A depredação e a exacerbação da violência nas ruas reforça o duplo
sentido da falência do poder público, o de gerar revolta por não ser
capaz de dar respostas às necessidades básicas da sociedade e o de
errar, na origem, na formação dos cidadãos.
A discussão dos limites da
liberdade nos movimentos sociais, entre mais de uma vertente teórica,
acadêmica ou não, aponta para o ensinamento dos antepassados: A palha só
pega fogo se está seca.
A reflexão sobre a liberdade e seus limites, em razão dos episódios a
partir do movimento que tomou as ruas do País em junho do ano passado e
eclodiu como tragédia com a morte do cinegrafista Santiago Andrade,
neste mês, aponta para o calcanhar dos erros institucionais acumulados
no tempo: a ausência e falência do Estado. Isso não referenda nem
autoriza violência, ponderam as reflexões. Mas apontam o dedo para o
mesmo culpado: as instituições. E neste caso, a lista inclui as gestões
municipais, estaduais e a União e todos os demais órgãos, como os de
Segurança Pública, o Legislativo e, inclusive, Ministério Público e
Judiciário. As instituições, cada qual em seu grau ou modo, desviaram de
suas missões e se tornaram corporativistas em demasia.
O antropólogo David Graeber discute a partir de mais de um de seus
livros, como “Projeto Democracia” ou “Fragmentos de uma antropologia
anarquista”, que o fracasso das instituições e das formas tradicionais
de poder está levando pessoas, no Brasil, na Turquia ou em outros países
sob efervescência social de algum gênero ou origem, a achar que não é
mais dando mais ferramentas à polícia, ao Judiciário, ao Ministério
Público ou ao governo que os problemas vão se resolver. E sem
perspectivas, parte dos jovens da nova geração encontraria na depredação
e na violência urbana uma forma não de sair do anonimato diante da
convulsão social, mas de riscar o fósforo contra a falência das
instituições e da crise de representação social.
Mas será que é isso, ou só isso? Quais os limites da violência nas ruas
e o que os episódios a partir de junho do ano passado para cá, no
Brasil, nos apontam para compreender nossos erros como sociedade da
jovem democracia? A omissão e incompetência do Estado explicam ou
justificam o esgarçamento do conceito de liberdade no meio coletivo a
partir dos rostos encobertos de um grupo que se apropria da organização
pacífica nas ruas para quebrar equipamentos públicos e praticar a
violência pela violência?
Ou, afinal, a exacerbação dos limites da liberdade nas ruas descamba
para o caminho da depredação como simbolismo do grito contra os erros do
Estado que também não está sendo capaz de formar valores civis? É a
ignorância do Estado ‘autoexplicando’ a ignorância nas ruas (autofagia
social)? Ou não é nada disso, e o fato seria que, ultrapassado para
alguns, estão presentes nestes episódios somente os mais recentes
elementos da confirmação do esgotamento do modelo de consumo?
Para Graeber, a eclosão social, parcial ou não e com singularidades, na
Índia ou no Brasil, traduz que as pessoas estão considerando que
através dos partidos políticos não resolvemos nossos problemas e que ir
para as ruas, em alguns casos, é a alternativa mais próxima do real,
ainda que momentâneo. Porque a “revolta” acorda o poder e as
instituições omissas ou negligentes. O problema é que daí para o
surgimento do oportunismo violento é questão da faísca virar explosão.
Ao abordar a questão, em recente entrevista para a Globo News, o
antropólogo Graeber avalia que está embutido nessa discussão um pouco do
que ele chama de novo conceito de anarquismo através de uma nova
concepção de liberdade. Por aqui, cientistas políticos e correntes
filosóficas e sociológicas também acreditam, embora sem fazer menção ao
tal novo formato anarquista, que a essência seria de que através da
reação nas ruas a sociedade passa, efetivamente, a ter chance real de
ser ouvida, porque pelos caminhos normais os resultados não surgem.
- Missão da omissão
O professor de filosofia Sílvio Motta Maximino considera que a “omissão do
Estado afeta diretamente o conceito dos limites da liberdade”. Ou seja,
o poder público é culpado pela ignorância. Antes, ele conceitua que
viver em sociedade significa a natural relação de convivência com a
restrição do direito absoluto de liberdade. “A configuração social exige
regras e condutas; a sociedade se desagrega se elas não
funcionarem ou não forem respeitadas”, comenta.
