Estado, Cidadania e Controle Social
Refletir sobre a
origem, a legitimidade e a função do Estado é fundamental para o cidadão que
vive em qualquer regime político, ainda mais se ele viver em uma democracia.
Afinal, enquanto cidadão, cada um de nós brasileiros é compulsoriamente
convocado a eleger representantes políticos (do vereador ao presidente), a pagar
tributos (e não poucos) e, de modo geral, a arcar com o ônus gerado por um
número gigantesco de leis, que só aumentam diariamente...
Mas, por que é mesmo
que fazemos tudo isso?
É de fato necessário
participarmos da vida política de nossa cidade ou país?
É realmente
importante ou imprescindível pagar tributos e cumprir as leis?
Por que não podemos
simplesmente nos omitir da política? Afinal, se vivemos em uma democracia, não
deveríamos ter o direito de fazer o que queremos?
Por que simplesmente
não posso desobedecer àquelas leis que entendo serem prejudiciais ou
desinteressantes para mim?
Por que não posso sonegar
impostos, já que o Estado é geralmente corrupto e péssimo prestador de serviços?
Por que não podemos simplesmente
abrir mão do Estado e voltar às formas primordiais de vida social? O Estado é
realmente imprescindível?
Não seríamos mais felizes e livres sem o Estado, como
creem os anarquistas?
As pessoas seriam realmente capazes de viver felizes em
comunidades autogovernadas, sem hierarquia e autoridades, sem propriedade privada
e sem a exploração do trabalho?
Parece que a
complexidade da vida social produziu, já há muito tempo, a necessidade de alguma
estrutura que fosse capaz de administrar os inumeráveis e complexos conflitos
de interesses gerados pelo convívio entre sujeitos ou entre as comunidades. Tais
conflitos parecem não se resolver de forma “natural” ou espontaneamente. A
aparente carência de recursos impeliu e impele uns contra os outros, gera
disputa pela posse de certos bens econômicos de interesse coletivo. Como
conciliar os desejos, as vontades, as ambições e necessidades básicas de todos
ao mesmo tempo?
O Estado parece ter surgido
só muito recentemente na história da humanidade. Muitas são as possíveis causas
aventadas: crescimento demográfico, pressões ambientais, carência de recursos,
vulnerabilidade das comunidades humanas, desenvolvimento e complexidade
crescente das relações humanas, seja no nível econômico, seja no nível político
ou simbólico. Note que, em comunidades ágrafas (que desconhecem a escrita),
onde há uma maior homogeneidade cultural, o Estado é ausente, muito embora haja
divisão de tarefas, diversificação dos papéis sociais, conflitos intertribais e
todas as noções básicas de território. As causas desse complexo fenômeno social
conhecido como Estado ainda são enigmáticas para a ciência dos antropólogos e
sociólogos.
Possíveis causas para a existência do Estado
Alguns filósofos e
cientistas políticos (fins do século XIX) argumentaram que o advento da
propriedade privada, a divisão das tarefas sociais e o acúmulo de riquezas nas
mãos de poucas pessoas representaram o marco inicial para o surgimento das
primeiras estruturas pré-estatais (que muito mais tarde se transmutariam e
resultariam nos Estados Modernos, como os conhecemos, a partir do séc. XVI até
hoje). Neste sentido, o Estado passa a ser considerado a expressão política da
luta econômico-social das classes sociais, camuflada e reprimida pelo aparato
da “ordem (jurídica) e da força pública (policial e militar)”. Segundo Marx, a propriedade
privada não é um direito natural e o Estado não é resultado de um contrato
social. O liberalismo político e econômico do Estado Moderno seriam a expressão
definidora do Estado como garantidor do direito de propriedade privada e, para
tanto, reduziria a cidadania aos direitos dos proprietários privados. Assim, a
partir dos conflitos entre proprietários privados dos meios de produção e das contradições
entre eles e os não-proprietários (escravos, servos, trabalhadores livres)
surge a instituição do Estado.
Outros pensadores e
pesquisadores, conhecidos como “contratualistas”, atribuíram a origem do Estado
a uma combinação de pelo menos dois fatores: a necessidade de autoproteção dos
agrupamentos humanos e a vontade daqueles grupos de criarem um mecanismo para
efetivar aquela proteção desejada. Neste caso, há aqueles estudiosos que partem
do princípio de que o ser humano é naturalmente egoísta, violento e cobiçoso.
Partindo dessa ideia, chegaram à conclusão de que seria imprescindível abrir
mão de sua liberdade (ou de parte dela), renunciando a alguns direitos, a fim
de evitar que tais comunidades ficassem vulneráveis à aniquilação. Nesta linha de pensamento, temos o filósofo
inglês Thomas Hobbes (séc XVII), que acreditava ser o Homem “o lobo do próprio Homem”.
