Há basicamente dois tipos de preconceitos da população em geral: o preconceito das populações rurais (que vivem em contato direto com indígenas e disputam com eles a posse da terra) e aquele oriundo das populações urbanas (que 'aprendeu' uma versão idealizada e romantizada sobre o indígena a partir de manuais escolares).
O ótimo artigo a seguir é um trabalho de pesquisa muito bem feito que aponta para os principais desdobramentos destes dois tipos de preconceito, muito presentes em nosso país na atualidade. A questão fundiária aparece sempre como pano de fundo onde se deve contextualizar a origem de tais preconceitos.
Aconselho a leitura!!
silvio m. max.
Publicado em Ecologia Humana
dezembro de 2014
As afirmações listadas abaixo foram extraídas da vida real. Algumas nas ruas do interior do Brasil, outras nas cidades grandes, outras em discursos de políticos. Percepções diversas, vindas de pessoas com histórias diferentes, mas com um direcionamento em comum: a disseminação do discurso anti-indígena com argumentos falsos
Texto e fotos por Lilian Brandt*
As 10 mentiras mais contadas sobre os indígenas
Mentira nº 1: Quase não existe mais índio, daqui alguns anos não existirá mais nenhum
Se
as pessoas não sabem muito sobre os indígenas na atualidade, sabem
menos ainda sobre o passado destes povos. Mesmo os pesquisadores não
encontram um consenso, e os números variam muito conforme os critérios
utilizados.
A antropóloga e demógrafa Marta Maria
Azevedo estima que, na época da chegada dos europeus, a população
indígena no Brasil era de 3 milhões de pessoas. Eram mais de 1.000 povos
diferentes, que durante séculos foram exterminados pelos
conquistadores, seja por suas armas de fogo, seja pelas doenças que eles
trouxeram. De acordo com antropóloga, em 1957 havia no Brasil apenas 70
mil indígenas. O crescimento desta população é observado somente a
partir da década de 1980.
Em 1991, quando o IBGE passou
a coletar dados sobre a população indígena brasileira, eles somavam 294
mil pessoas. Em 2000, o Censo revelou um crescimento da população
indígena muito acima da expectativa, passando para 734 mil pessoas. Em
2010, a população indígena continuou crescendo, e o Censo mostrou que
mais de 817 mil brasileiros se autodeclararam indígenas, representando
0,47% da população brasileira. Eles estão distribuídos em 305 etnias e
falam 274 línguas.
Esse aumento populacional jamais
seria possível se fossem considerados apenas fatores demográficos, como a
natalidade e a mortalidade. Esses dados revelam o crescimento do número
de pessoas que passaram a se reconhecer como indígenas e o
“ressurgimento” de grupos indígenas. Isto se dá porque, antes, ser índio
no Brasil significava ser atrasado, inferior, escravizado, catequizado,
ser alvo de discriminação, de chacinas e até mesmo não ser considerado
humano. Diversos povos foram obrigados a abrir mão de suas línguas e de
sua cultura. Agora os povos indígenas voltam a afirmar sua identidade,
talvez porque as circunstâncias estejam mais amigáveis. Ou talvez porque
este grito não suporte mais ser calado.
Tratá-los
simplesmente como “índios” esconde a imensa diversidade cultural e
circunstâncias de vida tão distintas. Mas algo muito mais forte que as
diferenças étnicas propicia a união destes povos: o fato de se sentirem
diferentes de nós.
Temos no Brasil todos os tipos de
extremos: índios que possuem seu território assegurado e índios que
morrem lutando por seu território; índios brancos e índios negros;
índios cristãos e índios pajés; índios isolados e índios urbanos.
Os
povos indígenas isolados são aqueles que não estabeleceram contato
permanente com a população nacional e com o Estado. As informações sobre
eles são transmitidas por outros índios, por moradores da região e por
pesquisadores. A Funai (Fundação Nacional do Índio) tem cerca de 107
registros da presença de índios isolados em toda a Amazônia Legal, dos
quais 26 já foram confirmados e estão sendo monitorados, seja por
imagens de satélite, sobrevoos ou expedições na região. Não se sabe, no
entanto, a quantidade destes povos e indivíduos que vivem
voluntariamente isolados.
Muitos já tiveram alguma
experiência de contato não amistosa com garimpeiros, madeireiros,
grileiros e traficantes próximos à fronteira. Também é provável que
tenham tido ou mantenham contato com populações ribeirinhas,
seringueiros e, principalmente, com algum outro povo indígena.
Os
resultados do contato conosco são trágicos, a começar pelas doenças que
transmitimos, para as quais eles não têm imunidade: sarampo, rubéola,
caxumba, difteria, tétano, hepatite, gripe e outras. Conhecendo esta
realidade, estes povos que vivem em situação de isolamento escolheram
fugir. Isso não significa, no entanto, que eles não tenham notícias de
nossa sociedade. Eles observam rastros, utilizam ferramentas e se
relacionam com outros indígenas que contam as novidades do mundo do
branco.
Em outros tempos, como muitos devem se lembrar,
o órgão governamental indigenista, na época chamado SPI (Serviço de
Proteção aos Índios), deixava presentes como espelhos, panelas e
ferramentas para atrair os indígenas. Hoje a Funai busca garantir que
eles tenham seu território assegurado para transitarem livremente. Mas
as ameaças são muitas e cada vez mais seus territórios são menores.
