sábado, 22 de outubro de 2016

O falso dilema da religião versus ciência








Por esses dias li um artigo jornalístico com o título: “efeitos da meditação estão cientificamente comprovados”. Noutra ocasião vi outro dizendo: “Cientistas comprovam a reencarnação humana”... Outros ainda debatem se a homeopatia, se a psicanálise, se a parapsicologia e tantos outros saberes são ciências ou não... Até se discute a “comprovação científica do criacionismo” e muitos embarcam na polêmica de colocar a ciência contra a religião...
Mas o que é ciência? Segundo o renomado cientista Newton Freire-Maia, nem os próprios cientistas tem um consenso. Sabem sim que a ciência stricto sensu compreende, grosso modo, “um conjunto de definições, interpretações, teorias, modelos, entre outros, adquiridos por meio de uma metodologia específica (denominada ‘científica’), e visando ao conhecimento de uma parcela da realidade”. Assim, se não usar essa metodologia, não é ciência, e ponto.
Bom, então quem define qual é o “método científico”? Resposta: os cientistas. E quem decide o que é e o que não é ciência? R: O consenso da opinião dos cientistas. Quando uma boa parcela dos cientistas resolve que algo já é ciência, então é.
Muitos sentem pesar ou se ofendem quando alguém lhes afirma: isso ou aquilo não é ‘comprovado cientificamente’. Ocorre que muitas coisas relevantes e valiosas não são ciência. Religiões não são ciência, obviamente. A parapsicologia e a ufologia tampouco. A literatura não é ciência, a música não é ciência (as artes em geral não são), nem a filosofia é ciência... Você já parou prá pensar em quantas coisas maravilhosas não são ciência? E que bom que não são! Nem por isso, estamos perdendo algo por tudo isso não ser ciência.
Outro equívoco é pensar que ciência seja sinônimo de verdade. A história da ciência já nos ensinou que a ciência não encontrará a verdade ‘nua e crua’. Outro grande cientista e filósofo do século XX, K. Pooper, esclarece que a ciência é a procura da verossimilhança (daquilo que parece ser verdade). A ciência lida basicamente com conceitos probabilísticos de verdade. Mesmo as teorias -meninas dos olhos da ciência- não são descrições objetivas da realidade.
Teorias, portanto, podem ser apoiadas em fatos -e assim serem boas teorias- mas é só. Teorias vão, com o tempo e com o surgir de novos aportes tecnológicos, sendo substituídas por outras descrições ou modelos explicativos da realidade mensurável.
Mas ao menos podemos dizer que há somente fatores científicos na ciência, não é? Também não. Fatores culturais não científicos como o religioso, o econômico, o político, a nacionalidade e a autoridade, influenciam no desenvolvimento e na aceitação de teorias científicas. Enfim, a ciência não é neutra.
Por isso, não esperemos por provas científicas da existência de Deus, de Jesus, do criacionismo, do êxtase dos santos ou comprovações do samadhi da meditação oriental. Não é para isso que existe a ciência. 
Já vai ficando claro que ela está colocada num plano epistemológico distinto da religião, não?
Seu objeto de estudo é específico, qual seja, o fenômeno mensurável. Distintamente, a religião possui outra metodologia, outros axiomas e propósitos, tendo como objeto de contemplação e apreciação, o imensurável, o não verificável em laboratório...
Por que então alimentar um falso dilema? São saberes distintos, cada qual com sua finalidade própria. Então, vamos combinar: podemos ser religiosos e cientistas ao mesmo tempo, mas não cair na tentação de misturar uma epistemologia com a outra, certo?
Ninguém se torna mais crente ou menos ateu porque a ciência corroborou crenças desta ou daquela religião. Ninguém é mais ou menos ético porque a ciência assim o comprovou e assegurou. O ser humano é complexo: muitas culturas, muitos saberes, necessidades de distintas ordens (físicas, psíquicas e espirituais). Nossa fé e nossa razão devem caminhar juntas, sem que uma precise atropelar a outra.


Silvio Motta Maximino – palestrante e professor de filosofia e antropologia 


publicado no Jornal da Cidade - pág.  02 no dia 22/10/2016
 

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