (embora o processo de resegmentação tenha de ser realizado por alguém, e surja a suspeita de que seja uma coletividade de sujeitos), o sujeito é falado pelas linguagens (verbais ou não), não pela cadeia significante, mas pela dinâmica das funções sígnicas. Somos, como sujeitos, o que a forma do mundo pelos signos nos permite ser. Somos, talvez, em alguma parte, a pulsão profunda que produz a semiose. No entanto, reconhecemo-nos apenas como semiose em ato, sistemas de significação e processos de comunicação. Somente o mapa da semiose, como se define num determinado estágio do percurso histórico (com as rebarbas e os detritos da semiose anterior que arrasta consigo), nos diz quem somos e o que (ou como) pensamos. A ciência dos signos é a ciência de como se constitui historicamente o sujeito."(30)
Na mesma página ele cita Peirce com um trecho que realça mais ainda essa relação entre o homem e os signos. Aliás, o mesmo citado poderia muito bem estar na conclusão de Blikstein.
„Então, de fato, os homens e as palavras educam-se reciprocamente: cada acréscimo de informação num homem comporta - e é comportado por - um correspondente acréscimo de informação de uma palavra... A palavra ou signo que o homem usa é o próprio homem, pois, como o fato de que cada pensamento é um signo - considerado junto com o fato de que a vida é um fluxo de pensamentos - prova que o homem é um signo."
O que falta em relação a Blikstein, é indicar por meio de que instrumentos a „educação mútua" entre homens e signos ocorre. Por isso, este último põe a práxis em posição chave no seu modelo. Ela é o veículo para implementar qualquer modificação duradoura de signos e ao mesmo tempo ela impõe ao homem o conteúdo e os caminhos que os signos oferecem.
Na teoria tradicional, a maneira como o homem forma e altera signos é a instituição e modificação por uma definição: tal signo significa tal coisa, em outras palavras: via um tipo de dicionário. Este dicionário pode ser tanto descritivo quanto prescritivo(31), ele vai sempre trazer relações entre signos para definir, descrever ou estabelecer o valor de outros. Porém, nessa obviedade começam os problemas sérios para a teoria semântica: Definir o significado por sinonímia é circular, porque deveria definir primeiro o significado do sinônimo e assim por diante. Outra deficiência de uma semântica na base de sinonímia fica clara na tradução para outros idiomas, importante ainda para a terceira parte deste trabalho. Mesmo coisas universais como /sol/, facilmente traduzido para /Sonne/ em alemão, em princípio numa „sinonímia" perfeita bicondicional: se é /sol/ em português, então /Sonne/ em alemão e vice versa, sem a mínima margem de erro. Acontece que a equivalência nesse caso se limita ao referente idêntico. O significado é longe de ser equivalente. /Sonne/ significa «calorosa fonte de vida que abriga e fortalece os seres vivos» enquanto em português(32) /sol/ significa «ameaça mortal e constante a fauna e flora». Parte dessa diferença ainda poderia ser atribuída à conotação, tomando como denotação apenas «corpo celeste que providencia luz na Terra». O fato de /sol/ ser masculino e /Sonne/ feminino depõe nitidamente contra esta hipótese.
Caso mais claro ainda é o de /casa/ e /Haus/. Apesar de ser, novamente, uma „sinonímia" perfeita à primeira vista, em português significa outra coisa que em alemão, onde se restringe a «edificação independente designada à moradia». Em português abrange além disso também «foco de moradia familiar = lar». Assim diz-se „Passa lá na minha casa!" para fazer um convite indefinido, mesmo quando se mora num apartamento, ou até num quarto apertado de estudante, dividido com outras pessoas. Traduzir com /Haus/ nesse caso é absolutamente impossível. Eco suspeita, nesse ponto, de que processos semióticos e processos de categorização e portanto processos perceptivos sejam solidários ou paralelos(33). As definições do dicionário seriam então „o resultado de uma organização categorial do mundo"(34). Evidente no caso de /sol/ - /Sonne/, onde se vê claramente a influência da experiência existencial diferente. /Casa/ em português parece mais um caso de polisemia.
Para resolver o problema de estabelecer o valor de cada signo o mais inequívoco possível, o dicionário deve fornecer explicações „duras" e estáveis. Para reduzir o problema da circularidade sem fim, ele deve limitar os elementos através dos quais ele semantisa os demais signos. A solução milenar para estas exigências é o sistema de árvores lógicas constituídas de hiperônimos e hipônimos, ordenando e categorizando não só os signos como também o mundo real perceptível(35). A árvore forma um conjunto de postulados de significado, estruturado hierarquicamente, portanto limitado.(36)
Uma outra tentativa de melhorar a árvore semântica é a de Hjelmslev, que tentou, segundo o seu modelo acima presentado, formar grupos limitados de elementos formais de conteúdo.(37)