Se Jean Paul Sartre discutiu que “a essência do homem é a liberdade”,
pontua Maximino, isso não significa poder fazer tudo. “é que
o cidadão transfere ao Estado o poder de estabelecer as regras de
restrição de liberdade em nome do coletivo. Mas se o Estado falha, então
permite subsistir no indivíduo um perigoso sentimento de desobediência
civil. E alguns pensadores defendem a desobediência civil nessas
condições”, acrescenta.
E aí se encontra o dilema ético, sinaliza o professor Sílvio.
“Democracia não é fazer o que se quer e sim fazer a vontade da maioria.
Extrapolar, exacerbar, depredar, tudo isso viola o direito da
coletividade e isso inclui atos de violência. Esses atos devem ser
responsabilizados pelo Estado”, defende.
Falência institucional fomenta convulsão social, diz Bertolli
O antropólogo Cláudio Bertolli é incisivo ao discutir os limites da
liberdade nas ruas. “Se não tem médico, o Estado está violentando a
liberdade muito mais do que atear fogo no pneu na rua. É claro que isso
não justifica a violência, mas a explica em si. O fato é que a falta do
Estado desperta a ira. A falência institucional gera violência”, lança.
O professor da Unesp raciocina que o Estado que não tem domínio
democrático sobre a sociedade e submete a população a atos até de
barbárie, como os massacres no Acre, o fragelo de índios na Amazônia e a
repressão equivocada em centros como São Paulo, pavimenta na população
caminhos para a violência. ”Essa ausência gera justiça com as próprias
mãos e isso acontece no País em vários cantos. Há matança em série em
alguns Estados mais distantes. E em São Paulo e Rio de Janeiro, onde o
poder público está presente de forma mas maciça ou concentrada, o
indivíduo não confia no Estado”, aborda.
Desta forma, indivíduos não satisfeitos em demandas básicas, se sentem
no direito de realizar justiça, o que inclui até quebrar. Bertolli
reitera que o raciocínio não é está ligado em dar guarida à violência,
mas o de tentar compreender como ela está se manifestando. “O Estado não
cumpre seu papel e na rua está uma sociedade com consciência
infantilizada. Estado e sociedade estão sem saber seus limites e ambos
extrapolam”, finaliza.
Jovem questiona uso do rosto coberto
O jovem e advogado Thyago Cezar não se arrepende de ter dedicado horas
de energia e estudos pelas reivindicações lançadas a partir do Movimento
Bauru Acordou, no ano passado. Mas ele lamenta, entretanto, que apenas
poucos tenham se conectado com a realidade das reivindicações, enquanto
milhares estavam nas ruas, de fato, ‘linkados’ muito mais com as redes
sociais durante as mobilizações do que com o conteúdo da ação em massa.
Passado alguns meses e em função da mais recente discussão, pelo
governo, de disciplinar e estabelecer condições para o exercício da
liberdade de protesto e por reivindicações populares, Cezar não
concorda, por exemplo, com o anonimato.
“Focando nos acontecimentos nacionais, percebemos que muitos dos
manifestantes procuram estar com seus rostos cobertos, visando manter
seu anonimato, contudo, não consigo enxergar qual o real motivo do medo
de ter o anonimato quebrado. Acredito que seja totalmente desnecessária a
cobertura das faces, visto que aquele que saiu para pedir um direito
legítimo, não está cometendo crime, muito pelo contrário, está
trabalhando em favor do Estado Democrático de Direito, haja vista, que
está exigindo que seus direitos já garantidos ou almejados, sejam postos
em efetiva prática”, posiciona.
Para ele, o anonimato ofusca “um pouco o brilhantismo e a força que
este modo manifestação poderia gerar, uma vez que a postura passa a ser
considerada como mero ato de rebeldia juvenil”. Mas, em outro viés, o
advogado defende o posicionamento firme contra quem tem comprovado
desvio de conduta no exercício da função pública. “Sou a favor da
manifestação de cara limpa, bem como sou a favor de apontar o dedo na
“cara” do governante e chamá-lo de corrupto se necessário, fazendo toda a
pressão suficiente para afastá-lo dos cargos ou funções públicas”,
define.