O estado natural do ser humano seria o ‘estado de guerra’. Sendo assim, o
Estado, representado na pessoa do governante absoluto, seria o instrumento
necessário para se evitar a aniquilação da nossa própria espécie.
O homem, por
natureza, é egoísta, pois quer fazer apenas o que é do seu interesse, sem levar
em consideração os anseios dos outros. Devido a isso, quando há choques de
interesses entre esses indivíduos, surgem os conflitos interpessoais, já que
“os dois desejam a mesma coisa, ao mesmo tempo, que é impossível ela ser gozada
por ambos, eles se tornam inimigos” (HOBBES, 1979, p.74).
Não tão radical assim,
tivemos quase na mesma época, o pensador John Locke, que não acreditava que tal
‘contrato tácito’ implicava renúncia à liberdade, mas sim uma delegação de certas
tarefas ao governante (representante do Estado), que seria um tipo de
“procurador” das vontades dos seus governados. Dentre as tarefas do governante,
estaria aquela de assegurar a proteção da comunidade, fosse contra forças hostis
da natureza, fosse contra outros grupos humanos.
Por outro lado, o
contratualista francês Jean J. Rosseau (séc. XVIII), adotando concepção
otimista em relação à natureza humana, procurou demonstrar que o ser humano em
estado natural não era egoísta nem violento. O que o tornava assim era
justamente a corrupção gerada pela vida artificial que ele tinha no interior das
cidades. Sendo o indivíduo humano dotado de liberdade e pureza de sentimentos e
intenções, deveria ser educado desde muito jovem para fortalecer sua natureza
original, antes mesmo de ter qualquer contato com o restante da sociedade. Só assim,
a injustiça e a violência não seriam capazes de corrompê-lo, pois teria acesso
a uma educação humanista de qualidade, bucólica e voltada para a felicidade
humana, por meio do estudo e da compreensão prática das sábias leis naturais. Em
resumo, para contratualistas, de modo geral, o Estado se revelaria um bem ou um
mal necessário, detentor do monopólio da violência e do controle relativo dos poderes
político e econômico. Concentraria em si a força necessária para controlar os
instintos humanos (fossem eles naturalmente nocivos ou simplesmente desvirtuados).
O Estado faria a gestão dos conflitos de interesse, defenderia o cidadão que
cumprisse seu papel e repreenderia severa e proporcionalmente os que ameaçassem
o “contrato social”. Por conta disso, estaria legitimado para exigir os
tributos e restringir a liberdade dos cidadãos em geral, já que sua presença,
ora conciliadora, ora repressora, mostrar-se-ia absolutamente necessária para
evitar o caos e a destruição do nosso “modo de vida civilizado”, escolhido
tacitamente por cada um de nós.
Assim, o anseio pela ordem
e pela segurança em substituição ao primordial estado de caos e insegurança, e
a promessa de garantia dos pressupostos direitos à vida, à liberdade, dentre
outros, fizeram surgir os pressupostos legitimadores da existência do Estado.
Hegel é um filósofo
que tenta explicar a gênese do Estado moderno sem recorrer à teoria do direito natural
e do contrato social: o isolamento dos indivíduos na família e as lutas dos
interesses privados na sociedade civil são superados pelo advento do Estado que
transformaria a família e absorveria a sociedade numa totalidade racional, superando
as limitações dos pequenos grupos no intuito de exprimir o interesse e a
vontade gerais.
Contudo, não é raro ontem
e hoje, que crises socioeconômicas geradas a partir de diversos modelos politicoeconômicos
desastrosos acabem na descrença do Estado como estrutura capaz de promover a
proteção social para que todos vivam com dignidade. Os organismos estatais que deveriam cumprir o
papel de administrar os problemas e necessidades sociais (combate ao desemprego
e à pobreza, segurança e saúde públicas, mobilidade urbana e interurbana, educação
pública, saneamento básico etc) constantemente têm falhado nessa missão. As
correntes políticas da Esquerda em geral denunciam que isso ocorre
propositadamente, pois tal é a lógica perversa e criminosa do capitalismo. Nesse
contexto, o Estado teria como propósito fundamental gerir e garantir os interesses
e privilégios da elite, mantendo submissas, por meio de seu poder de polícia, as
massas humanas exploradas. Então, quanto mais despolitizadas e ideologicamente
manipuladas, mais facilmente poderiam ser exploradas. A pobreza e a miséria seriam
condições intrínsecas ao modelo econômico que sustenta esse tipo do Estado. Já,
as correntes da Direita, desprezando tal argumento, elegem a tecnocracia e a
meritocracia como alicerces do ‘Estado eficiente’. Nesta tese, um Estado só fracassa
em sua missão de promover ‘progresso e desenvolvimento’ quando ‘mal gerenciado’,
quando intervém politicamente nas regras do Mercado, violando assim um frágil e
suposto ‘equilíbrio entre forças produtivas e especulativas’. Assim, respeitadas
tais forças, fracasso ou sucesso emergiriam invariavelmente como resultantes do
próprio esforço e mérito pessoal de cada cidadão.