Os
indígenas que vivem em áreas urbanas somam 324 mil, ou seja, 36% do
total da população indígena, um número que vem crescendo ano após ano
(IBGE, 2010). Há dois motivos recorrentes para que esses índios vivam em
áreas urbanas. Um deles é a migração dos territórios tradicionais em
busca de melhores condições de vida na cidade. O outro é que os limites
das cidades cada vez mais alcançam as fronteiras de seus territórios.
As
pessoas continuam acreditando que a população indígena está sendo
reduzida, mesmo que os números digam o contrário e que eles estejam mais
presentes nos centros urbanos. A desinformação tem uma consequência:
fingimos que os índios estão deixando de existir e gradualmente não
pensamos mais na situação deles. Assim fica mais fácil justificar nenhum
respeito a seus direitos e à sua própria vida.
Mentira nº 2: Os índios estão perdendo sua cultura
Esta afirmação resume uma série de outras ideias muito difundidas: “índio que usa celular não é mais índio”, e suas variáveis televisão, computador, calça jeans, tênis, rede de pesca, barco a motor, caminhonete, trator e etc.
De modo geral, cultura é o
conjunto de manifestações que inclui o conhecimento, a arte, as crenças,
a língua, a moral, os costumes, os comportamentos e todos os hábitos e
aptidões adquiridos por pessoas que fazem parte de uma sociedade
específica.
Sendo composta por diversos elementos, a
cultura está em constante transformação, se inter-relacionando de
diferentes formas com o ambiente, as circunstâncias, outras culturas e
consigo mesma. Logo, a cultura não é algo que se perde, é algo que se
transforma constantemente.
É certo, no entanto, que não
temos uma relação de troca cultural justa com os indígenas. Nossa
sociedade se caracteriza por termos uma cultura dominadora e impositiva.
O impacto do nosso modo de vida reflete diretamente na vida dos
indígenas, de forma que hoje já não há a mesma fartura e biodiversidade
que se tinha em 1500. O rio está contaminado por agrotóxicos, a floresta
foi derrubada e a quantidade de peixe e de caça foi drasticamente
reduzida.
Neste sentido, a incorporação de elementos de
outra cultura é também uma estratégia de resistência. O uso de
equipamentos de pesca dos “brancos”, por exemplo, pode ser um modo de
resistência cultural, num entendimento de que pescar é mais importante
para a identidade indígena do que se manter preso a técnicas
tradicionais e não chegar com o peixe em casa.
Uma das
maneiras de se fortalecer a tradição é inovar a partir de uma forte
referência tradicional. Um grupo de jovens Guarani Kaiowá nos dá um bom
exemplo de resistência cultural. O grupo de rap Brô MC’s é formado por
duas duplas de irmãos, e daí o nome “brô”, do inglês “brother”. Suas
rimas misturam português e guarani e denunciam o desmatamento ilegal, o
esquecimento e a perseguição que seu povo sofre por pressão do
agronegócio.
Outras vezes, objetos não-indígenas podem
ser inseridos na cultura indígena com um significado e uso completamente
diferentes do nosso, como garrafas plásticas cuidadosamente cortadas e
limadas para fazerem colares, à semelhança do que fazem há centenas de
anos com as lascas de caramujos. E outras vezes, por fim, eles podem
incorporar determinado elemento de outra cultura e nem por isso serem
“menos índios”, assim como comer sushi não nos torna japoneses, tomar
chimarrão não nos torna gaúchos e tomar banhos diários não nos torna
índios.
Nos assusta a velocidade com que alguns
indígenas incorporam elementos da nossa cultura no seu modo de vida. Mas
sabemos que as trocas entre povos sempre existiram. Se nos chama a
atenção ver um indígena ao celular, é porque não sabemos que o adorno
que ele utiliza em rituais de sua tradição há séculos podem ter sido
confeccionados por um outro povo e utilizados como moeda de troca. E por
que não?
Com que velocidade os Karajá incorporaram
elementos da cultura Tapirapé, e vice-versa? Com que velocidade os
brasileiros incorporam elementos da cultura norte-americana? Não existe
meios de medir precisamente as causas e os efeitos destas trocas
culturais.
Nossa sociedade não aceita que este sujeito
tão diferente de nós possa utilizar as mesmas tecnologias e bens de
consumo que utilizamos. Assim, ao mesmo tempo que vemos os indígenas
como inferiores por não terem desenvolvido as tecnologias que nos saltam
aos olhos, não aceitamos que ele desfrute das facilidades da vida
contemporânea. Como se tudo o que temos hoje fosse resultado apenas do
trabalho de homens brancos e para usufruto exclusivo de homens brancos.
Como se o progresso tecnológico e econômico não tivesse sido
impulsionado também pela tomada de territórios e riquezas que pertenciam
a esses índios.
Mas para que índio quer tecnologia?
Tenho visto indígenas vendendo artesanatos através do Facebook, trocando
e-mails com lojas que revendem suas produções, promovendo
abaixo-assinados para terem seus direitos respeitados, se comunicando
com parentes que ficaram na aldeia enquanto ele saiu para estudar na
cidade e namorando, como a gente.
O uso da fotografia
e, especialmente, a produção de vídeos, tem se destacado entre os povos
indígenas com a função de registrar a realidade, de encenar mitos e
histórias, de criar estórias e de mostrar para outros povos (indígenas
ou não) um pouco de sua cultura. As produções audiovisuais também têm
sido usadas como uma ferramenta de denúncia ao ataque de seus direitos.
