Rede de ONGs ensina a deter corrupção enquanto é tempo
Sem alarde, Observatórios Sociais se alastram por cidades médias e pequenas do Brasil, monitorando editais de licitação de forma sistemática, antevendo fraudes e garantindo vultosa economia para os cofres municipais. E agora querem pôr o pé nas principais metrópoles do país
Há dois caminhos para combater a corrupção. Um deles é o de punir os malfeitos — e todos sabem como é difícil obter condenações no Brasil, e mais ainda reaver os valores desviados. O outro caminho é o da prevenção, o de se antecipar aos corruptos. É a isso que se dedica o Observatório Social do Brasil (OSB), uma rede de ONGs que se alastrou por 14 estados. O ponto de partida é a constatação de que boa parte das fraudes pode ser adivinhada nas entrelinhas das licitações. Basta ter acesso à papelada, o olho treinado e (muita) paciência para desenredar suas tramas. O mesmo método evita que erros que não envolvem má fé, mas saem caro para o contribuinte, sejam cometidos. Em 2012, a OSB conseguiu impedir que 305 milhões de reais escoassem dos cofres municipais.
Enquanto
os processos se arrastavam na Justiça, um grupo de moradores indignados
resolveu, em vez de vandalizar as lojas da cidade ou incendiar
caminhões, organizar um sistema de fiscalização do poder público que
prevenisse futuras tramoias. O marco zero é 2005. Naquele ano, a
prefeitura lançou um edital para a compra de 2.918.000 comprimidos para
dor de cabeça. Na licitação, foi fixado o valor de 0,009 centavos por
drágea. Na hora do empenho, "esqueceram" um zero, e o preço saiu por
0,09. Esse singelo "descuido" teria então o efeito de multiplicar por
dez o gasto total (de 26.262 mil reais para 262.620 mil reais). Revelada
a trapalhada, o processo foi suspenso.
A
experiência em Maringá deu tão certo que começou a ser reproduzida por
outras cidades. Com o tempo, ganhou um amplo leque de apoios
institucionais: Ministério Público, OAB, Federações da Indústria e do
Comércio, Receita Federal, Tribunais de Contas, universidades e,
principalmente, as Associações Comerciais, que abrigam 70% dos
Observatórios Sociais (OS). Atualmente, 77 municípios contam com seus
próprios observatórios. Na próxima segunda-feira, Curitiba sedia o
quarto encontro nacional, para que as boas práticas de cada unidade
sejam compartilhadas pelas demais.
"Depois que roubam..."
– O empresário Ater Cristofoli, de 49 anos, dirigiu a primeira réplica do Observatório, em Campo Mourão, no interior do Paraná, onde nasceu e hoje mantém fábricas, uma fundação, escola técnica e incubadora. "A gente se tocou que, enquanto fazia rifa, vendia jantar e colhia doações para ajudar a Santa Casa, o Lar dos Velhinhos ou a APAE, milhares de reais eram jogados fora em compras mal feitas ou desvios", diz. "E o grande negócio está na prevenção. Depois que roubam... aí esquece." Com a entrada em cena do Observatório Social, os custos com material escolar caíram para um terço, e o gasto com medicamentos, pela metade. Cristofoli hoje está à frente da organização nacional dos Observatórios Sociais, e seu objetivo é acelerar a irradiação da franquia.
Basicamente,
os Observatórios Sociais funcionam assim: um punhado de técnicos,
voluntários e estagiários debruça-se sobre os editais das principais
modalidades de licitação (concorrência, convite, tomada de preços e
pregões), com especial atenção aos casos em que o governo a descarta
(inexigibilidade ou dispensa de licitação); encontrada uma suspeita, a
secretaria ou a prefeitura é formalmente notificada; não havendo
providências, o caso é reportado aos vereadores (que têm, a propósito, o
dever constitucional de fiscalizar a administração municipal); se nada
funcionar, recorre-se então ao Ministério Público e ao Tribunal de
Contas. "Mas em geral você liquida o caso logo na primeira etapa", conta
Cristofoli. "É muita exposição. Quando a gente pega uma irregularidade,
é que está muito evidente."