Assim, esquerditas ou
direitistas, culparão geralmente, este ou aquele regime político em particular,
este ou aquele partido político, esta ou aquela pessoa. De um lado, novos políticos
defendendo velhas ideias de um Estado enxuto, leve e ágil, com ênfase no papel
regulador do mercado; de outro, os defensores de um Estado intervencionista, desde
que em jogo o bem comum. Por estes tempos, batizados de pós-modernidade, a
frustração e o saudosismo tomam conta de alguns, enquanto ideologias oportunistas
de extrema direita ou de extrema esquerda tomam conta de outros. Em síntese, alguns
juram crer que a causa das mazelas sociais está no “excesso de democracia”; outros,
que tal causa jaz no sistema econômico fincado no direito à propriedade privada
e tantos outros professam que só um Estado Mínimo poderia assegurar os direitos
das minorias e dos grupos marginais do sistema. Após passarmos o século XX
inteiro discutindo tais temas, a conclusão a que podemos chegar é que jamais
encontraremos soluções duradouras discutindo questiúnculas meramente técnicas ou
partidárias, seja de Direita, seja de Esquerda. Ambas vendem produtos utópicos que
não podem entregar aos seus compradores, senão apenas para aqueles pequenos grupos
que se acercam dos mesmos detentores provisórios do poder político e econômico.
Desde o advento do
Estado Moderno, as iniciativas necessárias para que os cidadãos tenham acesso aos
serviços retro mencionados foram gradualmente sendo transferidas para o Estado,
o que por outro lado e de certo modo contribuiu para enfraquecer a
solidariedade entre os indivíduos e para desestimular as interações horizontais
(das quais também tanto sentimos falta). Cada vez mais um número maior de
pessoas passa a depender menos uns dos outros e mais dos serviços do Estado. Ao
mesmo tempo, a responsabilidade individual de controlar o Estado foi sendo cada
vez mais relativizada, enfatizando um tipo de controle realizado pelo próprio
Estado, por intermédio dos agentes políticos vinculados a ele (eleitos,
nomeados ou concursados), que atuam em instituições estatais criadas para este
fim, quais sejam: as controladorias, corregedorias, ouvidorias, ministérios
públicos, tribunais de contas e outros.
Contudo, na prática
vemos que somente tais instrumentos não são suficientes. Em uma democracia,
para auxiliar no aperfeiçoamento daqueles serviços estatais existem os chamados
‘instrumentos de controle social’, os quais estão nas mãos da própria
comunidade, quando organizada politicamente. Não estão nas mãos dela, quando se
comporta passivamente. Aí então, os velhacos da política se apoderam também
destes instrumentos e os manipulam com todos aqueles interesses óbvios sobre os
quais torna-se desnecessário discorrer.
É fato incontestável
que o Estado como ‘provedor universal do
bem comum’ não tem se revelado eficiente. Há uma constante tensão em todos
os Estados modernos: embora o problema seja generalizado, nos países do
Terceiro Mundo é mais fácil notar como as instituições e organismos estatais
desprezam quase constantemente a vulnerabilidade de determinados segmentos, como
os idosos, os deficientes, as crianças e adolescentes, as mulheres e as minorias
étnicas. Tais grupos, hoje mais do que nunca, passam a exigir, ainda que de modo
incipiente, o seu reconhecimento enquanto ‘diferentes’, enquanto sujeitos de
direitos. Como diz o sociólogo Boaventura Souza Santos, "temos direito a reivindicar a igualdade sempre
que a diferença nos inferioriza e temos direito de reivindicar a diferença
sempre que a igualdade nos descaracteriza". Eis um bom tema para
pensar, uma boa tese para discutir e uma boa política para aplicar.
Em nossa atual
sociedade brasileira, o principal problema não é a ausência de instrumentos de
controle social do Estado, mas sim a ausência de sujeitos de direito que
efetivamente assumam essa posição atuem no pleno exercício das prerrogativas
que possuem. Ainda não estamos culturalmente educados para viver plenamente a
democracia.
É preciso levar em
consideração os recursos disponíveis aos cidadãos. Eles estão preparados
politicamente para exigir de modo eficaz todos os serviços e garantias que o
Estado deveria proporcionar?
Em geral, o que o
cidadão brasileiro sabe sobre o exercício dos direitos que possui? O Estado
preocupou-se em educá-lo para vivenciar e praticar a democracia?
