Ninguém
discute o fato de que é natural ter desejo e que ele tem um papel motivacional
em nossa vida.
Mas há uma diferença crucial entre as profundas aspirações que temos ao longo da nossa vida e o desejo, que não é mais do que uma avidez, um tormento, uma obsessão.
O desejo pode assumir formas infinitamente variadas: podemos desejar um copo de água fresca, alguém que amamos, um momento de paz, a felicidade alheia; podemos também desejar a nossa própria morte.
O desejo tanto pode nutrir a nossa existência quanto envenená-la.
Mas há uma diferença crucial entre as profundas aspirações que temos ao longo da nossa vida e o desejo, que não é mais do que uma avidez, um tormento, uma obsessão.
O desejo pode assumir formas infinitamente variadas: podemos desejar um copo de água fresca, alguém que amamos, um momento de paz, a felicidade alheia; podemos também desejar a nossa própria morte.
O desejo tanto pode nutrir a nossa existência quanto envenená-la.
Ele
também pode se expandir, liberar-se, aprofundar-se e até transformar-se em uma
aspiração: a de fazer de si mesmo um ser humano melhor, de trabalhar pelo bem
dos outros e atingir o despertar espiritual. É importante, assim, estabelecer
uma distinção entre o desejo, que é essencialmente uma força cega, e a
aspiração, que é precedida por uma motivação e por uma atitude. Se essa
motivação é ampla e altruísta, pode ser fonte das maiores qualidades e
realizações humanas. Se é estreita e egocêntrica, alimenta as intermináveis
preocupações da vida cotidiana, que se seguem uma às outras como ondas, desde o
nascimento até a morte, não trazendo nenhuma garantia de satisfação profunda.
Quando essa motivação é negativa, pode dar livre curso a destruições
devastadoras.
Por
mais natural que seja, o desejo rapidamente se degenera em “veneno mental”,
assim que se transforma em um imperativo, uma obsessão ou um apego
incontrolável. Um desejo como esse é tão mais frustrante e alienador quanto
mais estiver em desacordo com a realidade. Quando estamos obcecados por uma
coisa ou pessoa, nós construímos erroneamente uma imagem como se ela fosse cem
por cento desejável e possuí-la ou desfrutá-la tornar-se uma necessidade
absoluta. A avidez não causa apenas tormentos e angústias; essa posse, ou
poderíamos até dizer essa “possessão” daquilo que desejamos, em qualquer
situação, só pode ser precária, momentânea, e está sob constante ameaça. É
também ilusória, no sentido de que em última análise temos muito pouco controle
sobre aquilo que pensamos possuir. Como ensinou o Buda: “Vítima do desejo, como
um macaco na floresta, você salta de galho em galho sem jamais encontrar uma
fruta, e de vida sem jamais encontrar a paz”.
Os
desejos apresentam diferentes graus de duração e intensidade. Um desejo menor,
como o de tomar uma xícara de chá ou um bom banho quente, pode, na maior parte
das vezes, ser satisfeito com facilidade, sendo frustrado apenas se as
condições externas forem muito contrárias. Há ainda desejos como o de ser
aprovado em um exame, comprar um carro ou uma casa, quando a realização pode
apresentar algumas dificuldades possíveis de vencer pela perseverança e
engenhosidade. Finalmente, existe um nível mais básico de desejo, como o de
construir uma família, ser feliz na companhia de alguém que escolhemos ou
trabalhar com algo de que gostamos.
Realizar
esses desejos requer muito tempo, e a quantidade de vida gerada por eles
depende tanto das nossas aspirações mais profundas quanto da orientação que
pretendemos dar à nossa vida. Queremos que as nossas ações tragam felicidade
para a nossa vida ou só buscamos ganhar dinheiro e conseguir um certo status na
sociedade? Estabelecemos com nosso cônjuge uma relação de posse ou de
reciprocidade altruísta? Qualquer que seja a nossa escolha, participamos todos
os dias e em qualquer lugar da dinâmica do desejo.
Em
nossos dias, o desejo nunca para de ser alimentado e amplificado pela imprensa,
pelo cinema, pela literatura e pela publicidade. Ele nos faz dependentes da
intensidade das nossas emoções, por nos conduzir apenas a satisfações de curta
duração. Não temos, por outro lado, nem mesmo tempo de avaliar a medida da
frustração que nos advém de todos os desejos irrealizáveis, porque outras
solicitações logo chegam para substituí-los; distraídos, deixamos sempre para
depois esse exame, como também as ações que poderiam nos trazer um sentimento
de plenitude digno desse nome. E o carrossel continua a girar.