Outro
equipamento que tem sido bastante útil é o GPS, que pode ser uma
ferramenta de vigilância e atuação conjunta com os órgãos responsáveis
pelo combate do garimpo, de madeireiras e de outras atividades ilícitas.
Mentira nº 3: Estão inventando índios, agora todo mundo pode ser índio
Se
a pessoa se reconhece como indígena e se identifica com um grupo de
pessoas que também se reconhecem como indígenas e a consideram indígena,
então ela é. Não existe nenhum reconhecimento da Funai, nenhum
julgamento de um não-indígena e nenhum critério imposto por nossa
sociedade que possa ser maior do que o seu sentimento e o sentimento da
coletividade a qual ela pertença.
Ela pode se
considerar indígena por uma questão genética e/ou cultural, mas não cabe
a nós e nem ao governo atribuir identidade a outra pessoa. A
autodeclaração é defendida também pela Convenção nº 169 sobre Povos
Indígenas e Tribais da Organização Internacional do Trabalho (OIT),
ratificada pelo Brasil em 2000.
Por isso, não tem
fundamento a ideia de que “sendo assim, todos os brasileiros seriam
indígenas, já que correm em nossas veias sangue indígena, daquela bisavó
que foi pega no laço”. Este discurso não viria de um indígena. Se o
cidadão diz isso querendo reduzir o direito de ser índio na atualidade, é
evidente que está se identificando muito mais com o bisavô estuprador
do que com a bisavó violentada.
Repare que a televisão,
por exemplo, se esforça em caricaturar os indígenas. Quando a TV mostra
aquele “indiozão” bonito da Amazônia, forte, guerreiro, caçador, todo
enfeitado de penas e muito bem pintado, o povo acha bonito de ver e até
acha que não existe mesmo racismo contra indígena. Mas quando a TV diz
que aquele é um índio, discretamente nega outras possibilidades de
índios.
Nega que existam índios sem penas e sem
pinturas, com jeans e celular. Nega aqueles que não têm mais arara em
seu território e por isso não usam cocar. Nega aqueles que têm cabelo
crespo porque os negros escravizados fugiram para sua aldeia e foram bem
recebidos como parceiros de resistência. Nega aqueles que vivem nas
cidades porque seus territórios foram invadidos, aqueles que vão para
Brasília protestar, etc.
Os índios são como são. Se
nossa sociedade tem dúvida se um indivíduo é índio, esta dúvida não
encontra recíproca por parte dele. Quem é índio sabe que é, porque tem a
vivência do seu povo e sente na pele o racismo.
Nossa
sociedade acredita que existe uma escala de quem é mais ou menos índio:
“vive em maloca? Tem cabelo liso? Sabe pescar? Usa celular? É rico?”.
Mas não é assim que funciona, não existe uma tabelinha para a gente
definir quem é e quem não é, quem é mais e quem é menos. Essa crença
evidencia o desejo oculto de querer que tenham menos índios, pois alguns
já estão “aculturados” e “integrados”.
A Convenção nº
169 da OIT garante a autodeterminação dos povos e o direito de que cada
população indígena ou tribal possa escolher seus próprios caminhos para o
futuro. Esse princípio consta ainda na Declaração das Nações Unidas
sobre os direitos dos povos indígenas.
O entendimento
de que os indígenas seriam assimilados até deixarem de existir já foi
superado na legislação, mas ainda precisa ser superado na sociedade.
Mentira nº 4: O Brasil é um país miscigenado, aqui não tem racismo
Racismo,
assim como machismo, é algo sutil. Às vezes ele aparece escancarado,
quando um sujeito chama um negro de “macaco”, quando uma mulher é
estuprada, quando se constata um salário menor para mulheres e negros do
que para homens brancos para fazerem exatamente o mesmo trabalho. Esse
racismo escancarado é muitas vezes (mas nem sempre) condenado pela
sociedade.
Mas nem tudo é preto no branco, racismo ou
não-racismo. Há infinitas combinações de cores, há infinitas formas de
demonstrar e de esconder o racismo e ainda assim julgar-se superior.
Com
indígenas é pior, porque a diferença não está só na cor da pele, no
tipo de cabelo e na classe social. Além de tudo isso, a diferença é
cultural e muitas vezes até linguística. Os indígenas são os brasileiros
mais ímpares e diferentes que compartilham o mesmo território que nós.
O
racismo pode aparecer em momentos leves, entre amigos. As pessoas
naturalizaram de uma tal forma o racismo contra indígenas, que não
percebem que jamais poderiam usar aquelas mesmas palavras para se
referir a qualquer outro grupo de pessoas. Nossa sociedade tem sido
muito conivente com o racismo contra indígenas, a despeito do que diz
nossa legislação.
Conforme a Constituição Federal e a
Lei nº 7.716/89, serão punidos os crimes de discriminação ou preconceito
contra raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, sendo o
crime de racismo inafiançável e imprescritível. No entanto, diariamente
os indígenas são discriminados e são raros os casos de denúncia e
condenação.
As redes sociais, por exemplo, estão
repletas de conteúdo racista. Em abril de 2014, a Justiça Federal
condenou um jornalista amapaense por cinco mensagens que utilizavam
expressões de desprezo se referindo aos índios Guarani Kaiowá. De acordo
com a decisão, o jornalista prestaria serviços comunitários na Casa de
Apoio à Saúde Indígena do Amapá (Casai) e pagaria seis salários mínimos
ao Conselho de Caciques de Oiapoque e à Associação dos Indígenas de
Wajãpi. A proposta é que, prestando serviços comunitários na Casai, o
jornalista conviva com indígenas e, conhecendo a realidade, passe a
respeitá-los. Tomara que sim.