A democracia
A democracia não é apenas uma forma de organização
do poder, mas implica também na disposição de participação dos cidadãos nos
espaços públicos concretos e/ou virtuais. Tais espaços são o palco para a
mobilização cívica, para as manifestações contra a desigualdade e segregação
urbana. Os interesses dos cidadãos politicamente organizados podem se expressar
em diferentes formas de organização pacífica: sindicatos, associações, partidos,
ONGs.
A
democracia republicana nos remete à ideia da separação do público em relação ao
privado. Essa noção parece ainda não ter sido incorporada na cultura ou no
imaginário popular brasileiro, nem tampouco no discurso dos políticos em geral.
A ‘coisa pública’ é desavergonhadamente desvirtuada e tratada como ‘coisa
privada’, como patrimônio próprio. Cargos e funções públicas são constantemente
utilizados para atender a demandas pessoais ou para privilegiar o acesso grupos
específicos aos recursos públicos, constantemente tratados como se não tivessem
dono. O descaso ou a violência contra o patrimônio público, a apropriação dos
recursos ou dos espaços públicos, a ausência de educação para a cidadania,
tanto de funcionários como dos usuários, a apatia política, são
exemplos de questões urgentes em nossa sociedade.
Há urgência de
mudança de comportamento por parte dos cidadãos, no sentido de se colocarem
dispostos a monitorar as instituições estatais. O cidadão comum parece ignorar
que os desvios de finalidade dos recursos públicos podem ser prevenidos,
evitados ou, em último caso, submetidos a processo judicial, ressarcimento do
erário etc. Nossa democracia traz implícita a ideia de que podemos relacionar
cidadania e controle social.
Ora, democracia não é
apenas um regime que implica em saber usar a urna no dia de eleição. Cabe em
tese, ao Estado, organizar-se para que os cidadãos sejam educados para o
exercício pleno da democracia participativa. Em um
regime democrático, cabe também aos cidadãos, buscar informarem-se e exercerem o
controle efetivo dos gastos públicos e das ações de seus representantes políticos.
Isso, contudo, é utopia. Como essas duas condições se concretizariam se o
Estado se reduz a mero ‘instrumento’ político-partidário para a consecução do
poder político e para a manutenção de certo grupo neste poder? Como a utopia se
materializaria sem um projeto de educação para a cidadania que municie o
cidadão de informação e o capacite ao engajamento ou à mobilização?
Assim, é importantíssimo
que cidadãos se organizem para promover a possibilidade de se exercer plenamente
a cidadania. Cabe ao Estado, abrir colocar a Escola, principalmente a Escola
Pública, como instrumento para tal
fim. Acreditamos na Escola e em seu
papel difusor e transformador da cultura local, regional ou nacional. É esse fim
que anima professores, diretores ou dirigentes que ocupam cargos ou funções dentro
desta instituição. A Universidade deve estar envolvida. Ela tem como uma de
suas principais funções, promover a pesquisa e a transformação social.
É urgente
que cada cidadão de direito se torne efetivamente um cidadão de fato,
informando-se, preparando-se e por fim capacitando outros, disseminando as
informações que recebeu, para que todos nos tornemos cidadãos plenos, cidadãos
completos. Conforme cada um de nós vá fazendo sua parte, estaremos não apenas prevenindo
a corrupção, mas também favorecendo a aplicação correta e transparente dos recursos
públicos e contribuindo de fato para uma sociedade melhor e mais justa.
O professor
envolve, estimula, potencializa o aluno. O aluno envolve, estimula e
potencializa seus pais, amigos, dentre outros. Conhecendo amplamente como se organiza
politicamente o Estado, quais seus fundamentos garantidores do exercício de algum
tipo de controle social, recebendo orientações práticas sobre como participar
efetivamente dos destinos da sua comunidade, aos poucos vamos abandonando a ‘cultura
do cidadão passivo’ para nos tornarmos sujeitos ativos e artífices conscientes do
bem-estar de nossa coletividade.
Silvio Motta Maximino
Referências
bibliográficas principais:
BATRA, Cidadania Consciente no Regime
Democrático. Org(s). Silvio Motta Maximino e Luciano Olavo da Silva. Bauru:
Edite, 2012.
HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado
eclesiástico e civil. Trad. João Paulo Monteiro e Maria Beatriz
Nizza da Silva. 2ªed. São Paulo: Abril Cultural, 1979. (coleção Os pensadores)
CHAUÍ,
Marilena. Convite a Filosofia. Cap.
10. São Paulo: Ática, 2000.
REALE, G., ANTISERI, D. História
da filosofia. vol.5. Petrópolis: Vozes, 2006
SIERRA, Vânia Morales. Artigo Crise das Representações e o Déficit de
Urbanidade, Doutora em Sociologia -Iuperj, disponível em http://www.achegas.net/numero/vinteequatro/vania_sierra_24.htm
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