O rabo está abanando o cachorro
“No Brasil é tão normal um cidadão ter medo de andar pelas ruas e tão
rotineiro abrir-se mão da cidadania mais básica que já não causa
surpresa as vítimas estarem se transformando em culpadas pelos crimes”,
diz desembargador
POR PEDRO VALLS FEU ROSA | 02/2014 |
José
foi assaltado. Levaram o carro dele. Ao chegar em casa de táxi, ele
imediatamente assumiu a culpa pelo roubo: “eu dei bobeira, não deveria
ter parado naquele semáforo”. Maria foi estuprada, e quase morreu. Ao
prestar depoimento, ela deixou bem clara sua responsabilidade pelo
episódio: “eu vacilei, não deveria ter ido comprar pão sozinha”.
Um
ladrão arrancou o telefone celular das mãos de João enquanto ele
atendia uma ligação. Ele – o João, e não o ladrão – assumiu total culpa
pelo crime: “eu não sei onde estava com a cabeça quando fui atender uma
ligação no meio da rua”. Maria foi morta durante um assalto. Ela gritou e
acabou levando um tiro. Por ocasião de seu enterro, Maria foi condenada
por todos os presentes: “que estupidez dela ter gritado, todo mundo
sabe que durante um assalto o melhor é ficar em silêncio”.
Mário, um dedicado policial militar, foi morto a tiros por traficantes do morro no qual morava. Seus familiares, entrevistados por um jornalista, o recriminaram duramente: “ele sempre foi cabeça-dura, nunca quis esconder a farda quando voltava para casa”. No mesmo morro, Paulo, um líder comunitário, foi esfaqueado até a morte pelos mesmos traficantes. Seus amigos o criticaram ferozmente: “que falta de juízo, procurar a polícia para denunciar que o crime estava dominando o morro”.
Marcos
teve sua loja assaltada, e quase levou um tiro. Seus empregados
reclamaram dele: “que estupidez, deixar aquele monte de mercadoria
exposta na vitrina”. Marcos passou a deixar tudo trancado em um cofre.
Mas a loja foi assaltada de novo, e um de seus funcionários, após quase
levar um tiro por ter demorado a abrir o cofre, agrediu-o violentamente:
“seu miserável, fica trancando tudo, mais preocupado com as mercadorias
do que com a gente, e quase levamos um tiro por sua causa”.
Carlos
estava jantando com sua namorada em um movimentado restaurante quando
uma quadrilha armada saqueou todos os clientes. Seu futuro sogro não
gostou: “este rapaz é um irresponsável, ele sabe muito bem que não
estamos em época de ficar bestando por aí, jantando fora, e acabou
passando por um assalto e traumatizando minha filha”.
Joel
entrou em um subúrbio com o caminhão da empresa para entregar pacotes
de biscoito nos bares de lá. Após ter tido os produtos e o caminhão
roubados, e quase ter sido morto, foi despedido por seu chefe: “que
sujeito burro, ir com o caminhão lá naquele bairro sem pedir licença
para o líder do tráfico local”.
Patrícia
viajou a negócios. Desembarcou no aeroporto com seu “notebook” e tomou
um táxi. Não conseguiu andar dois quarteirões – foi assaltada em um
semáforo. Na empresa, foi imediatamente repreendida: “você não poderia
ter desembarcado sem antes esconder o notebook, deste jeito você pediu
para ser assaltada”.
E
é assim, de exemplo em exemplo, todos já parte do nosso cotidiano, que
vamos chegando a uma verdadeira “rotina do absurdo”. Aqui no Brasil é
tão normal um cidadão ter medo de andar pelas ruas, é tão comum um
policial ter que esconder sua profissão para não morrer, é tão usual
pessoas terem que pedir permissão a traficantes para subir em morros e é
tão rotineiro abrir-se mão da cidadania mais básica que já não causa
surpresa as vítimas estarem se transformando em culpadas pelos crimes.
Diante
desta tenebrosa realidade, patrocinada pela fraqueza e falta de firmeza
das nossas instituições, talvez já não nos cause surpresa ver um rabo
abanando um cachorro…
* Pedro Valls Feu Rosa é desembargador há 18 anos e atual presidente do Tribunal de Justiça do Espírito Santo (TJES)
fonte:
http://congressoemfoco.uol.
Inversão surreal de valores. Bem-vindos ao Brasil!!
ResponderExcluirO RABO ESTÁ ABANANDO O CACHORRO.