A Auto-observação e suas consequências
“A postura da auto-observação psicológica ('observação vigilante') não deve ser interpretada como 'uma prática mística oriental'. Rotular desse modo não irá nos ajudar em nada. Não se trata aqui de um preceito religioso, mas de uma prática séria e profunda de autoconhecimento, partindo de nós mesmos, não de um terapeuta ou psicólogo ou líder religioso.
O próprio despertar de nossa consciência (que se acha profundamente adormecida) depende dessa prática. Somente o próprio sujeito pode fazê-la. Não há como transferir nem mesmo parte dessa responsabilidade para uma terceira pessoa, seja ela um médico, um mediador divino, um mestre ou consultor. Ninguém pode intermediar sua relação com seu próprio Ser íntimo, sua realidade interna.
A auto-observação psicológica não se trata de um ritual que adotamos por pertencer a esta ou àquela cultura. É certo que Sidharta Gautama a ensinou durante seus 45 anos como professor. É também evidente que Jesus (Orai e Vigiai...) e muitos outros, depois de Buda, também a ensinaram. A "observação vigilante" não é uma teoria ou doutrina, nem faz parte de algum sistema de crenças específico. Podemos pensá-la como um método para nos ajudar a descobrir nosso potencial, para nos autoconhecer e para despertar a nossa consciência dormente.
No coração da
meditação do insight* está a prática da vigilância, o cultivo da
consciência desobstruída, estável e sem julgamentos. A prática
da vigilância pode ser altamente eficaz em trazer calma e claridade às
pressões do dia-a-dia, mas também é igualmente um caminho espiritual que dissolve
gradualmente as barreiras ao desenvolvimento pleno de nossa sabedoria,
compaixão e liberdade.
Cultivar nossa capacidade de ver claramente é a fundação para aprender
como estar presente para as coisas como são, ao surgirem. É aprender a
ver sem os filtros da parcialidade, do julgamento, da projeção ou das
reações emocionais. Igualmente implica o desenvolver da confiança e
força interna que permitem que estejamos presentes para as coisas como
são em vez de como as desejamos que fossem. A prática da vigilância não
envolve tentar mudar quem somos, mas sim uma prática de ver com
clareza quem somos, de ver o que acontece ao acontecer, sem
interferência. Nesse processo, mesmo sem tentar, podemos ser
transformados.
A vigilância requer uma característica importante da consciência: a
consciência por si só não julga, não resiste, nem se agarra a qualquer
coisa. Concentrando-nos em simplesmente estarmos atentos, aprendemos a
nos desembaraçar de nossas reações habituais e começar a ter um
relacionamento mais amigável e compassivo com nossa experiência, conosco mesmos e com os outros.
Entretanto, estar consciente é confundido frequentemente com
autocrítica, em que nós julgamos comparando o que está acontecendo com
as nossas opiniões e autoimagem.
Por exemplo, se ficamos zangados durante um período de meditação, uma
resposta autocrítica pode ser “Puxa! Eu estou irritado outra vez! Eu odeio estar sempre tão irritado”. Com a prática da vigilância
cultivamos uma consciência que reconhece a presença da raiva sem
julgá-la – estaríamos conscientes de que “há raiva”.
Se virmos uma linda flor, com o estar consciente nós simplesmente
apreciamos a flor. Uma resposta autocrítica pode ser “Que linda flor, e
eu a quero para mim mesmo, assim os outros saberão que eu tenho bom
gosto e me admirarão”.
A pedra fundamental da prática é uma apreciação plena do presente. Ela inclui o reconhecimento de que as coisas
mais maravilhosas que temos na vida acontecem somente se estamos no
momento presente. Para surgir a amizade, a alegria, a generosidade, a
compaixão e a apreciação da beleza, precisamos nos permitir o momento e a
presença para estarmos conscientes.
Apreciar o momento presente envolve aprender que o momento presente é
confiável se estivermos presentes para ele. Se pudermos estar
inteiramente conscientes e não-reativos ao que está acontecendo no
presente, aprenderemos a responder apropriadamente.
Ter a apreciação e a confiança não é sempre fácil. Parte da prática é descobrir o que nos impede de confiar e apreciar o momento
presente. Qual é nossa real frustração, o que é nossa resistência, o que
é nosso sofrimento, o que é nossa desconfiança? Quando esses estão
atuando, o trabalho da vigilância é reconhecê-los claramente e então
contê-los sem julgamento com nossa consciência.
Os ensinos sugerem que quando encontramos o objeto que nos
impede de apreciar o presente, que nos impede de confiar, a coisa exata
que nos causa sofrimento, esta é uma porta à liberdade, ao despertar.
Aprendemos a viver com abertura e confiança ao invés de com uma
autoimagem e toda a autocrítica, aversão e orgulho que possam vir com
ela. Na prática da vigilância, nenhuma humanidade é negada. Nós estamos
descobrindo uma maneira de estar presente a tudo – nossa completa
humanidade – assim tudo se torna uma porta à liberdade, à compaixão e a
nós mesmos”.
tradução: Patricia Gurgel Segrillo
revisão: Ricardo Sasaki
* A meditação do insight ou Vipassanā é um dos ensinos centrais do Buddha. Permaneceu como uma prática viva por 2500 anos. A palavra Vipassanā significa literalmente “ver com clareza”. O livro do prof. Gil Fronsdal “Tocar o Coração do Assunto”, trata sobre a prática da "observação vigilante".
FONTE: http://sobrebudismo.com.br/a-pratica-da-observacao-vigilante/
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