Na esfera política os
discursos de ódio estão cada vez mais escancarados. O presidente da
Frente Parlamentar da Agropecuária, Deputado Federal Luís Carlos Heinze
(PP-RS), diversas vezes desqualificou publicamente quilombolas, índios,
gays e lésbicas. As urnas mostraram que a população o apoia: em 2014,
Heinze foi reeleito pela 5ª vez, como Deputado Federal do Rio Grande do
Sul, sendo o deputado mais votado do estado.
Os
discursos racistas atingem diretamente os indígenas. O relatório
Conflitos no Campo Brasil 2013, da Comissão Pastoral da Terra (CPT),
mostra que, das 1.266 ocorrências relacionadas ao conjunto dos conflitos
no campo no Brasil, 205 estão relacionadas a indígenas, totalizando
16%. A maior parte destes casos refere-se a conflitos por terra ou
retomada de territórios, somando 154 ocorrências.
Os
povos indígenas são os mais afetados pela violência no Brasil. Ainda
segundo o relatório Conflitos no Campo Brasil, em 2013, das 829 vítimas
de assassinatos, ameaças de morte, intimidações, tentativas de
assassinato e outras, 238 eram indígenas. Das 34 mortes por assassinato,
15 eram de indígenas. Eram também indígenas 10 das 15 vítimas de
tentativas de assassinato, e 33 das 241 pessoas ameaçadas de morte.
É
triste constatar que as mortes de indígenas no campo, as quais se
caracterizam como um verdadeiro genocídio, encontram uma referência no
discurso de figuras públicas e lideranças políticas, quase sempre
motivadas por interesses econômicos.
O racismo (assim
como o machismo) habita o imaginário social, paira sobre a sociedade
como um todo, e, consequentemente, sobre cada indivíduo. Como toda
ideia, ele é vivo, autônomo e se faz transparecer em ações e ideologias.
Um
dos modos que o racismo age é pela generalização, quando se nota algo
negativo de um indivíduo e se transfere essa questão ofensiva para o
povo todo. Utilizando um exemplo bem comum em cidades pequenas que
convivem com indígenas, imagine que alguém veja na rua um homem bêbado.
Se o homem não é indígena, comenta-se “este homem está bêbado”, mas se
ele for indígena o comentário é “os índios estão sempre bêbados”.
A
sociedade é racista, e mesmo que você não se considere racista, às
vezes ele pode escapar discretamente. Vigie seus atos, pensamentos,
sentimentos e se permita ver.
Mentira nº 5: Os índios têm muitos privilégios
Se
estivéssemos aqui falando de privilégios como desfrutar de uma vida em
meio à natureza, estaria tudo bem. Mas não, infelizmente este discurso
vem acompanhado da crença de que “índio recebe um salário do governo a
partir do momento que nasce”.
Pior do que ter tantas
pessoas acreditando nisso, é a surpresa que expressam quando descobrem
que não. “Não? Mas então, do que vivem?”. Parece impossível acreditar
que trabalham e que batalham pelo seu sustento. Ao contrário do que
tantos brasileiros acreditam, não existe muita vantagem em ser indígena
hoje em dia. Existe sim, muita coragem.
Em relação à
saúde, a diferença é que os indígenas são atendidos pela Sesai
(Secretaria Especial de Saúde Indígena), que é parte do mesmo SUS que
atende aos não-indígenas. Na teoria, essa distinção permite um olhar
diferenciado dos profissionais de saúde, considerando questões culturais
e atuando em consonância com as práticas de saúde tradicionais
indígenas. Na prática, como os nossos postos de saúde, alguns funcionam
bem, outros não. Faltam equipamentos, às vezes não têm remédios, faltam
profissionais especializados, etc. Falta percorrer um longo caminho.
Na
área da educação por muitos anos os indígenas estiveram expostos à
imposição de nossos valores e negação de sua identidade e cultura. Hoje o
Ministério da Educação é responsável por desenvolver uma educação
diferenciada, intercultural e bilíngue, dando espaço aos processos de
aprendizagem e aos conhecimentos indígenas. Além disso, os indígenas
podem elaborar seus próprios currículos e rotinas escolares com gestão
indígena. De acordo com o Ministério da Educação, a maioria dos
professores ainda são não-indígenas, totalizando 7.968, enquanto
professores indígenas somam 7.321. Na prática, como no ensino público
para não-indígenas, com exceção de alguns casos de sucesso, faltam
materiais didáticos específicos, alimentação (sendo que poucas vezes
esta é de fato diferenciada), infra-estrutura etc.
Quanto
aos benefícios sociais, indígenas são considerados pelo INSS “segurados
especiais” para fins de acesso ao salário maternidade, aposentadoria
por idade, auxílio doença, auxílio acidente, aposentadoria por
invalidez, pensão por morte e auxílio reclusão.
Segurados
especiais são os trabalhadores rurais que produzem em regime de
economia familiar, sem utilização de mão de obra assalariada. Além dos
indígenas, são considerados segurados especiais os agricultores, os
seringueiros e os pescadores artesanais. Os indígenas precisam comprovar
que sua subsistência advém do extrativismo, do plantio ou de outra
atividade vinculada à terra e aos recursos naturais. Ou seja, os
indígenas acessam estes benefícios não por serem indígenas, mas sim por
viverem de atividades rurais, pois se forem assalariados, deixam de ser
segurados especiais.