Ovino
Suíno
Bovino
Equino
Abelha
Humano
Macho
Carneiro
Porco
Touro
Garanhão
Zangão
Homem
Fêmea
Ovelha
Porca
Vaca
Égua
Abelha
Mulher
Essa grade explica os fenômenos de hiperonímia e sinonímia, redundância, verdade analítica, consistência e implicitação pela simples posição dos elementos nas linhas e colunas, mas ela não explica o valor semântico dos elementos por si. Pior, ao contrário dos elementos, que podem ser considerado „primitivos", as classes semânticas não têm o mesmo valor e são, sim, simples abstrações ou derivações dos primitivos, enquanto deveriam ser o contrário, para fundamentar um sistema semântico rígido. Além disso parece difícil encontrar outros grupos parecidos e de maior abrangência. Mais diversificados, e consistentes por serem fechados, são dicionários parciais como, por exemplo, o sistema de classificação zoológica, que, como sistema taxonômico, elimina ambiguidade. Eco diz que,
„... para delinear um dicionário forte devemos sempre conceber um universo bastante pobre e reduzido, digamos um universo de câmara. O inconveniente é que geralmente os construtores de dicionários ideais não conseguem mais sair de seu universo de câmara...".(38)
Primitivos são palavras-objeto, de ostensão imediata, seria um sistema semântico inato, um conjunto de „átomos lógicos". Porém, „a ideia de uma lista de primitivos nasce para explicar uma competência linguística independente do conhecimento do mundo, mas nesse segundo modo, a competência linguística está radicalmente fundada num precedente conhecimento do mundo."(39) Primitivos seriam ideias inatas universais de caráter platônico. Problemático fica o seguinte fato: ou há muito poucas ideias universais (como o uno e o múltiplo, o bem e o mal etc.) ou muitas e, neste caso, o grupo não é mais fechado e assim não serve mais para fundamentar a semântica. Uma dificuldade a mais da árvore na base de primitivos é que o falante de uma língua natural não consegue distinguir primitivos de construtos teóricos, usa, segundo Eco(40), /carne/ no mesmo nível semântico que /laranja/, e, „... os únicos seres anormais, em toda essa questão, são os defensores de uma semântica à maneira de dicionário."(41)
O dicionário não só é problemático pela inconsistência lógica de ser circular. Lyons e Leech estudaram a lógica opositiva e explicam outro motivo do fracasso das árvores: A estrutura lógica de oposições é bem mais diversificada do que se supõe na definição de uma hierarquia lógica, baseada em oposições binárias. Eco cita vários exemplos:(42)
  1. bem x mal: antonímia seca, um exclui o outro e ponto.
  2. marido x mulher: complementaridade, "fulano" é marido da pessoa que, por sua vez, é sua mulher porque ele é seu marido, etc.
  3. vender x comprar: reciprocidade, se x vende y a z, então z compra y de x
  4. maior x menor: oposição relativa com escala proporcional, não oposição binária
  5. 2ª-, 3ª-, 4ª- feira: continuum graduado, não oposição binária
  6. mm, cm, m, km: continuum graduado com estrutura hierárquica
  7. Sul x Norte: antipodamente, Norte x Leste ortogonalmente opostos num sistema de diagramações espaciais
  8. chegar x partir: reciprocidade, mas com componente de direção local
  9. poder x dever: graduação relativa que inclui amplas referências modais e pode até chegar a relações de proporcionalidade indireta.