Conheci
em Hong Kong alguns desses jovens leões do mercado financeiro, que dormem no
chão do escritório em sacos de dormir para poder acordar no meio da noite e,
ligados nos computadores, “pegar” a Bolsa de Nova Iorque antes do fechamento.
Também eles, à sua maneira, tentam ser felizes, mas sem muito sucesso. Um deles
me confidenciou que vai para a praia uma ou dias vezes por ano e fica olhando
para o mar, quase surpreendido, vendo como é belo. Nesses momentos acaba
refletindo: “Como é estranha a minha vida… e, no entanto, lá vou eu de novo na
segunda-feira de manhã”. Falta de senso de prioridade? Falta de coragem?
Ficamos grudados na imagem refletida da ilusão, sem usar o tempo livre que nos
resta para permitir que, das profundezas mais abissais de nós mesmos, surja a
questão: “O que eu realmente quero da minha vida?” Uma vez que tenhamos obtidos
uma resposta, sempre haverá tempo para pensar sobre como conseguir o que se
quer. Mas não é triste e trágico abafar essa questão?
O desejo alienante
O
budismo não recomenda a abolição dos desejos simples nem das aspirações
essenciais, mas a obtenção da liberdade no que tange aos desejos
escravizadores, aqueles que nos trazem uma multidão de tormentos inúteis. O
desejo de alimentar-se quando se tem fome, a aspiração de trabalhar pela paz do
mundo, a sede de conhecimento, o desejo de partilhar a nossa vida com os entes
queridos, o ânimo que nos incita à liberação do sofrimento: desde que esses
desejos não sejam matizados pela avidez e não exijam que obtenhamos aquilo que
não pode ser obtido, todos eles podem contribuir para a nossa satisfação
profunda.
Quando
temos uma coisa, queremos uma segunda, e depois uma terceira, e assim por
diante. Como terminará isso? Só a derrota ou o cansaço podem fazer cessar,
momentaneamente, essa sede de posses, de sensações ou de poder.
Os mecanismos do desejo
A
sede de sensações prazerosas é fácil de instalar-se na mente, já que o prazer é
obsequioso, amável e está sempre pronto a oferecer-nos os seus serviços. Ele é
atraente, inspira confiança e com algumas imagens convincentes consegue afastar
qualquer hesitação.
O
que deveríamos temer em uma oferta tão tentadora? Nada é mais fácil do que
tomar o caminho do prazer. Mas a exultação desses primeiros passos dura pouco e
logo dá lugar à decepção de nossas expectativas ingênuas e ao sentimento de
solidão que acompanha a saciedade dos sentidos. Os prazeres, uma vez
satisfeitos, não permanecem, não são acumuláveis, não se conservam e não
frutificam: eles desaparecem. Não é nada realista esperar que algum dia eles
nos tragam uma felicidade duradoura.
Arthur
Schopenhauer, o grande filósofo pessimista, declarou:
“Todo
desejo nasce de uma falta, de um estado ou uma condição que não nos satisfazem;
portanto, enquanto não for satisfeito, ele é sofrimento. Mas nenhuma satisfação
é duradoura; ao contrário, sempre é apenas um ponto de partida para novos
desejos. Em todo lugar, vemos desejos sendo frustrados e impedidos de se
realizar, de diversas maneiras; por toda parte vemos pessoas lutando por eles,
e assim eles sempre aparecem como sofrimento. Não há término para o esforço,
não há medida e não há fim para o sofrimento.”
Essa
afirmação é verdadeira, mas incompleta. Ela parte do princípio de que não
podemos escapar do desejo e do sofrimento por ele perpetuado. Para superar essa
condição, precisamos saber como o desejo é criado.
A
primeira constatação é de que todo desejo apaixonado (não estamos falando aqui
de sensações primárias como a fome ou a sede) é precedido por um sentimento e
uma representação mental. A formação dessa imagem pode ser desencadeada por um
objeto exterior (uma forma, um som, uma textura, um cheiro ou um gosto) ou
interior (uma memória ou um devaneio). Mesmo que sejamos influenciados por
tendências latentes, e mesmo que o desejo – primariamente sexual – esteja
inscrito na nossa constituição física, ele não pode se expressar sem uma
representação mensal. Ele pode ser voluntário ou, aparentemente, se impor sobre
a nossa imaginação; pode se formar lentamente ou tão rápido quanto a luz,
sub-reptícia ou abertamente; mas a representação sempre precede o desejo ativo,
porque o seu objeto deve se refletir nos nosso pensamentos.
