segunda-feira, 7 de outubro de 2013

PLATÃO E NIETZSCHE: VERDADE E METÁFORA NA LINGUAGEM

ISSN 1983-828X | Revista Encontros de Vista - Terceira edição 100
PLATÃO E NIETZSCHE: VERDADE E METÁFORA NA LINGUAGEM

José Ferrari Neto
(Doutor em Estudos da Linguagem (PUC/RJ) e Professor Adjunto de Teoria Linguística da Universidade Federal Rural de Pernambuco – Unidade Acadêmica de Serra Talhada- UFRPE/UAST).



RESUMO: A questão da possibilidade de conhecimento verdadeiro sobre a realidade através da
linguagem é considerada a partir da análise do problema da figuratividade da linguagem e das condições de um estudo científico dos sentidos literais e não-literais. Discute-se o tratamento dado à questão da metáfora e de suas implicações para a construção de uma teoria geral do significado e para a elaboração de uma teoria epistemológica sobre a realidade objetiva, tanto do ponto de vista de teorias semânticas e linguísticas quanto da perspectiva da Filosofia. Cotejam-se as propostas filosóficas de Platão e Nietzsche nesse campo, com vistas a uma delineação geral dessa problemática, amparadas por contribuições advindas da Psicologia, da Linguística e da Semântica. O objetivo é ilustrar o quanto se está distante de uma solução definitiva para a questão.



PALAVRAS-CHAVE: linguagem, verdade, metáfora, conhecimento, significação

1. Introdução
Uma das questões centrais com que se depara qualquer teoria sobre semântica das línguas humanas diz respeito ao poder figurativo da linguagem. Tal questão pode ser colocada nos seguintes termos: deve a Semântica, enquanto teoria científica do significado, ocupar-se com o estudo dos discursos não-literais? Ou estes devem permanecer fora do âmbito de um estudo realmente objetivo do significado? Pode-se, sem embargo, afirmar que a esse problema ainda não foi dada, de forma satisfatória, uma resposta convincente: os semanticistas têm-se limitado a tomar uma ou outra
posição, assumindo-a como pressuposto em seus modos de teorização. O dilema, portanto, continua em aberto.