Só o contexto determina em muitos casos o valor dos elementos opostos. /Homem/ é mais oposto a /mulher/ ou a /menino/? Aqui entra o „fuzzy-concept" (conceito vago): a águia é mais ave que a galinha, a cobra mais reptil que a lagartixa. „É exatamente a capacidade que temos de reorganizar contínua e contextualmente as unidades de conteúdo, que fundamenta a possibilidade do retículo enciclopédico."(43) Eco quer tirar as consequências destas observações e erguer como alternativa um sistema de classificação cruzada, abandonando a hierarquia das árvores. „Por isso, ou as marcas não devem ser interpretadas e, assim não se define o significado; ou devem ser interpretadas e perde-se a maneira mais segura de limitar o seu número."(44) O resultado disso é anunciado drasticamente por Eco:
„Mas podemos dizer sem simulação que a árvore dos gêneros e das espécies, de qualquer modo que seja construída, explode numa poeira de diferenças, num turbilhão infinito de acidentes, numa rede não-hierarquizável de qualia. O dicionário (...) dissolve-se necessariamente, por força interna, numa galáxia potencialmente desordenada e ilimitada de elementos de conhecimento do mundo. Em consequência torna-se uma enciclopédia e o faz porque de fato era uma enciclopédia que se ignorava ou um artifício idealizado para mascarar a inevitabilidade da enciclopédia."(45)
Conclusão de Eco, novamente: „Se as semânticas como dicionário são inconsistentes, resta apenas tentar as semânticas como enciclopédia."(46)
Eco também critica o dicionário pela sua „perfeita inutilidade do ponto de vista explicativo dos processos comunicativos."(47)
„Comunica-se por enunciados e, geralmente, por textos. Entende se por 'texto' seja uma cadeia de enunciados ligados por vínculos de coerência, seja grupos de enunciados emitidos ao mesmo tempo com base em mais de um sistema semiótico. (...) Característica dos textos é o exprimir não só significados diretos (função do significado das expressões simples) mas também significados indiretos."(48)
Para resolver o problema, Eco recorre a Grice que constata que já o significado lexical não é equivalência, mas sim „a associação de uma expressão com uma série de instruções para o uso em contextos diferentes."(49) Desta forma até o significado „normal", sem ser „significado indireto", sempre depende de contextos e de assunções fundamentais que não são nem codificáveis nem semanticamente representáveis, mas sim „instruções pragmaticamente orientadas."(50) Nesta altura já aconteceu a integração de semântica e da pragmática, pois „... isso pressupõe que se entenda L não como um sucinto dicionário, mas como um complexo sistema de competências enciclopédicas."(51), porque a língua L, como enciclopédia, providencia um dicionário paralinguístico, incluindo „frames" e „scripts"(52) convencionalizados. Contudo „o significado contextual vai muito além dos significados lexicais, mas isso só é possível se a enciclopédia fornece a) significados lexicais em forma de instrução para a inserção contextual e b) roteiros."(53) Além dessas condições pragmáticas convencionalizadas(54) existem pressuposições pragma-semânticas como no caso de /conseguir/, que implica que haja intenção consciente e algo difícil de adquirir.(55)
A enciclopédia se impõe de todos os lados como a salvação da teoria e prática da semiose. Já Peirce tinha imaginado o interpretante como um tipo de „co-signo", do lado do destinatário, equivalente ao próprio signo, „ou talvez mais desenvolvido"(56). A consequência disso é uma semióse ilimitada, porque a cadeia de interpretantes é ilimitada ou pelo menos indefinida. Eu não posso saber o que o destinatário associa/evoca ou infere na hora de ouvir o signo. Signo e interpretante circunscrevem os significados/conteúdos „de maneira assintótica, sem nunca chegar a tocá-los diretamente, mas tornando-os de fato acessíveis mediante outras unidades culturais. Essa contínua circularidade é a condição normal dos sistemas de significação e é realizada nos processos de comunicação."(57)
O interpretante nesse caso é dado objetivo: ele não depende de representação mental do sujeito (inatingível) e é coletivamente verificável, sua interpretação é registrada intertextualmente (enciclopédia!). Todas as associações, evocações já ocorridas de /casa/ estão registradas intertextualmente na imensa biblioteca ideal, cujo modelo teórico é a enciclopédia que deve fornecer instruções para essas interpretações.
„Naturalmente, numa semântica de interpretantes, toda interpretação é por sua vez sujeita a interpretação. (...) Numa semântica de interpretantes não há entidades metalinguísticas e universais semânticas. Cada expressão pode ser sujeito de uma interpretação e instrumento para interpretar uma outra expressão. (...) A enciclopédia é um postulado semiótico. (...) ela é o conjunto registrado de todas as interpretações, concebíveis objetivamente como a biblioteca das bibliotecas ..."(58)
... incluindo informações não-verbais, quadros, sons etc. Assim sendo, ela deve ficar um postulado, porque de fato não é descritível na sua totalidade. Ela não pode ter fim, está em eterna renovação, globalmente.
Com essa abrangência universal, o tamanho tende ao infinito, com a consequência necessária de que „a enciclopédia como sistema objetivo das suas interpretações é 'possuída' de maneira diferente por seus diferentes usuários."(59) O intérprete não é obrigado a conhecer toda a enciclopédia, „mas apenas a porção da enciclopédia necessária para a compreensão desse texto."(60) Segundo Eco, o conceito de código restrito e elaborado do livro famoso de Basil Bernstein(61) refere-se „às modalidades de posse cultural dos dados enciclopédicos. (...) enquanto, do ponto de vista de uma semiótica geral, se pode postular a enciclopédia como competência global, do ponto de vista sociosemiótico é interessante reconhecer os diversos níveis de posse da enciclopédia, ou as enciclopédias parciais (de grupo, de seita, de classe, étnicas e assim por diante)." Este passo é inevitável. Se a enciclopédia é a base da língua e se existem várias sub-línguas dentro de um idioma(62), então devem existir várias enciclopédias, como já registramos antes vários dicionários.
„Por consequência, a enciclopédia é uma hipótese reguladora com base na qual, na ocasião das interpretações de um texto (seja ele uma conversa na esquina ou a Bíblia), o destinatário decide construir uma porção da enciclopédia concreta que lhe permita reconhecer como característica do texto ou do emissor uma série de competências semânticas."(63)
Peirce postula que o significado de uma unidade semântica implica todos os enunciados em que pode ser inserida, e estes, todas as inferências com base nas regras registradas na enciclopédia. A semiótica textual estuda na base de que sinais do texto (ou conhecimentos anteriores) o intérprete decide que parte da enciclopédia se aplica nele. Sem esses sinais ou conhecimentos anteriores, a interpretação está mais para uso do texto do que para interpretação.
A enciclopédia não é em forma de árvore, „embora para caracterizar porções parciais dela se possa recorrer a estruturas arbóreas, contanto que entendidas precisamente como modos de descrição provisória" . O modelo mais adequado para a enciclopédia é o rizoma, onde não há hierarquia, pontos e posições, mas somente conexões. Pode ser composto de várias árvores, porém não estruturadas. „A ideia de uma enciclopédia como rizoma é consequência direta da inconsistência de uma árvore de Porfírio."(64) Assim construímos permanentemente diversas árvores seletivas de uma maneira improvisada, ad-hoc modificando-as ao progredir do processo semiótico. Certos aspectos são focalizados enquanto outros ficam, temporariamente, desativados(65). No modelo da semântica como enciclopédia, as propriedades semânticas não são definidos por primitivos, mas sim por interpretantes, ou seja outras expressões interpretáveis.
De novo, Eco apoia-se em Peirce e sua lógica dos relativos, que postula que „o significado de um termo deveria ser representado mediante referências a outros termos com que estará necessariamente contextualizado." Assim o modelo leva em conta as diferenças entre denotação e conotação. /Cão/ no contexto zoológico é «animal, mamífero, carnívoro, etc.», em outro vira «bicho desprezível». Hjelmslev acrescenta que uma semiótica conotativa tem como plano de expressão uma semiótica denotativa, ou seja, porções até então desconexas da enciclopédia fornecem propriedades atribuíveis à expressão em questão. Desta maneira, pode até haver conexões contraditórias em determinados contextos, sem pôr em questão o funcionamento do aparelho como todo, muito pelo contrário. O exemplo de Eco é /átomo/, que, dependendo do contexto, pode significar «partícula não separável» ou justamente o oposto. „Neste sentido, portanto, organizamos um dicionário toda vez que queremos circunscrever a área de consenso dentro do qual um discurso se move."(66)
Na opinião de Eco, instruções enciclopédicas podem levar um computador a traduzir, um dicionário nunca(67). Também o problema da representação dos termos sincategoremáticos (preposições, conjunções, advérbios etc.) no dicionário é resolvido pela enciclopédia.
Resta o problema de saber escolher da enciclopédia global, ou da parte (ainda considerável) à qual se tem acesso, a porção adequada para interpretar um determinado texto.
„Os contextos e as circunstâncias registrados, não sejam infinitos mas sejam os que estatisticamente, segundo uma hipótese de competência média ( ou em referência à competência requerida por um certo co-texto), sejam considerados parte da competência enciclopédica do emissor ou do destinatário."(68)
Além disso, Eco acredita que „a competência enciclopédica provê o destinatário de elementos suficientes para atualizar o significado lexical do termo com base em outras inferências co-textuais que a teoria semântica prevê sem poder registrá-las antecipadamente."(69) Assim, a enciclopédia passa a incluir fenômenos até então atribuídos à pragmática.
Como a enciclopédia ganha em complexidade, nasce mais uma dificuldade: ela perde em maneabilidade e representabilidade global. Por isso Eco reconsidera seu juízo final sobre o dicionário e concede que a impossibilidade de um dicionário finito não quer dizer que não se possa ou deva incluir porções da enciclopédia em forma de dicionário e que a enciclopédia não possa servir de dicionário às vezes. „Parece, assim, que a organização à maneira de dicionário é a maneira como podemos representar localmente a enciclopédia."(70) Para ilustrar como na realidade os dois conceitos, por ele descritos como antagônicos, se mesclam e apoiam, o autor cita um exemplo prático que reflete o eixo que os separa e liga. São as propriedades analíticas e sintéticas, conceptuais () e factuais (), atributivas e descritivas, necessárias e acidentais.