Por
influência do desejo, consideramos uma dada pessoa como inerentemente desejável
e vemos suas qualidades de maneira exagerada, enquanto minimizamos seus
defeitos. “O desejo embeleza os objetos sobre os quais pousa suas asas de
fogo”, escreveu Anatole France. Não podemos desejar uma sensação se não a
considerarmos agradável. Compreender esse processo nos ajuda a acelerar o
diálogo interior que nos permitirá superar o desejo aflitivo.
Esse
ponto de vista do budismo é próximo àquele apresentado pelas ciências
cognitivas. Segundo Aaron Beck, as emoções são sempre geradas pela cognição e
não o contrário. Pensar em uma pessoa atraente dá origem ao desejo, pensar no
perigo gera o medo, pensar em uma perda provoca tristeza e pensar que um limite
foi transgredido desencadeia a raiva. Quando sentimos uma dessas emoções, não é
muito difícil reconstituir o encadeamento de pensamentos que conduziu a ela.
Por
sua parte, Seligman afirma: “Há trinta anos, a revolução trazida pela
psicologia cognitiva derrubou ao mesmo tempo Freud e os behavioristas, pelo
menos nos meios acadêmicos [...]. Segundo a teoria freudiana clássica, com
efeito, são as emoções que determinam o conteúdo dos pensamentos.” Este último
ponto de vista talvez seja correto nos casos das crises emocionais que, à
primeira vista, nos parecem irracionais; nas crises de angústia agudas; ou nas
fobias graves que são a expressão de fixações formadas no passado. Isso não
diminui o fato de que essas tendências resultem de uma acumulação de imagens e
de pensamentos.
Geralmente,
uma vez que o desejo começou a se estabelecer na mente por meio das imagens
mentais a ele ligadas, ou nós o satisfazemos ou o reprimimos. O primeiro caso
representa uma capitulação do autocontrole; o segundo, desencadeia um conflito.
O conflito interior criado pela repressão é sempre uma fonte de tormento. Há a
opção de entregar-se ao desejo. É como dizer: “Por que tornar tudo tão
complicado? Vamos satisfazer o desejo e não se fala mais nisso.”
O
problema é que nós nunca vamos nos satisfazer: essa satisfação é um mero
adiamento de novos desejos. As imagens mentais vão sendo criadas pelo desejo e
ressurgem com rapidez. Quanto mais satisfazemos os nossos desejos, mais essas
imagens se multiplicam, nos invadem e aprisionam. Quanto mais água salgada
bebemos, mais sedentos ficamos. O repetido reforço das imagens mentais leva à
adição e à dependência, tanto mental quanto física. Quando chegamos a esse
ponto, a experiência do desejo e sentida mais como escravidão do que como
prazer. Perdemos a nossa liberdade.
Outro
exemplo clássico é o da coceira. Queremos instintivamente aliviá-la,
coçando-nos. Esse coçar é certamente agradável no instante em que o fazemos, as
a coceira não tarda a voltar, mais irresistível do que nunca, e acabamos por
voltar a nos coçar – até sangrar. Confundimos coçar com curar. Quando decidimos
não nos coçar mais, apesar do forte anseio que persiste, não é porque a vontade
não esteja presente, mas porque aprendemos com a experiência que isso leva à
dor e que se deixarmos acalmar o fogo da coceira, o tormento logo passará. Não
se trata de uma repressão doentia, nem de uma questão de moral ou de
princípios, mas de uma ação inteligente em que preferimos um bem-estar durável
à alternância entre alívio e dor. Trata-se de uma medida prática, baseada na
análise e no bom senso. O filósofo budista indiano do século II, Nagarjuna,
resume esse processo: “É bom coçar-se quando vem a coceira, mas é melhor quando
ela não vem. É bom satisfazermos os nossos desejos, mas é melhor quando estamos
livres deles”. O principal obstáculo a essa liberdade é nossa resistência a
toda forma de mudança interior que acarrete esforço. Preferimos declarar,
corajosamente: “Quanto a mim, escolhi me coçar”.
É
possível tornar-se mais atento à maneira como se formam as imagens mentais e
adquirir a compreensão, e depois o controle, sobre a evolução dessas imagens. A
repressão (ou a satisfação) só acontecerá quando a intensidade do desejo
tornar-se tal que seria doloroso insistir em não realizá-lo. Mas no caso em que
as imagens mentais se formam e se desfazem naturalmente, não há nem
intensificação nem repressão do desejo. No capítulo dedicado aos antídotos,
examinamos diversos métodos ou técnicas para conservar a liberdade quando ele
está presente, sem, no entanto, reprimi-lo. À medida que a força das imagens
mentais diminui, não nos submetemos mais ao desejo, e isso pode ocorrer sem que
tenhamos que lançar mão da menor atitude repressiva. As poucas imagens que
ainda surgirem não são mais do que centelhas fugidias no espaço da mente.