Certamente que a dificuldade em se desatar o nó acima referido não é gratuita nem fortuita, antes decorre da maneira como tradicionalmente se concebem os conceitos de literalidade e de não-literalidade. O primeiro termo normalmente é relativo a um significado inerente à palavra, mais estável e duradouro, mais resistente a influências contextuais e a interpretações subjetivas. Já o segundo termo geralmente é concebido como uma deformação, uma transformação do sentido literal, sendo por natureza mais instável, mais infenso a interferências situacionais e individuais. Se são claros os conceitos de ambos os termos, tanto não o é o seu raio de ação – é extremamente difícil
estabelecer os limites de onde começam ou de onde terminam os sentidos literal e não-literal de uma palavra e, mesmo quando se consegue no mínimo um arremedo de delimitação, este geralmente é tão subjetivo que acaba por se tornar tão impreciso quanto qualquer outro.
Uma vez que a própria Semântica encontra dificuldades para definir objetivamente o seu objeto de estudo – o significado –, não é de se espantar que também haja dificuldades em se estabelecerem distinções relativas a ele, como é o caso dos significados literais e não-literais.
J. Sadock, em artigo de 1979, exemplifica uma tendência hoje dominante nos estudos em Semântica: a de delegar (e consequentemente relegar) a outras disciplinas, notadamente não-linguísticas, o estudo dos discursos não-literais. Numa frase admirável, senão pelo conteúdo, amplamente passível de polêmica, ao menos pela forma precisa e clara como foi enunciada, ele ilustra esta corrente: “Todo o discurso não-literal, inclusive a metáfora, está fora do escopo da Lingüística Sincrônica”.
Entende ele que os atos não-literais “nada têm a ver com a linguagem, ocorrem paralelamente àqueles que realizamos quando usamos a linguagem”.
Assim, Sadock considera a metáfora um assunto “inadequado” para a descrição linguística, uma vez que ela se baseia em atos indiretos, próprios do comportamento não-linguístico. È para o campo da Psicologia que Sadock empurra o estudo da nãoliteralidade, já que são psicológicos os princípios que regem discursos desse tipo. Esse tipo de posicionamento é típico de teorias semânticas de cunho estruturalista, de quem Sadock é herdeiro, e procura resolver a questão da não-literalidade com base em uma estratégia de exclusão.
No lado oposto, estão aqueles que inserem no âmbito da Teoria Semântica o estudo da figuratividade, como é o caso dos semanticistas que comungam dos pressupostos estabelecidos pela chamada Linguística Cognitiva. G. Lakoff (1980), uma dos principais expoentes deste grupo, declara que
a metáfora é, para a maior parte das pessoas, um recurso para a imaginação poética ou para a ornamentação retórica – algo que remete a uma linguagem extra-ordinária, mas não à linguagem comum. Além disso, a metáfora é tipicamente vista como uma característica exclusiva da linguagem, nada tendo a ver com o pensamento ou a ação. Descobrimos que, ao contrário, a metáfora é algo onipresente na vida cotidiana (...) Nosso sistema conceitual, com base no qual pensamos e agimos, tem uma natureza fundamentalmente metafórica.
Para os seguidores dessa vertente, a figuratividade não está circunscrita somente à linguagem, mas, além de ser parte fundamental dela, o é igualmente da mente e da cognição em geral.
Como se vê, o tratamento da questão do poder figurativo da linguagem ainda é feito com base em estratégias de opção: adota-se uma perspectiva e, a partir daí, norteia-se toda a descrição semântica subsequente. Contudo, para ambos os posicionamentos, é possível estabelecer pressupostos semelhantes, os quais baseiam todo o edifício teórico erigido por essas correntes. Arroyo & Rajagopalan (1992) definem esses pressupostos coincidentes, ressaltando que eles aparecem igualmente em tratamentos não linguísticos do problema, como é o caso da Filosofia, com Nietzsche, e na Pragmática, com Searle, em que se podem observar reflexões diversas daquelas encontradas habitualmente nos compêndios de Lingüística Geral e de Teoria Semântica:
a) Possibilidade de uma distinção objetiva entre o literal e o não-literal
b) Possibilidade de outras distinções, tais como o linguístico, o psicológico e o sociológico; entre o sincrônico e o diacrônico; entre o uso e o significado; entre a linguagem e o pensamento
Em ambas, toma-se a existência de tais distinções como evidentes, não se considerando a possibilidade de elas não existirem ou de ser impossível distingui-las objetivamente. De mesmo modo, essas distinções são estabelecidas de maneira nãoproblemática, tomando-se como ponto pacífico sua conceituação e delimitação.
c) Possibilidade de o sentido literal ser evidente em si mesmo, independentemente de fatores não-linguísticos, tais como: o contexto, a situação de emissão, os sujeitos emissores e receptores etc.
d) Possibilidade de um sujeito “neutro” em relação a seus próprios discursos.
O que Arroyo & Rajagopalan (1992) propõem é, na verdade, que se considere a questão do poder figurativo da linguagem em bases que não sejam estas que elas acabam por apontar e criticar. Eles assumem tal posição após analisarem propostas acerca do problema (como as de Rumelhart, na Psicologia, a de Sadock, na Linguística, a de Burke, na Teoria da Literatura, e a de Searle, na Pragmática), que terminam por, invariavelmente, tropeçar nas mesmas “pedras”, segundo a metáfora
por eles utilizada. Ao invés dos pressupostos listados acima, os autores propõem outros bastante diversos, desta vez baseados em Nietzsche e em Freud.
Do primeiro, eles retomam a crítica à metafísica elaborada no artigo “Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral”, na qual o grande filósofo alemão implode as bases nas quais se sustenta a ciência do homem, ao declarar a impossibilidade de uma distinção clara e objetiva entre sujeito cognoscente e objeto cognoscível. Para Nietzsche, não há descobertas, somente criações, e, como tais, assentam-se fundamentalmente sobre construções metafóricas. O homem não é, nessa
perspectiva, um descobridor de verdades independentes de seu desejo de poder ou de seu instinto de sobrevivência, mas sim um produtor de significados. Do segundo, os autores levam em consideração a noção de inconsciente, que acarretou uma profunda revisão na concepção de sujeito, que passa a ser regido não por forças conscientes e por ele controláveis, mas sim por impulsos inconscientes que visam apenas à satisfação de instintos básicos. Sob esta ótica, todas as verdades e sentidos literais
têm de ser relativizados, como possíveis de serem interpretados igualmente como os sentidos não-literais.
Os autores afirmam que a crença na possibilidade de um sentido literal objetivo é que se constitui a grande metáfora, a “metáfora primordial”, aquela criada pelo próprio homem a fim de permitir-lhe sublimar a sua condição precária no universo e erigir o mito do antropocentrismo.