Subentende-se que o usuário do dicionário saiba que líquidos tendem a evaporar, têm que ser contidos, podem molhar outros objetos etc. Porém:
„Cada uma dessas propriedades compreendidas pelas marcas 'conceptuais' é de ponto de vista próprio uma propriedade factual, porque os líquidos não evaporam sempre do mesmo modo, molham de maneira diferente os diversos corpos (...) e assim por diante."(71)
As marcas conceptuais são então simples artifícios estenográficos para a economia do dicionário.
„Esta, e não outra, é a função de um hiperônimo num sistema lexical. (...) as marcas conceptuais são abreviaturas lexicais para conjuntos de propriedades factuais que não se julga oportuno pôr em discussão."(72)
Apesar disso, Eco considera que a própria distinção entre gêneros naturais e acidentes possa ser radicada na própria estrutura das línguas indo-européias (sujeitos e predicados, substantivos e verbos, substantivos e adjetivos, etc.)(73). Também a relação entre denotação e conotação reproduz a diferença entre dicionário e enciclopédia. A denotação de /cão/ como «animal, mamífero, carnívoro, quadrúpede» etc. não se discute, mas sim a conotação de ser «melhor amigo do homem» ou «bicho desprezível» que é culturalmente estabelecida e não tão duradoura. A função da poesia neste contexto é pôr em questão as marcas conceptuais e os 'gêneros naturais'(74). „Em conclusão, uma vez que se demostre que o dicionário não é uma condição estável dos universos semânticos, nada impede de (...) admiti-lo como artifício útil ..."(75), dentro de uma enciclopédia, bem entendido.
O contrário também faz muito sentido, como prova a abordagem de Ernst Leisi(76), que analisa a dificuldade encontrada na tradução de uma língua para outra(77), onde se trata da árdua tarefa de encontrar equivalências verdadeiras para os signos. Leisi estuda minuciosamente as condições para o uso de signos nas duas línguas em comparação. Um exemplo ilustrativo são condições encontradas no sujeito e no objeto para o uso de um determinado verbo. O alemão /schreiten/ (caminhar majestosamente) implica um sujeito que imponha respeito, nunca se usaria para um inseto(78). O inglês /put/ (pôr) tem uma série de equivalências em alemão, porque, ao contrário do alemão, em inglês não há restrições para o objeto. Assim /put/ pode ser /stellen/ para objetos sólidos de extensão predominantemente vertical, /legen/ para objetos sólidos de extensão predominantemente horizontal, /setzen/ para objetos sólidos compactos, estabelecendo um contato estável, /gießen/ para líquidos, /geben/ para não-sólidos (sal por exemplo), incluindo um componente direcional «para dentro de alguma coisa»(79) etc. Apesar de Leisi elaborar um aparelho impressionante de categorias para analisar de maneira abstrata as condições de uso de substantivos, adjetivos e verbos, esse exemplo já é o suficiente para entender o seu método: Ele consulta a enciclopédia e abstrai das ocorrências lá registradas condições gerais para o uso de cada signo. De fato o falante nativo usa o mesmo mecanismo para decidir se o signo se aplica ou não, porém sem ter consciência nem conhecimento dessas condições abstratas. O resultado do trabalho de Leisi não é apenas um esboço para um dicionário contrastivo melhorado das duas línguas por ele estudadas. Ele mostra como a enciclopédia (parole) se transforma em dicionário (langue), sem cair na armadilha das árvores globais.
Resumindo as exposições de Eco, verifica-se que o dicionário, de fato, é mesmo uma enciclopédia estenográfica, na prática muitas vezes mutilada e por isso insuficiente. Um dicionário bom não passa de uma enciclopédia disfarçada, na medida que traz os contextos, ou seja registros enciclopédicos, para desambiguar os vários significados de cada signo. Em contrapartida, a enciclopédia é composta por várias árvores de dicionários parciais, flutuantemente entreligadas num sistema mais parecido com rizoma que com árvore. Ou seja, dicionário e enciclopédia são como ovo e galinha, um depende do outro e ao mesmo tempo o determina. No final, a dicotomia entre dicionário e enciclopédia dissolve-se de uma maneira hegeliana: na síntese de ambos para formar um modelo semiótico mais complexo.(80)
Porém, o maior valor do trabalho de Eco está onde mora sua verdadeira paixão: no pensamento enciclopédico, ou seja no instrutivo-didático nesse caso, que obriga seus leitores a acompanhá-lo na travessia de páginas tumultuadas da enciclopédia parcial da teoria semântica.(81)