O
roteiro básico dos Observatórios Sociais se completa com a divulgação
dos editais, para aumentar a concorrência, a presença nos pregões, para
apontar os lances suspeitos, e o acompanhamento das entregas, para
garantir que os contratos sejam efetivamente cumpridos. "O efeito
psicológico é muito grande", diz José Roberto de Jesus, do OS de Rolim
de Moura (RO). A entidade entrou em operação em 2009, seguindo um
roteiro comum: antes de abrir as portas, azeitou o trânsito com o
Ministério Público e arrancou, na campanha municipal de 2008, o
compromisso público dos candidatos com a iniciativa. Já no primeiro ano,
a cidade conseguiu reduzir o custo de várias compras: cálices de
plástico baixaram de 12,90 reais em 2008 para 1,05 a unidade;
anticoagulante, de 47 reais para 17,50 reais; papel para impressora, de
15 reais para 1,92 reais.
Metrópoles no alvo – A
economia para os cofres públicos vai bem além das miudezas. A partir da
análise de 378 licitações, Itajaí (Santa Catarina) conseguiu salvar do
desperdício ou da corrupção 29 milhões de reais em 2012. Em São José
(também em SC), a revogação de um único edital — para exploração do
serviço de estacionamento rotativo — evitou desembolsos que somariam 15
milhões de reais ao longo de dez anos. "O grau de confiança dos
observatórios é muito grande. Eles têm conhecimento técnico para
verificar os documentos", diz o promotor Davi do Espírito Santo,
coordenador do Centro de Apoio Operacional da Moralidade Administrativa.
Em 2013, o MP de Santa Catarina formalizou uma parceria com OSs do
estado. São duas frentes. Por uma delas, os OS vão ajudar a verificar se
as administrações municipais estão cumprindo a lei de acesso de
informação efetivamente. Na outra frente, as ONGs farão chegar aos
promotores as denúncias de editais viciados.
Segundo
Espírito Santo, uma das razões da credibilidade dos observatórios é seu
caráter técnico. "Não são denúncias movidas por partidarismo ou
vingança", diz. Para manter este perfil, os observatórios não aceitam
militantes entre seus 1.500 voluntários nem funcionários dos órgãos que
eventualmente serão fiscalizados. "O foco é a gestão, não o prefeito",
diz Roberto de Jesus.
Esta
neutralidade política tem se mostrado um empecilho para a implantação
dos Observatórios Sociais nas grandes metrópoles, onde a agenda dos
partidos, governo e oposição exerce maior influência sobre as entidades
que costumam prestar auxílio aos escritórios. "Nas cidades de pequeno ou
médio porte, a experiência tem funcionado muito bem. Mas ainda não
sabemos lidar com cidade grande", admite Cristofoli.
Em
São Paulo, a iniciativa está sendo gestada com apoio do sindicato dos
auditores-fiscais da Receita Federal. Para além da questão política,
Luiz Fuchs, vice-presidente do Sindifisco em São Paulo, aponta o tamanho
da cidade como o principal desafio. Por exemplo: o orçamento da cidade
aprovado para 2013 foi de 42,1 bilhões, quase cinquenta vezes o de
Maringá, de 870 milhões. Fuchs explica que ainda está em estudo a melhor
estratégia para enfrentar as contas municipais, se por região ou
subprefeitura, por exemplo.
Má gestão – O
monitoramento sistemático das contas eleva o debate sobre a qualidade
do gasto público. Em junho de 2013, por exemplo, a Câmara de Ponta
Grossa licitou a compra de sete veículos. Exigências: freio a disco nas
quatro rodas, faróis de neblina, vidros elétricos nas quatro portas,
aparelho de MP3 e câmbio automático. Total orçado: 311.184,60 reais. Os
números vieram a público, e pipocaram as críticas. Os vereadores então
baixaram as exigências, e o custo final da compra saiu por 198.800
reais, uma economia de 112.384,60 reais.
Às
vezes nem se trata de corrupção. É má gestão, mesmo. Depois dos casos
dos comprimidos, os maringaenses descobriram, por exemplo, que a cidade
mantinha estocados cadernos de desenho em quantidade suficiente para os
próximos 24 anos, carbono preto para 62 anos e pincéis marcadores para
133 anos. Em resposta à revelação desses e de outros absurdos, a
prefeitura promoveu a organização de um almoxarifado central e a
informatização do controle de estoques. "Hoje temos uma execução
orçamentária mais racional", diz a presidente do Observatório Social de
Maringá, Fábia dos Santos Sacco. "Não está perfeito. Mas avançamos
bastante."
