Projeto põe pesquisa da filosofia grega clássica em sintonia com padrão internacional
24 de setembro de 2014
Por José Tadeu Arantes
Agência FAPESP –
Um estudo em profundidade da filosofia grega clássica, centrado em seus
dois principais protagonistas, Platão (428/427 a.C. – 348/347 a.C.) e
Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C.), está em curso na Universidade de São
Paulo (USP). Trata-se do Projeto Temático “Filosofia grega clássica: Platão, Aristóteles e sua influência na Antiguidade”, apoiado pela FAPESP.
Por
paradoxal que pareça, esse estudo dos antigos constitui, de certa
maneira, uma novidade auspiciosa, pois há algumas décadas a filosofia
grega clássica encontrava-se praticamente ausente de muitas das
universidades brasileiras, como se a atividade filosófica tivesse se
iniciado apenas no século XVII, com o francês René Descartes (1596 –
1650).
“Nosso
projeto foi concebido de forma bastante ampla, de modo a abrigar
diversos interesses dos pesquisadores que trabalham sobre Platão e
Aristóteles, propiciando uma interação entre professores do Departamento
de Filosofia e do Departamento de Grego da USP”, disse o coordenador do
projeto Marco Antônio de Ávila Zingano, professor de Filosofia Antiga
da USP, à Agência FAPESP.
“O seminário central, no qual convergem todos os interesses, consiste na leitura e interpretação dos Tópicos,
de Aristóteles”, afirmou Zingano. Trata-se de uma obra escrita no
período final de seus 20 anos de discipulado na Academia de Platão, que
se encerraram em 348 a.C., pouco depois da morte do mestre.
“Nos Tópicos,
Aristóteles estabeleceu uma série de regras para os procedimentos
dialéticos, sobre como discutir uma tese com base em opiniões reputadas.
Por isso, tal obra é fundamental para todos os que se dedicam a um
estudo em profundidade do pensamento grego antigo. Os Tópicos funcionam como uma espécie de chave de leitura para muitos outros textos e debates”, disse o coordenador do Temático.
A rotina do grupo consiste em dois encontros mensais para discutir os Tópicos.
E em seminários especiais para tratar de temas específicos das
filosofias de Platão ou de Aristóteles, ligados à metafísica ou à teoria
da ação. “Além disso, a cada semestre, recebemos três professores de
fora, que dão seminários intensivos”, disse Zingano.
Intercâmbios
A
ideia básica é a de que filosofia se faz com a leitura dos textos
originais nas línguas originais e com intenso intercâmbio entre
pesquisadores de diferentes instituições, do país e do exterior. Os
resultados palpáveis são a produção e a publicação de livros ou artigos,
com traduções dos textos ou discussão de temas relevantes.
“Um
dos intercâmbios a destacar é o que mantemos, atualmente, com a
Universidade de Princeton, nos Estados Unidos. Reunimo-nos,
alternadamente em São Paulo ou em Princeton, durante três dias no mês de
janeiro. Para essas reuniões, escolhemos antecipadamente certos textos e
os distribuímos para todos os doutorandos, de modo que cada texto seja
apresentado e discutido por uma dupla formada por um aluno da USP e
outro de Princeton. Eles preparam a exposição por e-mail, fazem a
apresentação conjuntamente e, depois, todos os participantes debatem”,
relatou o coordenador.
Entre
os vários subtemas abrigados pelo projeto, dois são especialmente
instigantes para quem se interessa por filosofia, mesmo sem ser
especialista.
Um
é a relação dos chamados neoplatônicos – Plotino (205 d.C. – 270 d.C.) e
seguidores – com o pensamento original de Platão. Em que medida os
neoplatônicos foram, como insistiam em afirmar, fiéis depositários e
exegetas da filosofia de Platão, em que medida eles foram inovadores
radicais?
Outro
subtema é a própria relação de Aristóteles com Platão. As diferenças,
tantas vezes apontadas, entre o discípulo e o mestre fariam do
aristotelismo um pensamento totalmente divergente da matriz platônica,
ou apenas uma das muitas possibilidades de desenvolvimento do
platonismo?
Monismo versus dualismo
Quanto
aos neoplatônicos, um pesquisador do grupo que se dedica ao seu estudo,
especialmente no que diz respeito ao pensamento de Plotino, é Mauricio
Pagotto Marsola, professor de História da Filosofia Antiga da
Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Seu trabalho de doutorado, concluído em 2005 com Bolsa da FAPESP, examinou a exegese plotiniana de uma passagem do diálogo A República, de Platão. Mais recentemente, ele recebeu Bolsa de Pesquisa no Exterior para participar do projeto de reedição dos escritos de Plotino.
“Investiguei o modo como Plotino lia Platão. E isso me conduziu a um tema central do pensamento plotiniano, que trata do Uno (Hen, em grego), o Primeiro Princípio, inefável, inapreensível pelo intelecto humano, que engendra toda a realidade”, disse Marsola.
Plotino
se autodeclarava apenas um exegeta de Platão. Sua proposta era
esclarecer as obscuridades e contradições que os textos de Platão
eventualmente apresentavam.
“Porém, nele, a exegese era uma estratégia metodológica para pensar questões filosóficas”, explicou Marsola. “Sua obra, asEnéadas,
lidou com questões suscitadas diretamente pelos diálogos de Platão;
questões que vieram dos platônicos imediatamente posteriores a Platão;
questões que vieram dos platônicos imediatamente anteriores a Plotino; e
questões que vieram do aristotelismo ou do estoicismo.”