3. Implicações para o ensino de línguas estrangeiras


O objetivo da didática do léxico no ensino de uma língua estrangeira deve ser construir o sistema interdependente de dicionário - enciclopédia da língua alvo, como acima descrito, na mente do aluno. Pode parecer ambicioso demais, um segundo processo de aquisição e não apenas de ensino de língua. Mas toda aprendizagem de línguas, seja qualitativa e quantitativamente limitada, só consegue alcançar uma certa competência comunicativa quando dá acesso a essas „instruções de uso", fornecidas por dicionário e enciclopédia em conjunto. Blikstein cita E. Hall: "..pessoas de culturas diferentes não apenas falam línguas diversas mas, o que é talvez mais importante, habitam em diferentes mundos sensoriais."(82)
Por causa da construção mútua do sistema cognito-perceptivo e do aparelho linguístico, muito bem analisada por Blikstein, não é possível adquirir apenas um dos dois elementos. Por isso, um aluno com exímio domínio da língua alvo dominará também a práxis social desta cultura alvo. Por outro lado, o caminho mais seguro de apreender uma língua estrangeira é a integração à práxis, porque assim adquire-se desde o início, através dos „óculos sociais" da língua alvo, o sistema linguístico correspondente - neste caso o léxico, sem ficar preso no problema da tradução.




Por isso, o caminho indicado para o ensino é de dar ao aluno acesso à maneira como um falante nativo usa a língua(83) - sem ter conhecimento consciente disso. A tarefa da didática é proporcionar essas porções de dicionário - enciclopédia de uma forma estruturada. Como na maioria dos casos não há tempo nem contextos autênticos suficientes para adquirir, naturalmente e aos poucos, os conhecimentos enciclopédicos necessários de forma indutiva, a didática tradicionalmente tenta tomar o atalho de inverter o processo: A dedução a partir de regras cognitivamente proporcionadas substitui a aquisição natural mais demorada e menos dirigida(84). Nos termos de Eco: entra-se no castelo da língua pela janela do dicionário em vez de ser pela escadaria, o portal, os corredores e as várias ante-salas da enciclopédia.
Já foram citados alguns exemplos de como explicar cognitivamente o conteúdo de signos dentro do contexto da língua alvo (Sonne - sol, Haus - casa, stellen/setzen/legen/gießen/geben - pôr), abstraindo dos inumeráveis registros da enciclopédia de uma tal forma, que o aluno possa fazer previsões certeiras sobre como aplicar o signo em contextos ainda não ocorridos. Eco descartou a tentativa de Pottier, de elaborar descrições de vocabulário, como não válida para fundamentar o valor do significado. Mas a sua classificação de móveis(85) serve perfeitamente para ajudar o aluno a entender, já dentro do sistema lexical alvo, as “condições de uso" estudadas por Leisi.

fofo
1 lugar
braços
encosto
4 pernas
cadeira
-
+
-
+
+
poltrona
+
+
+
+
+
sofá
+
-
+
+
+
escabelo
-
+
-
-
-
pufe
+
+
-
-
-

