Ou "A absoluta e flagrante inconstitucionalidade da nova resolução do TSE".
E
começa tudo de novo. A população foi às ruas pedir a derrubada da PEC
37. O Congresso, assustado, por unanimidade atendeu aos apelos do povo.
Pois não é que o TSE resolveu repristinar a discussão, por um caminho
mais simples, uma Resolução?
Para quem não sabe, explico:
pela Resolução 23.396/2013, o Ministério Público e também a Polícia de
todo o Brasil não podem, de ofício, abrir investigação nas próximas
eleições. É isso mesmo que o leitor leu. Segundo a nova Resolução – que,
pasmem, tem data, porque vale só para 2014 – somente poderá haver
investigação se a Justiça Eleitoral autorizar.
Então o TSE é Parlamento? Pode
ele produzir leis que interfiram no poder investigatório da Polícia e
do Ministério Público? Não acham os brasileiros que, desta vez, o TSE
foi longe demais?
O Presidente do TSE, ministro
Marco Aurélio, votou contra a tal Resolução, afirmando que "o sistema
para instauração de inquéritos não provém do Código Eleitoral, mas sim
do Código Penal, não cabendo afastar essa competência da Polícia Federal
e do Ministério Público". Bingo! Nada mais precisaria ser dito.
O presidente da Associação
Nacional dos Procuradores da República, Alexandre Camanho, afirmou que a
medida é inconstitucional: "Se o MP pode investigar, então ele pode
requisitar à polícia que o faça. Isso também é parte da investigação",
afirmou.
Veja-se que a Resolução
desagrada inclusive aos juízes (ou a um significativo setor da
magistratura). Como diz o juiz Marlon Reis, do Movimento de Combate à
Corrupção Eleitoral (MCCE), a decisão é equivocada e pode trazer
prejuízo à apuração de irregularidades nas eleições deste ano, verbis:
"O Ministério Público precisa de liberdade para agir e deve ter poder
de requisição de inquéritos. Assim é em todo o âmbito da justiça
criminal e da apuração de abusos. Não faz sentido que isso seja
diminuído em matéria eleitoral. Pelo contrário, os poderes deveriam ser
ampliados, porque o MP atua justamente como fiscal da aplicação da lei".
Na visão do magistrado, a
regra introduzida pelo TSE este ano é inconstitucional, pois "cria uma
limitação ao MP que a Constituição não prevê". "O MP tem poderes para
requisitar inquéritos, inclusive exerce a função de controle externo da
atividade policial. Entendo que só com uma alteração constitucional se
poderia suprimir esses poderes", explica. E eu acrescento: aliás, foi
por isso que a PEC 37 foi rejeitada no Parlamento, porque é matéria
constitucional.
A quem interessa essa limitação?Nosso
país é estranho e surreal. Avança de um lado, por vezes... e logo
depois dá um salto para trás. Pergunto: em que a investigação de oficio –
aliás, é para isso que existe o MP e a Polícia, pois não? – prejudicam o
combate à corrupção eleitoral? Em quê?
Todos os dias Delegados e membros do Ministério Público investigam, sponte sua,
crime dos mais variados em todo o território. A pergunta é: por que os
crimes eleitorais seriam diferentes? No que? Por que mexe com políticos
poderosos? O argumento do TSE não convence ninguém. Aliás, irônica e
paradoxalmente, não convenceu nem seu Presidente, Min. Marco Aurélio.
Espera-se que o STF declare inconstitucional essa medida. Na verdade,
com tudo o que já se escreveu e discutiu sobre o combate à corrupção,
investigação da polícia, MP, etc, até o porteiro do Supremo Tribunal já
está apto a declarar inconstitucional a tal Resolução.
Numa palavra: O que fazer com o
artigo 365 do Código Eleitoral? Uma Resolução vale mais do que uma Lei?
E os Códigos Penal e de Processo Penal? Valem menos do que uma
Resolução de um órgão do Poder Judiciário? Pode uma Resolução alterar
prerrogativas constitucionais de uma Instituição como o Ministério
Público?
Uma pergunta a mais: valendo a
Resolução, o MP toma conhecimento de um crime e “pede” ao juiz para que
autoriza a investigação... Suponha-se que o Juiz não queira ou entenda
que não há motivo para a investigação. Faz-se o que? Recorre? Só que, na
dinâmica de terrae brasilis, em que os feitos não andam, se arrastam, a real investigação que tinha que ser feita vai para as calendas. Eis o busílisda questão. Todo o poder concentrado no Juiz Eleitoral. É isso que se quer dizer com a palavra “transparência”?
