...
Oito da noite, numa avenida movimentada.
O casal já está atrasado para jantar na casa de uns amigos. O endereço é novo e ela consultou no mapa antes de sair.
Ele conduz o carro. Ela orienta e pede para que vire, na próxima rua, à esquerda. Ele tem certeza de que é à direita. Discutem.
Percebendo que além de atrasados, poderiam ficar mal-humorados, ela deixa que ele decida. Ele vira à direita e percebe, então, que estava errado.
Embora com dificuldade, admite que insistiu no caminho errado, enquanto faz o retorno. Ela sorri e diz que não há nenhum problema se chegarem alguns minutos atrasados. Mas ele ainda quer saber:
- Se tinha tanta certeza de que eu estava indo pelo caminho errado, devias ter insistido um pouco mais... E ela diz:
- Entre ter razão e ser feliz, prefiro ser feliz.
Oito da noite, numa avenida movimentada.
O casal já está atrasado para jantar na casa de uns amigos. O endereço é novo e ela consultou no mapa antes de sair.
Ele conduz o carro. Ela orienta e pede para que vire, na próxima rua, à esquerda. Ele tem certeza de que é à direita. Discutem.
Percebendo que além de atrasados, poderiam ficar mal-humorados, ela deixa que ele decida. Ele vira à direita e percebe, então, que estava errado.
Embora com dificuldade, admite que insistiu no caminho errado, enquanto faz o retorno. Ela sorri e diz que não há nenhum problema se chegarem alguns minutos atrasados. Mas ele ainda quer saber:
- Se tinha tanta certeza de que eu estava indo pelo caminho errado, devias ter insistido um pouco mais... E ela diz:
- Entre ter razão e ser feliz, prefiro ser feliz.
Estávamos à beira de uma discussão, se eu insistisse mais, teríamos estragado a noite!
Considerações semióticas e análise do discurso
"Ser feliz ou ter razão" é uma
pergunta capciosa que nos coloca diante da falácia do "falso dilema".
Nesta falácia, o interlocutor nos obriga a escolher
entre apenas duas alternativas como se estas fossem as únicas possíveis diante
de certo contexto prático.
Primeiro aspecto a
considerar: Se você pensar bem, notará que as causas e efeitos
apresentadas ("ser feliz/infeliz e ter razão/não ter razão") não se
excluem necessariamente, ou seja: posso ser feliz "tendo razão", como
posso continuar "infeliz sem ter razão alguma".
Em segundo, considere que na maioria das
situações que vivenciamos no dia a dia, sempre há várias alternativas e não
apenas duas ("ter/não ter razão").
Admito: em muitas situações, na grande maioria até,
é melhor calar do que falar, principalmente se nossa fala estiver carregada de
raiva, ira ou ressentimento. O mal causado será ainda maior falando...
Por outro lado, a mera submissão de um ao outro,
seja a pretexto de "salvar" um relacionamento, seja para garantir uma
momentânea sensação de bem estar (que nada tem a ver com a verdadeira
felicidade) não necessariamente é a atitude mais inteligente.
O que quero dizer é que no caso concreto da
historinha acima, calar pode ter sido uma atitude sábia nesta situação
específica, mas não pode ser generalizada como conselho aplicável em todo e
qualquer contexto (independentemente do gênero dos interlocutores).
A ideologia, portanto, fica subentendida durante
uma leitura superficial, mas que fica evidente durante a análise do discurso.
Ademais, se o sentimento que a pessoa carrega diz
que ela "tem razão", de que adiantaria fingir que acha "não ter
razão"? Quanto tempo a pessoa vai aguentar reprimindo sua
insatisfação?
Pode-se também analisar mais profundamente a moral
da história que, a meu ver, tem outro problema mais sério:
O fato de duas pessoas não discordarem não
significa que são felizes. Aliás, "felicidade" é sentimento comumente
mal compreendido, mal definido e bastante confundido. As pessoas em geral não
fazem a mínima ideia do que seja felicidade; constantemente confundindo-a com
alegria, excitação, sensações prazerosas associadas à produção de hormônios
(endorfina, serotonina, dopamina...) Enfim, confundem-na com a posse e/ou gozo
de bens materiais os mais variados.
Imagine agora se as pessoas todas, a pretexto
de serem felizes, resolvessem se omitir diante dos erros que percebessem ao seu
redor...
Será que o mundo seria de fato um lugar melhor para
se viver?
Imagine um funcionário que se omite e deixa de
apontar o erro da estratégia da empresa, o pai que não adverte a respeito do
erro do filho, ou que vendo o erro, concorda e acaba permitindo ao outro cair
no abismo... ou alguém que não aconselha seu próprio amigo...
De que serviriam esse empregado, esse pai ou
esse amigo?
A omissão pode ser mais criminosa que a
admoestação. E apontar o erro também pode ser sinal de amor...
O problema é reconhecer os próprios erros (e eles
acontecem aos montes todos os dias). Em nome de nosso ego, da identidade
pessoal que tentamos proteger, lutamos com unhas e dentes para que essa
auto-imagem não seja modificada. Então, quando esse perigo torna-se iminente,
reagimos!
Parece haver dificuldade em apontar o erro
sem prepotência e sem mágoa. Por outro lado, ouvir que erramos nunca será
algo confortável ou agradável, mas pode sim ser útil.
Então, devemos tomar certo cuidado com a ideologia
implícita no texto: ou seja, embora seja muito bom evitar discussões inúteis (e
quase todas o são), isso não implica que seja salutar se calar diante de um
erro que vai prejudicar a si mesmo ou outros.
Primeira constatação: superar o orgulho (e sua filha dileta, a mágoa) é o verdadeiro
desafio.
Saber ouvir e não só saber falar implica muita
vontade de se autoconhecer. Porque vai ter que ouvir muita coisa que não vai
gostar, mas vai ter que engolir e digerir assim mesmo.
Segunda: evitar os
extremos é sempre melhor do que se aferrar a qualquer um deles (porque calar
quando precisaria falar é tão criminoso quanto criticar quando o melhor seria
ouvir calado).
Terceira: precisamos
trabalhar sobre a verdadeira causa de quase todos (senão todos) os nossos
problemas: nós mesmos, é claro.
Então... ter razão ou não ter razão, calar ou
falar...
Quando estivermos atentos ao que é real em nós (ao
invés de identificados com nosso querido ego), este será um dilema
irrelevante.
E a paz, e a felicidade que tanto buscamos nos
relacionamentos estarão lá! sem mais, nem menos.
silvio mmax
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