Uma
influência fundamental na composição do pensamento de Plotino veio de
Amônio, seu mestre em Alexandria. Amônio foi, talvez, o personagem mais
obscuro da história da filosofia. Nada publicou e pediu a seus
discípulos que não divulgassem os ensinamentos que lhes transmitiu. As
informações biográficas a seu respeito são mínimas e sujeitas a
controvérsias.
“Porém, Porfírio, discípulo de Plotino, afirmou que Plotino lia os textos de Platão segundo o Nous (intelecto) de Amônio. Isto é, lia os textos conforme a exegese já praticada por Amônio”, comentou Marsola.
“Ao
fazer essa exegese de Platão segundo o espírito de Amônio, Plotino
construiu uma filosofia própria, extremamente original. Ele buscou
compreender a realidade como um todo unitário, articulado e coerente,
que decorre inteiramente do Primeiro Princípio”, disse.
“Em seu sistema, há dois escalões intermediários entre o Primeiro Princípio (Uno) e o mundo sensível: o Nous (Intelecto) e aPsyche (Alma).
Porém, tudo é entendido como um escoamento do Primeiro Princípio. O
próprio Plotino usou a metáfora da fonte para ilustrar esse escoamento
da realidade toda a partir de um princípio único. Um dos lemas do
neoplatonismo é Hen to Pan (O Uno é o Todo)”, disse Marsola.
O
pesquisador explicou que Plotino construiu seu sistema em contraposição
à visão dualista dos gnósticos de seu tempo, com os quais polemizou. O
gnosticismo era uma corrente místico-filosófica heterogênea, que
procurava sintetizar muitas influências e apresentava várias divisões e
subdivisões, expressando-se, com diferentes roupagens, nos contextos
pagão, judaico e cristão.
“Para
uma certa versão do gnosticismo, a realidade era regida por dois
princípios: um bom, que teria produzido o mundo inteligível; e outro
mau, que teria produzido o mundo sensível”, afirmou Marsola.
“Então,
o mundo sensível era associado ao mal. E isso conferia a essa versão do
gnosticismo uma perspectiva escapista, de rejeição da vida material.
Plotino contestou essa visão e reafirmou a harmonia da realidade,
entendendo o mundo sensível como um reflexo do mundo inteligível, ambos
procedendo do Uno”, disse.
O Aristóteles jovem e o Aristóteles maduro
Sobre
a trajetória do pensamento aristotélico em sua relação com o
platonismo, Zingano, especialista em Aristóteles, destaca três grandes
leituras da obra desse filósofo.
“Uma,
que demonstra menor interesse nas mudanças ocorridas na obra de
Aristóteles e busca antes enfatizar a unidade dos textos, ou bem
limitando essa unidade a alguns textos ou bem retornando à ideia de um
grande e coerente sistema aristotélico; outra, inaugurada pelo filólogo
alemão Werner Jaeger (1888 – 1961), que consiste em ver um Aristóteles
que lentamente se distanciou de Platão, a ponto de, no final de sua
carreira, ter abandonado a metafísica em proveito da pesquisa
científica; e uma terceira, que eu, pessoalmente, considero a mais
interessante, proposta, nos anos 1950, pelo filósofo galês Gwilym Ellis
Lane Owen (1922 – 1982)”, disse.
Segundo
Zingano, Owen percebeu na trajetória de Aristóteles um momento inicial
de afastamento e outro posterior de reaproximação em relação à matriz
platônica.
“Ele
vislumbrou um Aristóteles jovem, rebelde, como qualquer adolescente é,
que negava a todo custo Platão, mas que, depois, amadureceu e, pouco a
pouco, recuperou temas platônicos, em outra chave conceitual”, descreveu
o pesquisador.
“Assim, nas Categorias,
um texto da juventude, Aristóteles sustenta, contra Platão, uma análise
do ser limitada às substâncias sensíveis, sem a perspectiva de uma
doutrina geral do ser. Anos depois, porém, na Metafísica,
volta a afirmar a possibilidade de uma tal ciência. Aristóteles afirma
tal possibilidade com base em noções que já estão completamente fora do
domínio platônico. Contudo, o fato de afirmá-la mostra um retorno a
temas do platonismo”, disse.
O Projeto Temático “Platão, Aristóteles e sua influência na Antiguidade” deve se estender até o fim de maio de 2015.
O
grupo de pesquisa publica, de modo constante, artigos, capítulos de
livros e livros sobre temas de filosofia antiga. Recentemente, Zingano
editou – ao lado de Pierre Destrée, pesquisador do Fonds de la Recherche
Scientifique (FNRS) e professor da Université Catholique de Louvain, na
Bélgica, e de Ricardo Salles, pesquisador do Instituto de
Investigaciones Filosóficas da Universidad Nacional Autónoma de México –
o livro What is up to us? Studies on Agency and Responsibility in Ancient Philosophy,
reunindo artigos de diversos estudiosos. A publicação foi lançada este
ano pela editora Academia Verlag, especializada em filosofia.
Os próximos livros a serem lançados por integrantes do projeto temático são Protágoras, de Platão: tradução, introdução e comentário,
de Daniel Lopes, professor de língua e literatura grega na Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, previsto para 2015
pela Editora Perspectiva; e Theoria – studies on the status and meaning of contemplation in Aristotle’s Ethics,
editado por Zingano e Destrée, pela Peeters Publishers, editora sediada
na Bélgica, com lançamento previsto para o fim deste ano.
Fonte: agencia.fapesp.br
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