quarta-feira, 15 de abril de 2020

"Ser feliz ou ter razão": uma análise do discurso

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Oito da noite, numa avenida movimentada. 
O casal já está atrasado para jantar na casa de uns amigos. O endereço é novo e ela consultou no mapa antes de sair. 
Ele conduz o carro. Ela orienta e pede para que vire, na próxima rua, à esquerda. Ele tem certeza de que é à direita. Discutem.
Percebendo que além de atrasados, poderiam ficar mal-humorados, ela deixa que ele decida. Ele vira à direita e percebe, então, que estava errado.
Embora com dificuldade, admite que insistiu no caminho errado, enquanto faz o retorno. Ela sorri e diz que não há nenhum problema se chegarem alguns minutos atrasados. Mas ele ainda quer saber: 

- Se tinha tanta certeza de que eu estava indo pelo caminho errado, devias ter insistido um pouco mais... E ela diz: 
- Entre ter razão e ser feliz, prefiro ser feliz.
Estávamos à beira de uma discussão, se eu insistisse mais, teríamos estragado a noite!

Considerações semióticas e análise do discurso


"Ser feliz ou ter razão" é uma pergunta capciosa que nos coloca diante da falácia do "falso dilema".

Nesta falácia, o interlocutor nos obriga a escolher entre apenas duas alternativas como se estas fossem as únicas possíveis diante de certo contexto prático.
Primeiro aspecto a considerar: Se você pensar bem, notará que as causas e efeitos apresentadas ("ser feliz/infeliz e ter razão/não ter razão") não se excluem necessariamente, ou seja: posso ser feliz "tendo razão", como posso continuar "infeliz sem ter razão alguma".
Em segundo, considere que na maioria das situações que vivenciamos no dia a dia, sempre há várias alternativas e não apenas duas ("ter/não ter razão").

Admito: em muitas situações, na grande maioria até, é melhor calar do que falar, principalmente se nossa fala estiver carregada de raiva, ira ou ressentimento. O mal causado será ainda maior falando...
Por outro lado, a mera submissão de um ao outro, seja a pretexto de "salvar" um relacionamento, seja para garantir uma momentânea sensação de bem estar (que nada tem a ver com a verdadeira felicidade) não necessariamente é a atitude mais inteligente.

O que quero dizer é que no caso concreto da historinha acima, calar pode ter sido uma atitude sábia nesta situação específica, mas não pode ser generalizada como conselho aplicável em todo e qualquer contexto (independentemente do gênero dos interlocutores).
A ideologia, portanto, fica subentendida durante uma leitura superficial, mas que fica evidente durante a análise do discurso.
Ademais, se o sentimento que a pessoa carrega diz que ela "tem razão", de que adiantaria fingir que acha "não ter razão"? Quanto tempo a pessoa vai aguentar reprimindo sua insatisfação? 

Pode-se também analisar mais profundamente a moral da história que, a meu ver, tem outro problema mais sério:
O fato de duas pessoas não discordarem não significa que são felizes. Aliás, "felicidade" é sentimento comumente mal compreendido, mal definido e bastante confundido. As pessoas em geral não fazem a mínima ideia do que seja felicidade; constantemente confundindo-a com alegria, excitação, sensações prazerosas associadas à produção de hormônios (endorfina, serotonina, dopamina...) Enfim, confundem-na com a posse e/ou gozo de bens materiais os mais variados.
Imagine agora se as pessoas todas, a pretexto de serem felizes, resolvessem se omitir diante dos erros que percebessem ao seu redor...
Será que o mundo seria de fato um lugar melhor para se viver?
Imagine um funcionário que se omite e deixa de apontar o erro da estratégia da empresa, o pai que não adverte a respeito do erro do filho, ou que vendo o erro, concorda e acaba permitindo ao outro cair no abismo... ou alguém que não aconselha seu próprio amigo... 
De que serviriam esse empregado, esse pai ou esse amigo?
A omissão pode ser mais criminosa que a admoestação. E apontar o erro também pode ser sinal de amor...
O problema é reconhecer os próprios erros (e eles acontecem aos montes todos os dias). Em nome de nosso ego, da identidade pessoal que tentamos proteger, lutamos com unhas e dentes para que essa auto-imagem não seja modificada. Então, quando esse perigo torna-se iminente, reagimos! 
Parece haver dificuldade em apontar o erro sem prepotência e sem mágoa. Por outro lado, ouvir que erramos nunca será algo confortável ou agradável, mas pode sim ser útil.
Então, devemos tomar certo cuidado com a ideologia implícita no texto: ou seja, embora seja muito bom evitar discussões inúteis (e quase todas o são), isso não implica que seja salutar se calar diante de um erro que vai prejudicar a si mesmo ou outros.

Primeira constatação: superar o orgulho (e sua filha dileta, a mágoa) é o verdadeiro desafio. 
Saber ouvir e não só saber falar implica muita vontade de se autoconhecer. Porque vai ter que ouvir muita coisa que não vai gostar, mas vai ter que engolir e digerir assim mesmo.

Segunda: evitar os extremos é sempre melhor do que se aferrar a qualquer um deles (porque calar quando precisaria falar é tão criminoso quanto criticar quando o melhor seria ouvir calado).

Terceira: precisamos trabalhar sobre a verdadeira causa de quase todos (senão todos) os nossos problemas: nós mesmos, é claro.

Então... ter razão ou não ter razão, calar ou falar... 
Quando estivermos atentos ao que é real em nós (ao invés de identificados com nosso querido ego), este será um dilema irrelevante. 
E a paz, e a felicidade que tanto buscamos nos relacionamentos estarão lá! sem mais, nem menos.

silvio mmax

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