Mais do que posso conceber
by flaviosiqueira
Nada
é exatamente como percebemos. Cada um de nós enxerga a partir de lentes
embaçadas, mentes condicionadas por tantos conceitos, tantas
impressões, tantos vetores que não nos damos conta.
Você
só conhece uma versão. Olha por uma única fresta e pensa que viu tudo.
Sente-se seguro por acreditar que sabe. Pensar que sabe lhe deixa
seguro.
A ciência pensa que sabe, a filosofia imagina ter chegado à algum lugar, a teologia orgulha-se sem saber que não sabe.
A
maioria de nós se apegou às próprias certezas e a partir delas
construiu castelos imaginários que o tempo, as perdas, as dores, os
imprevistos da vida podem facilmente destruir. Tememos a desilusão.
Enxergar desilude.
E
então vivemos como quem se esforça para acreditar que tudo será como
parece, que os castelos serão inabaláveis, que as coisas farão sentido
conforme a lente embaçada e a vida será sempre mar tranquilo, como se
todas as possibilidades, todas as variáveis, todos os caminhos coubessem
na caixinha de fósforo que vivo, no grãozinho de arroz que sou.
Mas
essa é só uma parte da história. É a parte inquietante, pelo menos sob a
perspectiva da mente que se esforça para assumir o controle, que
projeta sobre o ego a incumbência de assumir-se como ente, como ser que
não é.
Até
que não reste alternativa a não ser enxergar a própria ignorância.
Desconstruir-se é assumir-se como é, reconhecer as incompletudes, sem
disfarces, sem camuflagem, sem medo.
Nada é exatamente como percebemos.
A
vida inteira se movimenta para nos mostrar que toda perspectiva
absoluta é reducionista e nos livrar da tendência tão arraigada de nos
identificarmos com a imagem do espelho, a superfície dos acontecimentos,
a sensação de controle.
É
preciso coragem para soltar as muletas e caminhar sem escorar-se em
nada. Calar a mente, pacificar-se exatamente por saber que a inquietude é
improdutiva, as construções mentais ilusórias, o sentimento de posse
passageiro, a sensação de poder enganosa.
Você só vê pela fechadura, não sabe quase nada, portanto, que o sentimento diante da vida seja de reverência.
Que
haja silêncio e pacificação suficientes para entender os sinais sem
ficar se debatendo, conectar os movimentos sem reclamação, perceber que
em cada acontecimento, por menor que seja, existem bilhões de
possibilidades, todas com potencial para aprofundar sua consciência, mas
você só percebe uma, talvez duas, quem sabe três, nada além.
Aquiete-se.
Você está vivo, experimentando agora a condição de ser-humano e isso já é mais do que pode entender.
Se
não sabemos quase nada, sejamos humildes e simples de coração, abertos o
suficiente, atentos ao universo que nos cerca, que nos habita, que se
projeta no caminho e, sobretudo, gratos pelo espantoso e inexplicável
fato de existirmos.
Por
que você se inquieta por tão pouco? Ainda que a vida seja um completo
mistério, estar aqui já é um enorme privilégio. Para mim, isso já é mais
do que posso conceber.
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