Qual a relação entre tecnologia e o ato de respirar? Toda, segundo Pierre Lévy.
Mundialmente reconhecido por suas teorias sobre a relação entre o ser humano e a tecnologia, o filósofo francês tem, em meio às obras diretamente ligadas à cibercultura, um livro que pode intrigar seus admiradores. É O fogo liberador, que apresenta a incursão pelo caminho espiritual de Pierre Lévy e de sua esposa, a pintora e ilustradora Darcia Labrosse.Em entrevista ao programa Roda Viva (2001), Lévy explica como filosofia oriental e tecnologia estão intimamente relacionadas:
"Sou um filósofo. E, desde sempre, a filosofia se interessa por
problemas sociais e políticos, problemas de conhecimento, de evolução
histórica, pelo sentido da história etc. Mas, a filosofia também se
interessa pela sabedoria, pela felicidade. E, para mim, digamos, é a
continuação do meu trabalho de filósofo.
Então, no fundo, nos
trabalhos sobre a revolução epistemológica, social e cultural trazida
pelas novas tecnologias, trata-se de analisar um tipo de abertura do
espírito, expansão do conhecimento e da consciência em uma esfera
exterior, uma esfera concreta, uma esfera social. E, com o livro
O fogo liberador, não é mais a exploração da liberdade exterior, mas a exploração da liberdade interior."
Como colocamos no início do texto,
O fogo liberador propõe exercícios conhecidos por praticantes
de meditação, mostrando como a observação do presente e o simples ato de
respirar podem revelar o sentido da existência.
Diz Lévy na
obra: “A raiz de todos os sofrimentos está na incapacidade de viver no
presente, a cada segundo, e de nos maravilharmos com o fato de respirar,
sentir, pensar, de nos relacionarmos com outros seres sensíveis." Sobre
isso, no Roda Viva, o filósofo comenta:
"Recomendo que se preste atenção à respiração, porque esquecemos essa
coisa extraordinária. Isto é, o fato de que estamos vivos. No fundo,
tudo que podemos censurar à existência e que nos deixa infelizes é, no
fim das contas, tão pouco perto desse fato sólido, bruto, que, muitas
vezes, esquecemos.
E repito mais uma vez: nós estamos vivos. Que sorte a nossa. Nós vemos,
ouvimos, pensamos, estamos nos relacionando com outros seres humanos.
Claro, podemos gostar de alguns e não de outros. Podemos fazer diferença
e tudo mais, mas a coisa mais importante vem antes das diferenças: é o
fato de existirmos. É toda essa riqueza que nos é dada a cada segundo.
A vida social está dentro de nossa existência. As relações que temos
com os outros não estão fora da nossa vida, mas dentro dela. Quando leio
um livro, é na minha vida que o leio. Não o leio fora dela, nem tem
sentido. Quando opero um computador e navego pela internet, isso
acontece dentro da minha experiência e do ponto de vista de um ser
humano vivo.
Portanto, temos de tomar consciência de que nossa consciência, nossa
experiência consciente, reúne todos os aspectos da existência. E não
existe oposição entre interioridade e exterioridade. A interioridade
engloba tudo, não é? E é verdade que tudo está dentro da pessoa. Por que
o que há fora?
Não há nada fora. Nada. A cor das coisas, por exemplo, é fabricada pelo
nosso sistema nervoso. É um produto da nossa mente. No mundo exterior
há variações do campo eletromagnético. E ainda isso é produto de nossa
ciência, a ciência fabricada pelos seres humanos.
Fora do nosso conhecimento, o que há? Só podemos conhecer o que
conhecemos, não é? Ora, o que conhecemos é o que somos. Esta é a
mensagem do livro. Quem é 'nós'? Qual a nossa identidade? É o que há no
interior da epiderme?
'Nós' é tudo o
que há em nossa experiência. Você faz parte da minha experiência. O céu
faz parte dela. O céu não existe fora da minha experiência. As estrelas
não existem para um verme dentro da terra. As estrelas só existem para o
ser humano.
O mundo do significado e da linguagem, o que dá sentido ao universo só
existe na cultura e na consciência humana. Há uma espécie de
coincidência entre o microcosmo e o macrocosmo. Isso não é nada
original, é o que a sabedoria oriental diz há muito tempo. E não só a
sabedoria oriental. Se você estudar Platão ou os estoicos, eles dizem
exatamente a mesma coisa. É a sabedoria em geral. Não é sabedoria
oriental.