2. Linguagem e epistemologia em Platão:O diálogo de Platão intitulado Crátilo constitui o primeiro grande texto filosófico inteiramente consagrado à linguagem. Neste livro seminal, a linguagem é tratada não como discurso, a exemplo do Sofista, nem como retórica, à semelhança do Górgias, mas sim como adequação dos nomes às coisas, e, nesse sentido, adota uma perspectiva epistemológica no tratamento da questão da justeza dos nomes. Partindo da pergunta fundamental em qualquer consideração acerca da significação linguística, qual seja “por meio de que uma expressão adquire significação?”, Platão empreende uma
decidida busca da essência da linguagem, essência essa concebida como relação entre os nomes e as coisas. Eis, portanto, o objetivo primordial do Crátilo: estabelecer o papel da linguagem na obtenção e na fundamentação do conhecimento verdadeiro.
Sendo então essa a meta, é de esperar-se que uma teoria do conhecimento seja assumida, a fim de embasar o desenvolvimento do diálogo, e Platão assim o faz. Para o filósofo, há uma permanência da essência das coisas, sem o que não haveria conhecimento possível. As coisas possuem qualidades objetivas, relações e diferenças em si mesmas, ou seja, existe uma ordem objetiva das coisas, e essa ordem pode ser contemplada pelo pensamento e apreendida pelo intelecto. Tal teoria epistemológica é
bem característica do pensamento objetivista dos gregos, para quem há uma realidade externa dissociada do homem e passível de ser conhecida por um sujeito cognoscente.
Dentro dessa concepção, que papel legar à linguagem? Ora, no Crátilo, assume-se que à linguagem cabe exprimir esta ordem verdadeira das coisas, a tarefa que se lhe impõe consiste na expressão adequada da essência das coisas, qual seja a ordem objetiva imanente às coisas. Aqui reside a conclusão central do diálogo acerca da justeza dos nomes: uma palavra é justa, na medida em que revela a essência das coisas, na medida em que “traz a coisa à apresentação” (cf. Oliveira, 1996). Os signos (nomes), constituintes da linguagem, fazem parte de um todo organizado sistemicamente,
combinando-se de modo a corresponder à estrutura ontológica (ordem objetiva) das coisas por eles designadas. Assim, a justeza de um nome é medida de acordo com a capacidade que esse nome possui de corresponder à essência das coisas.
Essa é a tese central de uma semântica realista: há uma realidade objetiva, constituída de seres e coisas, cuja ordem pode ser captada; e há uma linguagem que, por se relacionar objetivamente com essa realidade, a exprime e a apresenta. O significado de um nome, para Platão, é, por conseguinte, a essência de uma certa coisa a esse nome relacionada e por ele expressa e apresentada.
Em várias passagens do texto, Platão expõe a base de sua teoria do conhecimento; em outras, fica evidente a concepção platônica do significado, concebido como relação entre ser e linguagem. Como exemplo de sua epistemologia, tem-se o fragmento no qual Sócrates, dirigindo-se a Hermógenes, afirma:
(...) as coisas não são semelhantes ao mesmo tempo, e sempre, para todo o mundo, nem relativas a cada pessoa em particular, é claro que devem ser em si mesmas de essência permanente; não estão em relação conosco, nem na nossa dependência, nem podem ser deslocadas em todos os sentidos por nossa fantasia, porém existem por si mesmas, de acordo com sua essência natural (386 d).
É esse postulado que permite o estabelecimento de uma relação objetiva imutável entre linguagem e ser, constituindo-se em uma garantia segura para requerer uma visão realista e objetiva do significado linguístico, na medida em que afirma a existência de uma realidade permanente e exclui a possibilidade dessa realidade ser construída subjetivamente. Mais adiante, Platão estabelece uma analogia, valendo-se da metáfora do tear, na qual ilustra igualmente sua semântica realista. Ainda dirigindo-se a Hermógenes, Sócrates diz:
o nome, por conseguinte, é instrumento para informar a respeito das coisas, e para separá-las, tal qual a lançadeira separa os fios da teia (388 c).