E, por fim, os indígenas possuem o direito de usufruir de seu território. As Terras Indígenas não
são
dos indígenas, são propriedade da União, terras públicas que pertencem a
toda a nação brasileira, cedidas aos índios em regime de posse
permanente e usufruto exclusivo. Ou seja, eles não têm a propriedade das
terras: ganham o direito de nelas residir e fazer uso das riquezas do
solo e das águas para a atual e as futuras gerações viverem.
Mentira nº 6: Os índios são tutelados, por isso índio não vai preso e não pode comprar bebida alcoólica
Essa
história é antiga e tem um fundo de verdade. Desde o período colonial
até o século passado, o Estado sempre considerou que os indígenas
deveriam ser integrados, ou seja, deveriam negar suas identidades em
nome de sua inserção à nação brasileira.
Esta concepção
foi perpetuada por séculos e virou “tutela” no Código Civil de 1916
(artigo 6º), que enquadrou os índios na categoria de relativamente
incapazes, condição semelhante à dos órfãos menores de idade no século
XIX.
O Estatuto do Índio (Lei n. 6.001/73) endossou o
regime de tutela, depois de separar categorias de índios em “isolados”,
em “vias de integração” e “integrados”, estabelecendo que o regime
tutelar se aplicaria aos índios ainda não integrados.
O
Estado tutor é aquele que decide pelos índios e os mantém sob controle.
Em nome desta “tutela”, o Estado brasileiro promoveu um verdadeiro
genocídio. A Comissão Nacional da Verdade, que investiga crimes
cometidos pelo governo ou agentes da ditadura militar, estima que
somente a construção de estradas na Amazônia, no governo do general
Médici (1969-1973), matou em torno de 8 mil índios.
Na
região do Araguaia, o povo Xavante de Marãiwatsédé entregou um relatório
de 71 páginas à Comissão Nacional da Verdade. Entre os crimes, estão a
invasão do território com a condescendência de autoridades, empresários e
poderes locais e nacionais.
A legislação só tomou um
rumo diferente em 1988, com a atual Constituição Federal Brasileira.
Nossa Constituição reconheceu e introduziu os direitos permanentes dos
índios, abandonando a ideia de que eles seriam assimilados à nossa
sociedade e endossando a ideia de que os índios são sujeitos presentes e
capazes de permanecer no futuro. Ela reconheceu ainda o direito dos
indígenas às suas terras e à cidadania plena. Esse avanço na legislação
indigenista foi uma conquista do movimento indígena.
O
Novo Código Civil Brasileiro (2002), em seu Art. 4º, diz que “a
capacidade dos índios será regulada por legislação especial”. Como essa
tal lei não existe, alguns podem acreditar que se trata do antigo
Estatuto do Índio, e daí se cai em contradição, já que o referido
Estatuto trata o índio como semi-incapaz.
O Estatuto do
Índio e suas ideias retrógradas nunca foram oficialmente revogados, mas
muitos especialistas acreditam que a Constituição Brasileira, como
nossa lei máxima, por si só já o revoga em relação à tutela. Porém,
muitos juristas, legisladores e a população brasileira ainda remetem ao
Estatuto do Índio para embasar decisões e discursos, valendo-se da
contradição das leis e provocando insegurança jurídica para os povos
indígenas.
Por isso, no entendimento da Funai e de
diversos especialistas, indígenas são tão cidadãos quanto nós, e podem
sim comprar bebidas alcoólicas fora das Terras Indígenas. Aliás, o
comerciante que não vendesse estaria cometendo um crime ao discriminar o
indígena, além de uma prática abusiva prevista no inciso IX do art. 39
do Código de Defesa do Consumidor.
Algumas instâncias
governamentais encontram amparo legal no Estatuto do Índio para proibir a
venda de bebidas alcoólicas para indígenas. O Artigo 58 desse Estatuto
estabelece que constitui crime “propiciar, por qualquer meio, a
aquisição, o uso e a disseminação de bebidas alcoólicas, nos grupos
tribais ou entre índios não integrados”.
Em relação à
criminalização, o Estatuto do Índio diz que a pena deve ser atenuada, e
“se possível, em regime especial de semiliberdade, no local de
funcionamento do órgão federal de assistência aos índios mais próximos
da habitação do condenado” (Art. 56).
A tutela em nada
tem a ver com a não-responsabilização do indivíduo por um crime que
praticou. Tem a ver com um julgamento diferenciado caso a questão se
relacione à sua prática cultural e à necessidade de um intérprete em seu
interrogatório, caso o indígena não tenha completo domínio da língua
portuguesa.
Em relação aos delitos, a lei para os
indígenas é a mesma que a nossa. Índios podem ser e são presos quando
roubam, quando praticam atos de violência, cometem assassinatos e por
todos os motivos que os não-indígenas são presos. São presos também
injustamente, para serem calados e oprimidos, para não serem cumpridos
seus direitos como no caso do Cacique Babau, que luta pelo seu
território e sofre continuamente perseguição das autoridades.
Mentira nº 7: Tem muita terra para pouco índio
Em
1978, o Estatuto do Índio ordenou ao Estado brasileiro a demarcação de
todas as terras indígenas até dezembro de 1978. Depois de dez anos, a
Constituição Brasileira reconheceu aos índios os “direitos originários
sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União
demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens” (Art. 231), e
estabeleceu o prazo de cinco anos para a demarcação de todas as Terras
Indígenas.