Do desejo à obsessão
O
desejo obsessivo que costuma acompanhar o amor apaixonado deturpa a afeição, a
ternura e a alegria de apreciar e compartilhar a vida com alguém. Ele é o
oposto do amor altruísta. Surge de um egocentrismo doentio que acarinha a si
mesmo no outro ou, ainda pior, busca construir a própria felicidade às expensas
do outro. Esse tipo de desejo só quer se apropriar das pessoas, dos objetos e
das situações que o atraem para ter controle. Considera a atração como uma
característica inerente àquela pessoa, cujas qualidades ele amplia, enquanto
subestima os defeitos. “O desejo embeleza os objetos sobre os quais pousa as
suas asas de fogo”, ressaltou Anatole France.
A
paixão romântica é o maior exemplo desse tipo de cegueira. Eis como o
dicionário define paixão: “Um amor poderoso, exclusivo e obsessivo. Afetividade
violenta que atrapalha o julgamento.” Ela é alimentada pelo exagero e pela
ilusão e insiste em que as coisas sejam outras, diferentes de como realmente são.
Como uma miragem, o objeto idealizado é insaciável e fundamentalmente
frustrante.
E
quando ocorre uma louca paixão sexual? Podemos concordar com Christian Boiron,
escritor e CEO, segundo o qual “a atração sexual não é patológica, mas também
não é uma emoção. É a expressão normal de um desejo, como a fome e a sede”.
Mesmo assim, ela faz surgir em nós as mais poderosas emoções porque sua força
deriva dos cinco sentidos: visão, tato, audição, paladar e olfato. Na ausência
da liberdade interior, qualquer experiência sensorial intensa engendra apegos e
nos subjuga cada vez mais. Ela se parece com o redemoinho de um rio: nós não
lhe damos muita atenção, pensamos que podemos nadar ali sem problemas, mas
quando o turbilhão acelera e fica mais profundo, somos sugados para dentro dele
sem nenhuma esperança de resgate. Já a pessoa que consegue manter uma perfeita
liberdade interior experimenta todas essas sensações na simplicidade do momento
presente, com o deleite de uma mente livre de apegos e expectativas.
O
desejo obsessivo é reflexo da intensidade e da frequência das imagens mentais
que o desencadeiam. Como um disco riscado, fica repetindo o mesmo leitmotiv. É uma polarização do universo
mental, uma perda de fluidez, que prejudica a liberdade interior. Alain escreveu:
“Este amante desprezado, que se contorce sobre a cama em vez de dormir e que
medita sobre vinganças terríveis. O que sobraria da sua ferida se ele não
pensasse mais sobre o passado e sobre o futuro? Este ambicioso, ferido no
coração por um fracasso, onde procurará ele sua dor, senão em um passado que
ressuscita e em um futuro que inventa?”
Essas
obsessões tornam-se muito dolorosas quando não são atendidas e vão ficando cada
vez mais fortes quando o são. O universo da obsessão é um mundo onde a urgência
se vincula à impotência. Somos pegos por uma engrenagem de tendências e pulsões
que conferem à obsessão um caráter lancinante. Outra de suas características é
a insatisfação fundamental que ela suscita. Ela não conhece a alegria e muito
menos a plenitude ou a realização. Não poderia ser de outra maneira, já que
aquele que é vítima da obsessão insiste em buscar alívio exatamente naquelas
situações que são as causas do seu tormento. O dependente de drogas reforça a
sua dependência, o alcoólatra bebe até chegar ao delírio, o amante desprezado
olha para a foto da sua amada o dia todo. A obsessão gera um estado de
sofrimento crônico e de ansiedade, aos quais se somam, por sua vez, o desejo e
a repulsa, a insaciabilidade e a exaustão. Na verdade, ela é um adendo às
causas do sofrimento.
Estudos
indicam que diferentes regiões do cérebro e diferentes circuitos neurais estão
em ação quando “queremos” alguma coisa e quando “gostamos” dela. Isso nos ajuda
a compreender pelo qual, quando nos acostumamos a sentir certos desejos,
tornamo-nos dependentes deles – continuamos a sentir a necessidade de
satisfazê-los mesmo quando já não gostamos do sentimento que provocam. Chegamos
ao ponto de desejar sem gostar, desejar sem amar. No entanto, podemos querer
ser livres da obsessão, que machuca porque nos compele a desejar aquilo que não
nos agrada mais. Podemos, também, amar alguma coisa ou alguém sem necessidade
desejá-los.