A linguagem deve ser estruturada, portanto, sob essa visão, de tal modo que possa trabalhar diretamente as coisas, que permita descrever, comparar, exprimir etc. Enfim, que possibilite organizar a realidade, concebida como uma idealidade externa à linguagem, mas nesta concretizada.
Em outro momento, Platão compara o trabalho artesanal de fiar e tecer, além do trabalho do ferreiro, com o ato intelectual de nomear. Desta feita, da mesma forma que uma fiadeira-tecelã lança mão de uma ferramenta real (o tear) para produzir um objeto real (o tecido), o legislador vale-se de um instrumento ideal (a linguagem) para produzir um objeto ideal (o nome), respeitando a essência da coisa por esse nome nomeada: o nosso legislador deverá saber formar com os sons e as sílabas o
nome por natureza apropriado para cada objeto, compondo todos os nomes e aplicando-os com os olhos sempre fixos no que é o nome em si, caso queira ser tido na conta de verdadeiro criador de nomes. O fato de os legisladores não empregarem as mesmas sílabas não nos deve induzir a erro. Os ferreiros, também, não trabalham com o mesmo ferro, embora todos eles façam iguais instrumentos para idêntica finalidade. Seja como for, uma vez que lhe imprima a mesma forma, ainda que em ferro diferente, não deixará, por isso, o instrumento de ser bom, quer seja fabricado aqui, quer o seja entre os bárbaros. (390 a)
Aqui há também mais elementos que suportam a concepção realista da semântica de Platão, uma vez que ele concebe o significado como algo externo à linguagem, devendo esta se adequar àquele sob pena de não se ajustar à essência das coisas, e, portanto, não servir aos propósitos comunicativos e didáticos que Platão define para a linguagem no decorrer do Crátilo. A função do criador de nomes se
assemelha, assim, à da fiadeira, pela razão de que quando a tecelã produz o tecido, tem em mente o tecido ideal (corresponde à forma ideal de tecido, conforme a teoria platônica das idéias), e, igualmente, o legislador-criador de nomes, quando cria um nome, tem em mente o nome ideal (correspondente à ordem interna objetiva da coisa a qual o nome se relaciona). Tanto faz, logo, dizer “hypos” ou “cavalo”, desde que a idéia ou essência seja plenamente captada. Platão aqui dá, de quebra, uma interessante explicação para a existência de diferentes línguas.