Quando a Constituição traz o termo “direitos
originários”, ela revela que este direito vem desde sempre, antecedendo
à própria Constituição. As demarcações são apenas reconhecimento desse
direito pré-existente. A noção de território não constitui apenas uma
relação de ocupação ou exploração, mas o fundamento da existência do
povo, pois somente em seu território é possível a prática plena de sua
cultura.
No entanto, até hoje o Estado se recusa a
cumprir sua obrigação e a cada dia crescem mais os interesses econômicos
sobre estas terras tradicionais. Não bastasse isso, muitas Terras
Indígenas são cada vez mais diretamente ou indiretamente afetadas por
grandes empreendimentos, monoculturas com uso abusivo de agrotóxicos,
mineradoras etc.
Enquanto os agentes destes grandes
poderes econômicos tentam barrar todos os processos de demarcações,
também dizem que é preciso modificar o procedimento de demarcação. O
Decreto 1.775/1996 detalha todo o procedimento, havendo um grupo técnico
especializado, coordenado por antropólogo, com a finalidade de realizar
estudos complementares de natureza etno-histórica, sociológica,
jurídica, cartográfica, ambiental e o levantamento fundiário necessários
à delimitação. Após passar por autorização da Funai, é aberto um prazo
para contestações e somente depois é feita a demarcação.
Os
ocupantes não-indígenas são indenizados tanto pelas benfeitorias quanto
pelos títulos de propriedade de boa fé. Além disso, os ocupantes
não-índios que atendem ao perfil da reforma agrária são reassentados, a
cargo do Incra.
As Terras Indígenas são inalienáveis e
indisponíveis, ou seja, os indígenas não podem efetuar nenhum negócio
jurídico que acarrete a transferência da titularidade de direitos sobre
estas terras, e nem mesmo permitir o beneficiamento de não-indígenas com
a exploração dos recursos naturais, pois o usufruto é exclusivos dos
indígenas.
O discurso anti-indígena tem como principal
argumento que as Terras Indígenas ocupam 13% do território nacional. Mas
os brasileiros não se dão conta da imensa área que os latifúndios
ocupam. O Brasil tem uma área de mais de 851 milhões de hectares.
Destes, mais de 318 milhões são ocupados por grandes propriedades,
totalizando 37% do território nacional.
A tabela abaixo
mostra a quantidade de propriedades, a soma da área que estas
propriedades ocupam e a porcentagem que esta área representa sobre o
território nacional. Para compreender melhor, consideramos que
“minifúndio” é o imóvel de área inferior a um módulo fiscal (Decreto nº
84.685/1980), “pequena propriedade” é o imóvel rural com área entre 1 e 4
módulos fiscais (Lei nº 8.629/1993) e “média propriedade” é o imóvel
rural com área superior a 4 módulos fiscais e até 15 módulos fiscais
(Lei nº 8.629/1993).
Não há definição legal para
“grande propriedade”, a qual, no entanto, passou a ser tida na prática
das políticas agrárias como o imóvel rural com área superior a 15
módulos fiscais.
Módulo fiscal é uma unidade de medida
corresponde à área mínima necessária a uma propriedade rural para que
sua exploração seja economicamente viável (Lei nº 6.746/1979). A
depender do município, um módulo fiscal varia de 5 a 110 hectares.
Proponho
agora um exercício de imaginação. Consideremos que estes 130 mil
proprietários vivam em suas grandes terras com suas famílias, e
imaginemos que cada lar tenha em média 3,3 moradores, a mesma média dos
lares brasileiros de acordo com o Censo Demográfico 2010.
Vamos
desconsiderar que, ainda segundo o Incra, 69 mil das grandes
propriedades, que equivalem a mais de 228 milhões hectares (40% da área
das grandes propriedades) são improdutivas. A maior parte destas pessoas
possuem outras fontes de renda, não produzem seus alimentos e não
possuem laços ancestrais com a terra. Muitas vezes os proprietários não
são pessoas, e sim empresas. Mas, por hora, deixemos estas questões de
lado e nos voltemos aos números, tratando igualmente a área indígena e a
de grandes proprietários.
Os indígenas, por sua vez, ocupam uma área de 106 milhões de hectares, sendo mais de 567 mil pessoas, conforme a tabela abaixo:
Ou
seja, os indígenas estão em um território quase 3 vezes menor que o
território das grandes propriedades, apesar de ser quase 4 vezes mais
populoso. E repare que não estão sendo contados aqui os indígenas que
vivem nas cidades, somente os que vivem em Terras Indígenas. Seria
preciso multiplicar em 37 vezes o número de proprietários no latifúndio
para ele se equivaler à área por pessoa em Terra Indígena. Portanto,
nota-se: temos no Brasil muita terra para poucos proprietários.
A
maior parte das terras indígenas está na Amazônia Legal, onde vive
cerca de 55% da população indígena no Brasil. Nas demais regiões do
país, principalmente nas regiões Nordeste, Sudeste e Sul, além do estado
do Mato Grosso do Sul, os povos indígenas conseguiram manter a posse em
áreas geralmente diminutas e esparsas, espremidos entre cidades e
fazendas, sem as condições mínimas necessárias para manter seu modo de
vida. É justamente nessas regiões que se verifica atualmente a maior
ocorrência de conflitos fundiários e disputas pela terra.