Há uma única sabedoria. Ou, então, poderíamos dizer: 'O que é o
Oriente?' É o conhecimento voltado para o interior. E o Ocidente é o
conhecimento, a liberdade, voltados para o exterior. A contribuição para
a história da humanidade é a ciência, a técnica, a democracia, o livre
mercado etc. E a contribuição oriental é a sabedoria, a meditação, o
descobrimento da profundeza infinita da consciência.
Mas, na realidade, não há uma divisão entre Oriente e Ocidente. Há uma
única humanidade, digamos. E acho que, hoje, estamos compreendendo que
os orientais são como nós e que eles têm muita coisa para nos dar. E
eles estão compreendendo que queriam ter a democracia, querem a técnica,
o livre mercado e tudo isso.
No fundo, Oriente e Ocidente estão se mesclando. O interior e o
exterior estão se mesclando. A humanidade está se unificando. E só vejo
um único processo de unificação: o processo de unificação da espécie
humana, que se faz através da globalização, da internet, como também o
processo de unificação de nossa própria humanidade interior."
Ficou
interessado na obra? Segundo nossa pesquisa, o livro está esgotado nas
livrarias, mas há diversas cópias disponíveis em sebos pelo Brasil.
Confira abaixo um breve excerto de O Fogo Liberador:
Embora o pensamento exista e tenha efeito, ele não representa a
realidade. Poderíamos compará-lo à música instrumental. Ela tem um
tempo, uma melodia, uma emoção associada, encadeia tensões e desfechos,
cria uma atmosfera, mas não tem um referente. A música não é nem
verdadeira nem falsa. E no entanto, ela cria um mundo.
É preciso
entender que o pensamento é uma espécie particular de música interior
que nos faz crer na existência de um referente, de um mundo exterior
diferente dela e do qual ela estaria falando. Mas o fato é que só a
música da alma e o mundo que dela emana existem, aqui, agora.
O que é uma emoção? Uma mistura de pensamentos discursivos, de imagens
mentais e sensações proprioceptivas. E as sensações físicas associadas à
emoção ainda são imagens, signos: um certo motivo de impressões
corporais, uma textura energética. Observe com atenção todos os detalhes
dessas imagens, seus movimentos, suas transformações, seu
desaparecimento.
Sensações, emoções e pensamentos vibram cada um com sua própria
energia. Para o ser atento, a vida é como uma expedição numa paisagem de
energias infinitamente variadas.
* * *
Um pensamento não representa a realidade, é um acontecimento mental. A
emoção é a qualidade energética desse acontecimento. Só sofremos porque
em vez de ver o pensamento tal como é, acreditamos que é "verdadeiro".
Só sofremos porque em vez de sentir o espaço onde surgem e desaparecem
os pensamentos, fazemos um encadeamento sem fim de outros tantos
pensamentos.
Quando prestamos uma atenção geral no espaço, a queda da consciência em
um pensamento é um pequeno desabamento do ser, um buraco negro do
espírito. Deixemo-nos levar pelo turbilhão. Se não endurecermos nem nos
debatermos, o turbilhão bem rápido nos rejeita e voltaremos para o
espaço aberto.
Os pensamentos são como turbilhões móveis, evanescentes, no espaço
infinito da consciência luminosa. Em vez de se prender na armadilha
desses turbilhões, amplie sua atenção para a vastidão de ouro
liquefeito.
* * *
Somos constantemente visitados por pensamentos, emoções, conceitos que
não são nossos pensamentos, nossas emoções, nossos conceitos, mas
palavras, sentimentos e ideias impessoais. Se esses visitantes não são
nossos, tampouco são estrangeiros, intrusos ou inimigos, pelo menos não
mais do que o choro de uma criança na rua, a palmeira no jardim, o céu
cor de rosa, o murmúrio do mar ao longe. Não somos nada disso, e, no
entanto, tudo isso participa de nossa vida. O essencial é compreender
que todos esses visitantes estão de passagem.
Pensamentos e emoções nos atravessam como voos de pássaros, de ilusões,
um motivo onírico impessoal. Cada pensamento tem seu próprio pensador.
* * *
Mas, então, quem desperta de nossos pensamentos? Nós. Quem, nós? A luz por toda parte derramada.
* * *
fonte: http://www.fronteiras.com/entrevistas/pierre-levy-o-fogo-liberador-e-a-raiz-do-sofrimento
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