Mais: qual é diferença de um
crime de corrupção não-eleitoral com um de corrupção eleitoral? Por qual
razão o indivíduo que comete crime eleitoral tem mais garantias – é o
que parece querer ter em mente o TSE – que o outro que comete crime
“comum”? Um patuleu comete um furto e qualquer escrivão, por ordem do
Delegado, abre inquérito contra ele; mas se comete crime eleitoral... há
que pedir autorização judicial.[1] A
pergunta fatal, para o bem e para o mal: não teria que ser assim em
todos os crimes? Ou quem comete crime eleitoral possui privilégios
sistêmicos? Não temos que tratar todos do mesmo modo em uma democracia?
Falta de coerência, integridade legislativa, prognose e violação da UntermassverbotPoderia
ser mais sofisticado e dizer, ainda, que a Resolução, ao “datar” um
tipo de procedimento investigativo (só para 2014, diferenciando-o das
eleições anteriores), é inconstitucional por aquilo que Dworkin chama de
“lei de conveniência”, porque carecedora do elemento da coerência e da
integridade legislativa. Mais ainda, a Resolução é inconstitucional
porque ausente qualquer prognose. E se sabe que, hoje, é possível
discutir a inconstitucionalidade a partir da falta de prognose. Em que,
por exemplo, o processo eleitoral será mais limpo se se proibir a
Polícia e o Ministério Público de investigarem sponte sua? Isso me parece irrespondível.
Ademais, também é
inconstitucional a Resolução, levando em conta a falta de coerência,
integridade e prognose, porque viola o princípio da proibição de
proteção insuficiente (deficiente), chamada deUntermassverbot, já
havendo precedente desse tipo de aplicação no Supremo Tribunal Federal.
Ou seja, ao fazer a alteração, o TSE está protegendo de forma
insuficiente/deficiente bens jurídicos fundamentais, como a moralidade
das eleições, isso para dizer o mínimo. Ao proibir o MP e a Polícia de
instaurarem investigações, o Judiciário (TSE) protege “de menos” a
sociedade, porque dificulta o combate à criminalidade eleitoral.
De todo modo, como um otimista metodológico que sou – como sabem, sou da filosofia do “como se” (é como se [al sob]
o Brasil pudesse dar certo) – penso que não é necessário dedicar tantas
energias nessa Resolução que já nasceu morta. O Brasil se pretende
sério. O povo quer que o país seja sério. Quer eleições com menos
corrupção. Não me parece que o juiz saiba mais sobre abertura de
inquérito que o Delegado e o membro do Ministério Público. Aliás, juiz
julga. Polícia e Ministério Público investigam. Se o juiz já julga
antes, para saber se é caso ou não de investigação – e não se diga que
isto não é ato de pré-julgamento” - já está quebrado o sistema
acusatório. Bingo! Mais um argumento que aponta para a
inconstitucionalidade da Resolução.
Na verdade, parece que querem
matar no cansaço a comunidade jurídica com esse tipo de discussão. Todos
os dias surgem novas coisas para nos assustar. De um lado, o próprio
STF aponta com quatro votos para a inconstitucionalidade de um modelo de
doação de campanhas sem que a própria Constituição dê qualquer “dica”
sobre qual o modelo a ser seguido. De outro, agora, o Tribunal Superior
Eleitoral ingressa no cenário para proibir que a Polícia e o Ministério
Público abram investigações de ofício naquilo que deve ser mais caro à
cidadania: o-direito-fundamental-a- termos-eleições-limpas.
Tristes trópicos, diria
Claude-Lévi Strauss (o antropólogo e não o das calças jeans). Ou, como
diria o Conselheiro Acácio, personagem de Eça de Queiroz: as
consequências vem sempre depois.
A pergunta é: Dá para esperar?
[1] Alguém
poderá argumentar: Mas a passagem pela “mão” do Juiz é apenas uma
questão de burocracia, porque o art. 6º da Resolução diz que “Recebida
a notícia-crime, o Juiz Eleitoral a encaminhará ao Ministério Público
Eleitoral ou, quando necessário, à polícia, com requisição para
instauração de inquérito policial (Código Eleitoral, art. 356, § 1°)”.
Mas, pergunta-se: Então a Resolução teria sido feita para isso? O Juiz é
um repassador de notícia-crime? Mas isso um estagiário pode(ria) fazer,
pois não? Mas, daí vem outra pergunta: Por que o outro dispositivo
(Art. 8º) diz que “O inquérito policial eleitoral somente será
instaurado mediante determinação da Justiça Eleitoral”? Eis o busílis da questão!
Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine oFacebook.
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