O
que está em jogo não é aquele pé de fruta que o avô plantou e onde ele
amarra sua rede. Não importa que ali estejam enterrados os seus
antepassados, que ali seja a morada de seus espíritos e do mundo
sagrado. O “desenvolvimento” vem como um trator atropelando tudo com
suas hidrelétricas, mineradoras, gados, sojas e milhos transgênicos. Os
índios amam o seu território. E muitos morrem porque os não-índios amam o
dinheiro.
Mentira nº 8: Os índios são preguiçosos e não gostam de trabalhar
Cá
entre nós, poucas pessoas verdadeiramente gostam muito de trabalhar. A
maioria trabalha porque precisa do dinheiro para pagar as contas, para
comprar comida, para comprar o celular e para comprar sempre e cada vez
mais tudo que possa surgir. Essa é a lógica das sociedades capitalistas:
ter cada vez mais, acumular e nunca estar satisfeito com o que tem.
A
lógica indígena, tradicionalmente, não se interessa em acumular, e sim
em desfrutar. Portanto, se antes do sol chegar ao alto do céu, o homem
já pescou peixe para a família toda se alimentar naquele dia, ele pode
voltar para casa e descansar, pois sua obrigação já foi cumprida.
Mas
espera aí… caçar, pescar, plantar, colher, manejar, construir sua casa,
fazer seu barco e fazer tudo mais que uma vida auto-subsistente
necessita não parece nada fácil. Imagine então que para realizar cada
uma destas tarefas é preciso muitas outras. Para fazer o barco, por
exemplo, é preciso entrar no mato, encontrar uma árvore de uma espécie
específica que esteja num bom tamanho e formato, derrubar a árvore,
tirar da floresta, cortar e moldar a madeira, queimar de um modo
específico com uma lenha específica, moldar novamente como o avô
ensinou, queimar de novo, e pronto, finalmente ele tem o barco para
pescar, resumidamente. Quem se habilita?
Durante
séculos os indígenas estiveram domesticando diversas espécies de plantas
que hoje consumimos, como o milho, um dos grãos mais produzidos no
mundo, e a mandioca, que os brasileiros tanto gostam. Estas plantas e
tantas outras, como feijões, abóboras, carás e tomates, não eram
encontradas na natureza como hoje as conhecemos. São o resultado de
muito trabalho indígena.
Superando esse preconceito,
vamos considerar que os indígenas também têm o direito de querer comprar
coisas que compramos, e, portanto, precisam de dinheiro. Algumas etnias
estão buscando meios de vida que integrem sua cultura a essa nova
necessidade.
É o caso do povo Paumari, que vive no
sudoeste do Amazonas e está sendo pioneiro no manejo de pirarucu. Há 5
anos eles fazem o manejo de 23 lagos, e no final de setembro de 2014
realizaram a pesca de 3.523 kg de pirarucu legalizados pelo Ibama. A
iniciativa é apoiada pelo projeto Raízes do Purus, realizado pela OPAN –
Operação Amazônia Nativa com o patrocínio da Petrobras.
Outro
exemplo de geração de renda aliado à sustentabilidade e à cultura vem
da etnia Kisêdjê, que habita a Terra Indígena Wawi, anexa ao Parque
Indígena do Xingu. Desde 2011 a comunidade participa de um projeto para
produção e comercialização de óleo de pequi. Em 2013 foram produzidos
170 litros do óleo na mini usina contruída na aldeia Ngohwêrê. O projeto
conta com o apoio técnico do ISA – Instituto Socioambiental e
financeiro e organizacional do Instituto Bacuri e do Grupo Rezek.
Mentira nº 9: Nossa sociedade é mais avançada, não temos nada para aprender com os índios
Todo
mundo sabe que a cultura brasileira tem influência indígena. Com eles
aprendemos diversas palavras, o respeito à natureza e o hábito de tomar
banho todos os dias, certo? No entanto, para cada elogio existe um
contraponto: “índio que fala português não é mais índio”, “antes índio
era inocente, agora índio só pensa em dinheiro” e a pior frase de todas:
“índio fede”.
Essa mentira é muito comum: “índio
fede”. Não, o que fede é o preconceito. Índio tem cheiro de óleo de
tucum, de urucum e jenipapo, tem cheiro de fogo feito em casa, de peixe
assado, de suor de quem trabalha, de banho de rio, de sabonete e de
perfume comprado em shopping.
Enchemos o peito para
dizer que o Brasil é um país lindo, rico em minérios, com uma
biodiversidade impressionante e com muita fartura de água. Mas seguimos
exaurindo os nossos recursos naturais perseguindo um desejo de
crescimento que parece nunca ter fim, como se os recursos naturais
fossem infinitos. Mas saibam, recursos naturais chegam ao fim.
Estamos
sacrificando nossa diversidade biológica e cultural para enriquecer
ainda mais quem já é rico. E os índios, que são o símbolo maior de uma
vida sustentável, que são os grandes conhecedores da biodiversidade
brasileira, tão pouco conhecida pelos cientistas, estão sendo
desprezados.
Enquanto se desmata incessantemente a
Amazônia e o Cerrado, desaparecem espécies de plantas que poderiam ser
utilizadas para tratar inúmeras doenças, conhecidas ou não. Enquanto se
pratica o genocídio e se mantém os indígenas como reféns do “progresso”,
infinitas possibilidades de conhecimento vão desaparecendo e os
brasileiros não se dão conta.