Assim a desvantagem do esquema para Eco, de definir um valor com a ajuda de outro, igualmente indefinido, torna-se virtude, na medida que nessa „semiose ilimitada" da corrente de interpretações o aluno ergue o sistema lexical da língua alvo na sua mente. Em outras palavras, como os elementos do eixo horizontal e vertical da grade são solidários(86), o aluno que não sabe o significado de /fofo/ apreende os elementos dos dois eixos em conjunto, com a ajuda de representações visuais, normalmente fornecidos junto em métodos de idiomas. Além disso seu conhecimento do mundo já estabelecido (neste caso sobre os diversos móveis) colabora no processo de decodificação(87).
Essas instruções de uso abstratas muitas vezes podem ser dadas com visualizações, não só reproduções (desenhos, fotos) de objetos, mas, no caso de verbos, por exemplo, que são difíceis de se desenhar, com esquemas simbólicos. O verbo /wählen/ em alemão e constituído pela constelação de ter um sujeito e várias opções, sendo que o sujeito descarta uma parte das opções e fica com outra. A visualização seria:
Assim o verbo /wählen/ corresponde a /eleger/, /escolher/, /votar/, /optar/, /selecionar/ e ainda /marcar/, /discar/ no telefone. Os alunos que não tiveram a explicação da lógica semântica por baixo da superfície dos signos, providenciada pelo pequeno desenho, primeiro não entendem a palavra, porque eles se esbarram nas traduções contraditórias (eles ainda não têm acesso a porções suficientemente grandes da enciclopédia!). Depois questionam a autoridade do dicionário e do professor („Como?! Não pode ser! Se é x não pode ser z!" etc.) e são desmotivados a procurar por conta própria e de maneira enciclopédica ( = indutiva) outras relações lógicas no sistema lexical da língua alvo. Por último, não conseguem estabelecer o signo na memória ativa, porque o elemento ficou fora do „rizoma" linguístico(88), fora dos caminhos disponíveis para o pensamento dentro da língua alvo.
Outro exemplo são os verbos /wechseln/ e /tauschen/ em alemão, representados no dicionário como /trocar/, /cambiar/, /substituir/, /alternar/, /mudar/ e /permutar/. Essas sinonímias servem grosseiramente para decodificar o significado dos verbos numa ocorrência concreta, fazendo a prova de substituição até conseguir encaixar um deles mais ou menos no dado contexto(89). O problema maior é que o dicionário não dá nenhuma instrução para o uso ativo, que o aluno não vai acertar antes de conhecer uma porção bastante grande da enciclopédia - ou de ter uma abstração didática dela, que, outra vez, pode ser dada com a ajuda de um desenho.
/Tauschen/ (à esquerda) e definido pela reciprocidade da ação e pela equivalência dos objetos. Com /wechseln/ (à direita) muda o enfoque: em vez dos dois remetentes/ destinatários da ação mútua, agora só um dos agentes, ou pontos de referência da permuta, é enquadrado. O critério agora é que uma coisa sai e outra entra.
A equivalência funcional é mantida, a reciprocidade não é mais condição necessária e o segundo agente pode estar ausente. Assim resolvem-se todas as dúvidas de uso. /Tauschen/ para /Hemd/ (camisa) exige um parceiro disposto a me entregar sua camisa em troca da minha, enquanto /wechseln/ significa que eu troco de camisa para substituir a suja por uma limpa. Para /Lampe/ (lâmpada), quando quebrada, /tauschen/ significaria que eu troco a quebrada de lugar com uma outra, não quebrada. Aqui normalmente só se aplica /wechseln/ para tirar a quebrada e pôr uma nova. O pequeno esquema lógico explica também porque no caso de /Geld/ (dinheiro) podem-se usar os dois. Com /tauschen/ realça os aspectos da reciprocidade e equivalência: Eu dou ao cambista em reais o equivalente do que ele me dá em dólares. Com /wechseln/ muda o enfoque: Eu preciso de dólares para viajar, então tiro do meu bolso os reais (que não servirão no exterior), para substituí-los pela equivalência em dólares. O parceiro da permuta nesse caso não interessa.
A experiência prática mostra que, o aluno provido desta instrução, acerta todas as possíveis futuras ocorrências dos dois verbos, tanto na decodificação quanto na codificação, sem ter que passar por uma demorada fase de aquisição de enciclopédia. Isso prova que, no campo da semântica, a chave para o ensino não é a equivalência do dicionário, mas sim a instrução de uso da enciclopédia, ainda que em forma abstrata, dada na maneira de um dicionário.


Bibliografia:

Bernstein, B.: Class, Code and Control, London, Routledge and Kegan Paul, 1971
Blikstein, I.: Kaspar Hauser ou a fabricação da realidade, São Paulo, Cultrix, 1990
Buhler, K.: Sprachtheorie. Die Darstellungsfunktion der Sprache, Jena 1934, Stuttgart 1982
Eco, U.: Semiótica e filosofia da linguagem, Editora Ática, 1991
Leisi, E.: Der Wortinhalt, Seine Struktur im Deutschen und Englischen, Heidelberg, Quelle & Meyer, 1975
Morris, C.: Fundamentos da Teoria dos Signos, São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, 1976
Ogden, C.K./Richards, I.A.: The Meaning of Meaning, New York, Hartcourt, Brace & Co., 1956
Saussure, F. de: Cours de Linguistique Gerale, Paris, Payot, 1975
Wandruszka, M.: Die Mehrsprachigkeit des Menschen, Munchen, dtv, 1981
Witzenmann, H.: Die Egomorphose der Sprache, em: Witzenmann, H.: Intuition und Beobachtung, Band II., Stuttgart 1978, pp. 212 - 282







(1) O modelo do triângulo abaixo reproduz o clássico "Triângulo Semiótico" segundo Ogden, C.K./Richards, I.A.: The Meaning of Meaning, New York, Hartcourt, Brace & Co., 1956, p. 11  


(2) Onde não há outra indicação, veja: Blikstein, Isidoro: Kaspar Hauser ou a fabricação da realidade, São Paulo, Cultrix, 1990, p.23-24, completado por Eco, Umberto: Semiótica e filosofia da linguagem, Editora Ática, 1991, p. 66  


(3) Saussure, F. de: Cours de Linguistique Gerale, Paris, Payot, 1975, p. 31  


(4) Veja: Blikstein, p. 31  


(5) Morris, Charles: Fundamentos da Teoria dos Signos, São Paulo, Editora da Universidade de SP, 1976, p. 13  