3. Linguagem e epistemologia em Nietzsche:
A filosofia da linguagem defendida por Nietzsche em “Sobre a verdade e a mentira no sentido extra-moral” concentra-se na defesa do caráter metafórico da linguagem, ou seja, confere à metáfora, até então relegada a um modesto segundo plano em todas as reflexões sobre a linguagem (considerada até mesmo um elemento perturbador de uma correta descrição linguistica), um status brilhante e destacado.
Trabalhando justamente no ponto em que a Linguística e a Filosofia da Linguagem mais patinaram, qual seja o estabelecimento de uma teoria objetiva da metáfora, Nietzsche vai minar com seu texto as bases sobre as quais se assentaram todos os tratamentos sobre a questão da significação desde Platão e Aristóteles. A concepção platônica de nome, correspondente à concepção saussuriana de signo, discutida no Crátilo e apresentada na questão 1, fundamenta-se na assunção de que há uma objetividade no referente extralinguístico, ou seja, há uma realidade externa à linguagem e os nomes e signos a ela se referem de modo objetivo. Tal concepção está na raiz do pensamento filosófico ocidental, notadamente na epistemologia, na lógica e nas semânticas de inclinação realista e mentalista. Ora, o filósofo alemão, cuja característica mais marcante foi atacar aquilo que a filosofia tem de mais sólido, vai questionar diretamente esse postulado.
Já a partir dessa consideração inicial, pode-se perceber o quão diferentes são as posições de Platão e Nietzsche a respeito das questões acerca da linguagem e do significado. Pode-se até mesmo dizer que os textos de ambos os filósofos constituem-se em pólos diametralmente opostos no tocante a concepções sobre a essência da linguagem. Vários pontos de oposição podem ser então detectados, quando do cotejo entre as idéias dos dois pensadores.
De início, Nietzsche já se insurge contra a possibilidade de um conhecimento verdadeiro, ao contrário de Platão, para quem o conhecimento verdadeiro é plenamente possível. Nietzsche abre o seu texto afirmando: Em algum remoto rincão do universo cintilante que se derrama em um sem-número de sistemas solares, havia uma vez um astro, em que animais inteligentes inventaram o conhecimento. Foi o minuto mais soberbo e mais mentiroso da história universal.
Segundo Belo (1987) “a função desta afirmação é desfazer a teleologia do conhecimento humano e relativizar este como uma função da conservação da vida de animais fracos na luta, e jogando, portanto, na dissimulação”. Ela introduz uma nova visão do mundo, na qual o conhecimento não é tido mais como algo com valor em si mesmo, mas sim como algo criado apenas para garantir a sobrevivência do homem em um mundo de todo hostil a ele.
Platão concebia o pensamento como uma espécie de visão, qual seja uma visão intelectual, que permitia a contemplação do ser verdadeiro, e, por conseguinte, a captação da essência das coisas. A linguagem seria a expressão adequada dessas essências apreendidas pelo intelecto. Vê-se que Platão fundamenta a possibilidade de um conhecimento verdadeiro, postulando a existência de uma ordem objetiva subjacente às coisas e assumindo que essa ordem esteja acessível ao pensamento e à linguagem humanos. Ora, Nietzsche (1978) vai colocar-se em uma posição francamente contrária à
possibilidade desse conhecimento, quando afirma que os homens (...) estão profundamente imersos em ilusões e imagens de sonho, seu olho apenas resvala às tontas pela superfície das coisas e vê ‘formas’, sua sensação não conduz em parte alguma à verdade, mas contenta-se em receber estímulos, e como a dedilhar um teclado às costas das coisas.
Ele ainda vai mais além, quando, citando Kant, nega qualquer possibilidade de uma relação objetiva entre linguagem e ser, como defende Platão: a coisa em si (...) é, também para o formador da linguagem2, inteiramente incaptável e nem sequer algo que vale a pena. Ele designa apenas as relações das coisas aos homens e toma em auxílio para exprimi-las as mais audaciosas metáforas. Um estímulo nervoso, primeiramente transposto em uma imagem ! Primeira metáfora. A imagem, por sua vez, modelada em um som ! Segunda metáfora. E a cada vez competa mudança de esfera, passagem para uma esfera inteiramente outra e nova.
São estas transposições de esferas que Nietzsche considera “metáforas”, aqui tomadas em seu sentido mais amplo, e é com base nelas que ele elabora sua concepção de linguagem, na qual mais nada senão metáforas: os conceitos, o eidos dos nomes, tão caro a Platão, não passam de metáforas, cristalizadas pelo uso e pela convenção, e esquecidas de que são metáforas.
Nietzsche segue atacando a concepção platônica de linguagem, quando nega não apenas o caráter universal da linguagem, aqui entendido como a propriedade que ela possui de designar de modo uniforme e obrigatório a realidade das coisas, mas também a associação entre linguagem e verdade, aqui tomada como instrumento para o conhecimento verdadeiro. Ele questiona até mesmo o caráter expressivo da linguagem, no sentido em que ela exprime a essência das coisas, comunica e apresenta essa essência:
Agora, com efeito, é fixado aquilo que doravante deve ser “verdade”, isto é, é descoberta uma designação uniformemente válida e obrigatória das coisas, a e legislação da linguagem dá também as
primeiras leis da verdade: pois surge aqui pela primeira vez o contraste entre verdade e mentira.
E além disso: o que se passa com aquelas convenções da linguagem?
São talvez frutos do conhecimento, do senso de verdade: as designações e as coisas se recobrem? É a linguagem a expressão adequada de todas as realidades ? No tocante à origem da linguagem, encontram-se significativas diferenças entre os pensamentos de Platão e de Nietzsche. Para o grego, a linguagem é oriunda da verdade das coisas, sendo fundamentada na relação objetiva entre essa verdade e a estrutura da linguagem; para o alemão, tal concepção não se sustenta, uma vez que a
percepção das coisas é sempre subjetiva, advindo daí que a “verdade” é, nada mais, do que uma construção subjetiva do sujeito, não existindo exteriormente a ele. Ora, se assim é, como conceber que a palavra seja uma expressão objetiva de uma realidade externa?
O que é uma palavra? A figuração de um estímulo nervoso em sons. Mas concluir do estímulo nervoso uma causa fora de nós já é resultado 2 Esse “formador” pode ser entendido como o “legislador” a que Platão alude no Crátilo de uma aplicação falsa e ilegítima do princípio da razão. Como poderíamos nós, se somente a verdade fosse decisiva nas designações, como poderíamos no entanto dizer: a pedra é dura: como se para nós esse “dura fosse conhecido ainda de outro modo, e não somente como uma estimulação inteiramente subjetiva !”
Como estocada final, afirma ainda Nietzsche (1978) acerca da verdade: O que é a verdade, portanto? Um batalhão móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, enfim, uma soma de relações
humanas, que foram enfatizadas poética e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, após longo uso, paracem a um povo sólidas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões, das quais se
esqueceu o que são, metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível, moedas que perderam a sua efígie e agora só entram em consideração como metal, não mais como moedas.