Mas fora do Brasil, há
quem esteja bem atento às nossas riquezas. Em 2013, quatro coreanos
foram presos em Canarana (MT) por biopirataria no Parque Indígena do
Xingu. Eles fizeram um acordo com os Kamaiurá, do Alto Xingu, e pagaram
para obter 10 quilos de raízes e plantas usadas pelos índios para fins
cosméticos. Os coreanos viviam nos Estados Unidos e um deles trabalhava
para uma empresa de cosméticos. O acesso aos recursos genéticos e
conhecimentos tradicionais, sua proteção e a repartição de benefícios
associados é regido pela Medida Provisória nº 2186/16, de 23 de agosto
2001.
E não se trata apenas de conhecimentos da
natureza, mas até mesmo de uma nova estrutura econômica e social, de um
novo jeito de fazer política, de tomar decisões, de olhar para nós
mesmos, para nossos semelhantes e para aqueles que são diferentes.
Ninguém quer ouvir as contribuições que o pensamento indígena pode
trazer.
O racismo é uma voz que sussurra ao ouvido
dizendo que os índios são mais “atrasados” que a gente. Como se o
“desenvolvimento” fosse uma linha única para toda a humanidade, como se
nossa sociedade fosse um exemplo a ser seguido. Já que nós gostamos
tanto de olhar para nosso umbigo, vejamos também o que o nosso
“desenvolvimento” tem gerado: produção de lixo, contaminação e
esgotamento de água, desigualdade social, violência e por aí vai…
Mentira nº 10: Os índios atrasam o desenvolvimento do País
Mesmo
que no mundo todo cada vez mais aumente a preocupação ambiental, o
Brasil continua com a mesma ideologia que balança no centro de nossa
bandeira, nossa palavra de ordem é o progresso.
Um
progresso desesperado, que não pode dar o tempo para fazer o estudo de
impacto ambiental, que não pode analisar as possibilidades de redução de
danos, um progresso que chega custe o que custar, e que agora, mais do
que nunca, quer explorar os recursos das Terras Indígenas.
O
principal aspecto a ser considerado é que os grandes donos do poder
econômico (os setores bancário, armamentista, minerário, farmacêutico,
da construção civil, do agronegócio etc.) possuem interesse em divulgar
uma imagem negativa dos indígenas. As grandes corporações tomaram conta
da arena política e querem a qualquer custo convencer a nação de que “é
preciso crescer e os índios atrasam o desenvolvimento do País”. Na
lógica deles é mais importante plantar soja para a China do que
preservar as nascentes brasileiras.
O cenário que se
apresenta hoje aos povos indígenas é pior do que o do índio que avistou
Cabral em 1500. A partir de 2015, teremos o Congresso mais conservador
desde 1964, e especialmente, mais anti-indígena. Foram eleitos 273
deputados federais e senadores considerados ruralistas, o que representa
um aumento de 33% em relação à legislatura atual, que conta com 205
ruralistas. Várias investidas avarentas da bancada ruralista ganharão
força, como a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215/2000, a PEC
237, o Projeto de Lei (PL) 1.610, o PL 227/2012 e a Portaria 303, de
iniciativa da Advocacia Geral da União (AGU).
Estas
iniciativas tratam de temas como demarcação de Terras Indígenas, posse
indireta de Terras Indígenas a produtores rurais na forma de concessão e
exploração e aproveitamento de recursos naturais em Terras Indígenas
(minérios, recursos hídricos, florestais, etc.), independe de consulta
às comunidades afetadas. Além de irem contra a legislação vigente e
preceitos universais, elas são cruelmente orquestradas para que se
perpetue no país o ódio aos indígenas.
Mas se engana quem pensa que os indígenas assistem a isso calados. Os últimos anos foram anos de luta. Em maio de 2014, povos indígenas de todo o país reuniram-se em Brasília para a Mobilização Nacional Indígena, com atos e manifestações contra os ataques aos seus direitos garantidos pela Constituição Federal. E seguem lutando diariamente.
Mas se engana quem pensa que os indígenas assistem a isso calados. Os últimos anos foram anos de luta. Em maio de 2014, povos indígenas de todo o país reuniram-se em Brasília para a Mobilização Nacional Indígena, com atos e manifestações contra os ataques aos seus direitos garantidos pela Constituição Federal. E seguem lutando diariamente.
Os indígenas têm
o direito de viverem em seus territórios. Já temos no país muitas
terras para a criação de gado e o plantio de monoculturas, concentrada
nas mãos de poucas pessoas. Desenvolvimento é bom, mas de qualquer
jeito, não. Não podemos admitir um desenvolvimento que desrespeite leis,
culturas e provoque mais desigualdade social.
Os
indígenas devem poder escolher se desejam se beneficiar do
desenvolvimento e de que forma, ou se preferem nem se envolver. Mas eles
não podem continuar sendo desrespeitados em nome do interesse
econômico.
Não precisamos de um crescimento
desrespeitoso, realizado sem estudos de impacto ambiental, social e
cultural. Tampouco necessitamos da malícia de políticos e da mídia.
Precisamos sim tirar a venda dos olhos e enxergar o índio realmente,
pois são mentiras e preconceitos que atrasam a evolução humana.
O
desenvolvimento deve ser bom para todos. A paz entre os povos, já
prevista em nossa Constituição Federal, deve ir além da diplomacia e
incluir os que vivem em solo pátrio.
Tenhamos amor!
*Lilian Brandt é antropóloga e colaboradora da AXA.
Fonte: Revista Fórum
Nenhum comentário:
Postar um comentário