(6) Veja: Eco, p 64  


(7) Veja: Eco, p. 81  


(8) Veja: Blikstein, p. 28  


(9) p. 46  


(10) Esta mudança na metafísica ocidental foi enquadrada e descrita de várias maneiras. A constatação nietzscheana de que Deus estaria morto se encaixa aqui da mesma forma que o processo da emancipação dos indivíduos, na mudança da legitimação divina do poder político no sistema feudal para a legitimação intersubjetiva do sistema democrático. Interessante, porém coerente e necessário, é encontrar a mesma linha de desenvolvimento na teoria dos signos. Isso confirma mais uma vez a abordagem da filosofia analítica. Até um funcionalista semiótico convicto como Charles Morris afirma na introdução à sua teoria dos signos: „A civilização humana depende dos sinais e sistemas de signos e a mente humana é inseparável do funcionamento dos sinais, se é que não deva identificar-se com este funcionamento." Morris, op. cit., p. 9  


(11) op. cit., p. 81  


(12) A questão da interdependência e determinação mútua do sistema linguístico e do mundo real, da diferença entre dicionário e da enciclopédia que se apoiam mutuamente nesse sentido.  


(13) Eco prefere se basear amplamente em Peirce, talvez por não concordar com a abordagem anti-filosófica de Morris.  


(14) Blikstein se baseia em Platão que descreve a língua como organon diakritikon, veja Blikstein, op. cit. , p. 47  


(15) Blikstein, op. cit., pp. 60 - 61, mostra que todas as palavras têm valor pejorativo ou meliorativo e neste sentido são "ideológicas".  


(16) O Autor também os chama de "formas semânticas"; exemplos de corredores isotópicos seriam verticalidade / horizontalidade, dureza/moleza, etc.  


(17) op. cit., p. 81  


(18) Não totalmente por acaso, a forma básica do modelo de Blikstein é também de trapézio. Apesar de incluir elementos extralinguísticos e assim transcender qualitativamente o triângulo tradicional, o esquema lembra bastante o de Heger, só que Blikstein completa o lado direito do Triângulo Semiótico, da relação entre significado e mundo real (em Heger "conceito" e "coisa"), ainda deficiente no modelo anterior.  


(19) do qual também Eco não escapa. Blikstein diz: "o próprio Eco está, ironicamente, no «huis-clos» de Ogden e Richards", op. cit., p. 36  


(20) Como Eco observa não sem razão, a consequência disso foi a "abolição do signo" como tal por muitos teóricos; veja op. cit., p. 16.  


(21) Umberto Eco tira essa conclusão só no final de seu segundo capítulo, onde discute a influência do dicionário e da enciclopédia na teoria da semiose. Já no seu 1º capítulo sobre signo e referência ele chega muito perto, afirmando que semiose como abdução seria uma mistura entre dedução e indução, no sentido que, por um lado, trabalha de modo dedutivo, como se tivesse uma regra que define os casos para se chegar num resultado desejado da semiose. Por outro lado, funcionaria indutivamente, na medida em que permanentemente interpretamos resultados de processos semióticos para modificar a "regra" do jogo linguístico. Errado é achar que esse mecanismo seja meta-semiótico, enquanto ele é a base da semióse! Veja op. cit., p. 51.  


(22) Em página 76 a 83 Blikstein discute a influência da língua sobre a práxis, 84 a 87 da subversão da práxis pelo uso poético da língua. Mas a modificação da realidade fica desnecessáriamente descartada.  


(23) Sobre o modelo, veja: Buhler, Karl: Sprachtheorie. Die Darstellungsfunktion der Sprache, Jena 1934, Stuttgart 1982  


(24) Esta discussão domina, por exemplo, boa parte do primeiro capítulo "Signo e Inferência" de Eco, e ele leva até à página 61 para admitir a importância do contexto para determinar o valor concreto do signo.  


(25) Termo de F. de Saussure que ainda no início desse século causou furor, apesar de já a definição de "signo" de Sto. Agostinho como "res praeter speciem quam ingerit sensibus, aliud aliquid ex se faciens in cogitationem venire" (grifos meus) tenha feito a separação nítida entre signo e referente, cortando para sempre a palavra da realidade. Veja Eco, op. cit., p. 21 e 42/43.  


(26) Existem convicções fora da área da linguística que afirmam um conteúdo concreto e existencial de sons e sílabas produzidas pela voz humana a partir do sopro vital da respiração, como mantras por exemplo. Outro exemplo, já bem mais perto da semiótica, é Herbert Witzenmann: Die Egomorphose der Sprache, em: Witzenmann, H.: Intuition und Beobachtung, Band II., Stuttgart 1978, pp. 212 - 282. O autor situa-se na teoria antroposófica baseada em Rudolf Steiner e formula uma tese sobre a correspondência entre vogal/consoante (aspiração/modulação) e os eixos básicos da existência humana ego/mundo, contenção/apreensão, posição/formação etc. que lembra na sua determinação mútua e reciproca bastante o modelo de Hjelmslev.  


(27) Cf. p. 4/5 e nota 10 deste trabalho.  