4. Conclusão
Muito mais divergências poderiam ser apontadas entre Platão e Nietzsche, no que tange à reflexão sobre a linguagem em geral e a significação em particular. Em resumo, pode-se afirmar que Nietzsche ataca o ponto em que se baseia a filosofia platônica e, nesse sentido, torna-se um pensamento frontalmente antagônico ao platonismo. Para além disso, o filósofo alemão abala igualmente os alicerces do edifício erigido por toda a metafísica, epistemologia, filosofia e linguística modernas, ao negar a existência de uma realidade objetiva, e consequentemente a existência de um conhecimento objetivo e de uma significação objetiva. As consequências de uma tal visão ainda estão por ser mais exploradas e discutidas, tendo a Filosofia da Linguagem e a Linguística Semântica ainda seguido por caminhos mais convencionais, mas desde já o pensamento de Nietzsche se constitui em uma reflexão profundamente pertubadora, a qual não é dado o direito de ignorar.

5. Referências
ARROYO, R. e RAJAGOPALAN, K. O Ensino da leitura e a escamoteação da ideologia. In: Arroyo, R. (Org.) O signo desconstruído: implicações para tradução, a leitura e o ensino. Campinas, SP: Editora Pontes, 1992.
AUROUX, S. A Filosofia da Linguagem. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1998.
BELO, F. Linguagem e Filosofia: algumas questões para hoje. Lisboa: Imprensa Nacional, 1987
LAKOFF, G. & JOHNSON, M. Metaphors we live by. Chicago: University of Chicago Press, 1980.
NIETZSCHE, F. Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral. Tradução de Rubens Rodrigues T. Filho. Coleção “Os Pensadores”. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
OLIVEIRA, M. A. de. Reviravolta lingüístico-pragmática na Filosofia contemporânea. São Paulo: Edições Loyola, 1996. (Coleção Filosofia).
PLATÃO. Diálogos. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Belém: Ed. Universidade do Pará. (vol. IX – Crátilo).
SADOCK, J.M. Figurative speech and linguistics. In: Ortony, A. Metaphor and thought. Cambridge: Cambridge University Press, 1979.


ISSN 1983-828X | Revista Encontros de Vista - Terceira edição 108
NEF. F. A linguagem, uma abordagem filosófica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
1995.

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