Pesquisadores
implantaram, em determinada região do cérebro de ratos, eletrodos que produziam
sensações de prazer quando estimulados. Os ratos descobriram que podiam
aumentar a intensidade do prazer ao apoiar os eletrodos em uma barra. A
sensação de prazer era tão intensa que eles logo abandonaram todas as outras
atividades, inclusive a alimentação e o sexo. A busca dessa sensação
transformou-se em uma sede insaciável, uma necessidade incontrolável, e os
ratos pressionaram a barra até caírem mortos de exaustão.
Desejo, amor e apego
Como
distinguir entre o amor verdadeiro e o apego possessivo? O amor altruísta pode
ser comparado ao som puro que vem de um copo de cristal, e o apego ao dedo que,
ao tocar a beira do copo, abafa esse som. Reconhecemos desde o princípio que a
ideia de um amor desprovido de apego é relativamente estranha à sensibilidade
ocidental. Ser desapegado não significa que amamos menos a pessoa, mas que não
estamos centrados no amor por nós mesmos nos escondendo no amor que dizemos
sentir pelo outro. O amor altruísta é a alegria de compartilhar da vida
daqueles que estão à nossa volta – os nossos familiares, os nossos amigos, os
nossos companheiros, a nossa esposa ou o nosso marido – e contribuir para a
felicidade deles. Amamos o outro por aquilo que ele é e não através da lente
distorcida do egocentrismo. Em vez de ficarmos apegados ao outro, temos que ter
em mente a felicidade dele; em vez de esperar que ele nos traga alguma
gratificação, podemos receber o seu amor recíproco com alegria.
E
depois podemos ir ampliando e estendendo esse amor. É preciso ser capaz de amar
todas as pessoas incondicionalmente. Amar um inimigo – isso é pedir demais?
Esse empreendimento pode parecer impossível, mas baseia-se em uma observação
muito simples: a de que todos os seres, sem exceção, querem evitar o sofrimento
e conhecer a felicidade. O amor altruísta genuíno é o desejo de que isso possa
se realizar. Se o amor que oferecemos depende do modo como somos tratados,
nunca seremos capazes de amar o nosso inimigo. No entanto, é certamente
possível ter a esperança de que ele pare de sofrer e seja feliz!
Como
conciliar esse amor incondicional e imparcial com o fato de que temos na nossa
existência relações preferenciais com certas pessoas? Tomemos o sol como exemplo.
Ele brilha para todos, com o mesmo calor e a mesma claridade, em todas as
direções. Mas há seres que, por diversas razões, se encontram mais perto dele e
que, por isso, recebem mais calor. Mas em nenhum momento essa situação
privilegiada é uma exclusão. Apesar das limitações inerentes a qualquer
metáfora, compreendemos que é possível gerar em si mesmo uma bondade a partir
da qual chegamos a olhar para todos os seres como se fossem pais, mães, irmãos,
irmãs ou filhos. No Nepal, por exemplo, chamamos qualquer mulher mais velha do
que nós de “grande irmã”, e a mulher mais nova, de “pequena irmã”. Essa bondade
aberta, altruísta e atenciosa, longe de diminuir o amor que sentimos por
aqueles que nos são mais próximos, só o faz aumentar, aprofundar-se e ficar ainda
mais belo.
É
claro que temos que ser realistas – concretamente é impossível manifestar da
mesma maneira a nossa afeição e o nosso amor por todos os seres vivos. É normal
que os efeitos do nosso amor envolvam mais determinadas pessoas do que outras.
No entanto, não há razão para que uma relação especial que temos com um amigo
ou um companheiro limite o amor e a compaixão que sentimos por todas as
pessoas. A essa limitação, quando surge, damos o nome de apego. O apego é
nocivo na medida em que, sem propósito algum, restringe o campo de ação do amor
altruísta. É como se o sol deixasse de brilhar em todas as direções e se
reduzisse a um estreito feixe de luz. O apego é fonte de sofrimento porque o
amor egoísta se bate contra as barreiras que ele mesmo levantou. A verdade é
que o desejo possessivo e exclusivista, a obsessão e o ciúme só têm sentido no
universo fechado do apego. O amor altruísta é a mais expressão da natureza
humana, quando essa natureza não é viciada, obscurecida e distorcida pelas
manipulações do ego. O amor altruísta abre uma porta interior que torna
inoperante o sentimento de importância de si mesmo e, portanto, também o medo
desaparece. Ele nos permite dar alegremente e receber com gratidão.
Trecho do livro, “Felicidade – A pratica do Bem Estar”, por Matthieu Ricard.
Texto extremamente instrutivo!
ResponderExcluirGrata pela postagem, caro Silvio!
Glaucia de Paula