Itajaí (SC)
O
observatório de Itajaí é um dos mais ativos do país. Seus números
ilustram a capacidade dos OSs para proteger os cofres públicos. De 2009 a
2012, a entidade monitorou 1160 processos licitatórios, evitando
desperdícios que somam 151.689.141,86 reais. O OS busca fiscalizar todo
tipo de licitação. No ano passado, foram acompanhados 203 pregões
presenciais (economia de 13.559.432,79 reais), 38 editais da modalidade
convite (economia de 376.524,31 reais), 29 tomadas de preços (economia
de 2.483.087,39 reais), 6 concorrências (economia de 12.249.223,62
reais) e 7 pregões eletrônicos (economia de 246.375,20 reais). Total no
ano: 29 milhões de reais.
Maringá (PR)
O
observatório de Maringá é o primeiro do país e serviu de inspiração
para todos os demais. Seu primeiro grande caso, em 2005, foi um edital
para compra de 2.918.000 comprimidos antiinflamatórios. Na licitação,
fixou-se o valor de 0,009 centavos a drágea. No empenho, um zero
"sumiu", e ficou 0,09. Com isso, o gasto total pularia de 26.262 mil
reais para 262.620 mil reais. Revelada a trapalhada, o processo foi
suspenso.
Londrina (PR)
Em
Londrina, o Observatório conseguiu em 2010 a impugnação de um edital de
53,4 milhões de reais para terceirização da gestão do sistema de
iluminação pública. Entre diversas irregularidades, a equipe apontou:
inexistência de projeto básico e executivo; integração irregular de
diversos serviços acessórios e até incompatíveis; ilegalidade do prazo
para execução; inexistência de cotação para formação do preço; etc.
Segundo estimativas da entidade, o custo do serviço saltaria de
aproximadamente 100 mil reais por ao mês para 450 mil reais por mês.
Vícios similares foram encontrados em editais lançados para o mesmo
serviço por outras cidades do estado.
Rolim de Moura (RO)
Logo no primeiro ano de atuação do OS de Rolim de Moura, em 2009, houve uma substancial redução de custos das compras feitas em pregões. Cálices de plástico adquiridos em 2008 por 12,90 reais saíram por 1,05 real em 2009; Papel para impressora baixou de 15 reais para 1,92 real. Soro controle patológico foi de 80 reais para 28 reais; Anticoagulante, de 47 reais para 17,50 reais; Corante, de 61,50 reais para 26,40 reais. Para garantir que os contratos sejam efetivamente cumpridos, a equipe do OS também acompanha a entrega das compras.
Logo no primeiro ano de atuação do OS de Rolim de Moura, em 2009, houve uma substancial redução de custos das compras feitas em pregões. Cálices de plástico adquiridos em 2008 por 12,90 reais saíram por 1,05 real em 2009; Papel para impressora baixou de 15 reais para 1,92 real. Soro controle patológico foi de 80 reais para 28 reais; Anticoagulante, de 47 reais para 17,50 reais; Corante, de 61,50 reais para 26,40 reais. Para garantir que os contratos sejam efetivamente cumpridos, a equipe do OS também acompanha a entrega das compras.
Ponta Grossa (PR)
Em
junho de 2013, a Câmara de Ponta Grossa lançou um edital para a compra
de sete carros, exigindo um modelo sedan motor 2.0 e seis hatch 1.6,
todos com freio a disco nas quatro rodas, faróis de neblina, vidros
elétricos, aparelho MP3 e câmbio automático. Custo total: 311.184,60. A
licitação veio a público, e os pontagrossenses não gostaram: acharam
excessivo. Um novo edital foi lançado, baixando as exigências: sete
automóveis hatch motor 1.0, sem a necessidade de câmbio automático,
farol de neblina ou MP3. Em julho, foi feito o pregão. Custo total: R$
198.800,00, economia de R$ 112.384,60. Além disso, tramita na casa outro
processo de licitação para a compra de rastreadores, para que o uso dos
veículos também seja fiscalizado.
São José (SC)
Em
2012, o observatório apontou 11 indícios de irregularidades em edital
para conceder à iniciativa privada a exploração de vagas de
estacionamento rotativo na cidade, entre eles a suspeita de
direcionamento da licitação. A concessão, por dez anos, previa a
arrecadação de 15 milhões de reais. O caso foi levado primeiro à
prefeitura e depois à Câmara Municipal, sem que fossem prestadas as
devidas explicações. Diante disso, o OS recorreu ao Tribunal de Contas
de Santa Catarina, que mandou suspender o processo para uma análise
detalhada do caso. Confirmadas as irregularidades, o município revogou a
concorrência.
Por Daniel Jelin
Via Revista
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