(28) op. cit., p. 32  


(29) op. cit., p. 60  


(30) op. cit., p. 62  


(31) Na verdade, dicionários sempre exercem inevitável e inseparavelmente as duas funções, independente da postura do(s) seu(s) autor(es). Dois exemplos extremos: O dicionário da Académie Française, conservador e prescritivo, não deixa de descrever (pelo menos grande parte) da língua usada; o dicionário Aurélio, ao contrário, que registra toda e qualquer ocorrência verbal, na maneira de um arrastão e sem pretensão de avaliar seus verbetes, sempre vai ser utilizado como instância apelativa para verificar se tal palavra existe, e então pode ser usada como "bom português".  


(32) tanto europeu, quanto africano e brasileiro, tratando-se em todos os casos de países quentes  


(33) op. cit., p. 80  


(34) ibd.  


(35) Como Eco já havia "suspeitado"!  


(36) Quando se chega no hiperônimo patriarca (seja ele qual for) no início da árvore, ela acaba, embora tenha uma quantidade quase inumerável de elementos em baixo.  


(37) veja Eco, op. cit., pp. 83 - 86  


(38) op. cit., p. 92  


(39) op. cit., p. 87  


(40) op. cit., p. 94  


(41) op. cit., p. 94  


(42) op. cit., p. 116  


(43) op. cit., p. 117; Repara-se nitidamente a proximidade do modelo semiótico de Blikstein.


(44) op. cit., p. 95  


(45) op. cit., p. 109  


(46) op. cit., p. 110  


(47) op. cit., p. 116  


(48) op. cit., p.72  


(49) ibd.  


(50) op. cit., p. 76  


(51) op. cit., p. 76  


(52) termos usados por Grice para designar instruções situacionais mais ou menos fixas  


(53) op. cit., p. 77  


(54) pela práxis de Blikstein  


(55) cf. Eco, op. cit., p. 129  


(56) Veja Eco, op. cit., p. 111  


(57) op. cit., p. 112  


(58) op. cit., pp. 112 - 113  


(59) ibd.  


(60) op. cit., p. 114  


(61) Bernstein, B.: Class, Code and Control, London, Routledge and Kegan Paul, 1971  


(62) Sobre o multilingualismo natural dentro de cada indivíduo veja Mario Wandruszka: Die Mehrsprachigkeit des Menschen, Munchen, dtv, 1981  


(63) Eco, op. cit., p. 112  


(64) Eco, op. cit., p. 115  


(65) Aqui, novamente, Eco se encontra com o modelo de Blikstein.  


(66) op. cit., p. 133  


(67) op. cit., p. 127  


(68) op. cit., p. 121  


(69) op. cit., p. 128  


(70) op. cit., p. 131  


(71) op. cit., p. 132  


(72) op. cit., pp. 132 - 133  


(73) op. cit., p. 134


(74) ibd. A terceira vez que Eco e Blikstein estão se parafraseando!  


(75) op. cit., p. 135  


(76) Leisi, E.: Der Wortinhalt, Seine Struktur im Deutschen und Englischen, Heidelberg, Quelle & Meyer, 1975  


(77) Cf. p. 9 deste trabalho  


(78) Não obstante a isso o dicionário alemão - português da Porto Editora o traduz como "andar, caminhar" sem dar contexto ou condições de uso.  


(79) veja Leisi, op. cit., p. 67  


(80) Porém já concebido antes por outros teóricos como Hjelmslev, Peirce, Blikstein, Witzenmann, ou pelos resultados das áreas da pragmática e da análise de discurso.  


(81) Um comentário metodológico por último, que não somente se aplica a Eco, mas infelizmente à maioria dos autores da nossa disciplina: Eco comete o erro de construir todos os seus exemplos e inventar determinados significados e contextos imagináveis para eles. O leitor em geral aceita as propostas de contextualização. Mas nesse momento o exemplo morreu como tal. Ele não é mais descrição de um processo semiótico, mas sim uma outra semiose independente. Não serve mais para qualquer coisa que se queira demonstrar / ilustrar com ele. Eco se refere à pragmática e à análise de discurso para resolver certos problemas; ele também deveria adotar seus respectivos métodos e ter o cuidado de só analisar exemplos autênticos, para os quais ele pode fornecer não só a indicação de uma enciclopédia virtual, mas sim todos os dados necessários sobre o co- e contexto concretos.  


(82) Veja Blikstein, op. cit., p. 75  


(83) Esta máxima vale não só para a semântica, mas também para a sintaxe e pragmática do novo idioma.  


(84) O grande problema desse método é que estes conhecimentos conscientes não ativam a automatização da produção de signos e textos na língua alvo. O aluno só "sabe" o que seria o certo, mas ele não sabe usá-lo espontaneamente na hora certa. Uma postura diferente é adotada pelos métodos "alternativos" como a sugestopedia, o Silent Way, Total Physical Response etc. Aqui falta espaço para discutir o dilema em maior extensão. Vale indicar que, como no caso dicionário vs. enciclopédia, a síntese entre os dois modelos traz os melhores resultados.  


(85) Veja Eco, op. cit., p. 120  


(86) ou ocorrem juntos em número estatisticamente significante dos registros da enciclopédia na terminologia de Eco  


(87) Exatamente isso aconteceu no meu próprio caso com a palavra "escabelo", para mim - como falante não nativo de português - desconhecida. Através das instruções da grade semântica eu posso imaginar que seja um tipo de banquinho transportável com uma perna.  


(88) metáfora especialmente ilustrativa nesse caso, porque significa «armazenador de energias, subterrâneo, centro de reprodução»  


(89) Ainda assim não desambigua perfeitamente, porque em vários casos aplicam-se os dois com relevante diferença de significado. (Veja exemplos na continuação.)  

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