Cezar avalia que a mobilização é o caminho. “Acompanhando as
manifestações, pude perceber que basta ter coragem de exigir, e de
reforçar a exigência feita que qualquer entidade política se curve
diante da população. O ato de manifestar é um dos direitos garantidos
mais interessantes, pois dá a cada um de nós a possibilidade de trazer
para o mundo real a realidade que até então, somente existia em nossas
mentes”, opina.
Mas ele reconhece que a liberdade de manifestação no regime democrático
não é absoluta. “Porém, como todo direito, manifestar não é um direito
absoluto, ou seja, aquele que não pode sofrer qualquer tipo de
interferência. Pelo fato da manifestação não ser um direito absoluto,
pode sim ser regulada pelo poder público, fazendo com que as
manifestações não causem problemas diretos à própria sociedade”,
comenta.
Da erupção popular, Thyago lamenta que “apenas uma pequena minoria de
pessoas sabiam realmente o motivo que as tirou de casa para se juntar a
milhões de desconhecidos e gritar. A grande maioria estava apenas
preocupada em tirar fotos para publicar em suas redes sociais”. Ele
resume que as manifestações na cidade de Bauru de 2013, “funcionaram
como um microssistema formado por um universo de sentimentos variados. E
nem sempre esse microssistema aponta para o mesmo sentido. Em uma
manifestação popular tudo acontece com velocidade muito mais extremada
que as relações comuns da sociedade”, finaliza.
- Missão da omissão
O governo federal estuda exigir, em lei, que os protestos de rua sejam
previamente informados às autoridades, conforme projeto que está sendo
elaborado para ser apresentado ao Congresso.
O texto também pode coibir o uso desproporcional da força policial
contra manifestantes. Mas o governo federal tem receio que a lei seja
absorvida como uma ação contra as manifestações. Por esta razão, a
tendência é não proibir o uso de máscara nas manifestações.
Por outro lado, o enfoque seria de enquadrar no crime de desobediência o
manifestante que vier a esconder o rosto após ter sido flagrado
previamente pela polícia utilizando máscara. Neste caso, o cidadão
mascarado seria conduzido a uma delegacia para prestar depoimento. A
reincidência pode ser configurada como crime, segundo a proposta em
gestação no Palácio do Planalto. O mascarado também poderá ficar retido
até o fim do ato público. O governo argumenta que pensa em uma
legislação que dê segurança aos manifestantes e evite o abuso de poder
da polícia. O texto deve propor a elevação de penas para os casos de
lesão corporal, homicídio e danos ao patrimônio.
Advogada diz que aviso para manifestar é autoritário
Para a advogada Maria Cristina Sant’Anna salta aos olhos, com
gravidade, o objetivo oculto dos governos em pretender aviso prévio para
manifestações populares, a exemplo do que está embutido na recente lei
estadual 6.538/2013, do Rio de Janeiro.
“O objetivo principal dessa lei foi o de proibir o uso de máscaras.
Porém, há o componente autoritário em seu conteúdo que pode passar
despercebido, mas que reputo gravíssimo: a exigência do aviso prévio
como condição indispensável para o reconhecimento do direito de
manifestação”, adverte.
Ele argumenta que é provável que muitos considerem a exigência
juridicamente válida, já que faz parte do próprio texto constitucional
(artigo 5º, XVI, da Constituição Federal de 1988). “Porém, tratando-se
de manifestações espontâneas, realizadas em um contexto inesperado e
imprevisível, o fato de não ter havido o aviso prévio não tem o condão
de afetar o direito fundamental de reunião pacífica. Ou seja, a mera
ausência de prévio aviso não justifica, de modo algum, a dissolução
compulsória de uma reunião pacífica”, cita.
Dito de modo mais enfático: “uma infração ao dever de anúncio prévio
não leva automaticamente à proibição ou dissolução de um evento“, de
modo que a autoridade pública somente pode intervir na reunião pacífica
quando estiverem presentes outros pressupostos para uma intervenção”,
sustenta Sant’Anna.
Ele concorda, entretanto, que há fronteiras para o exercício da
liberdade de expressão. “Que não é absoluta e sim uma manifestação do
próprio caráter societário dos indivíduos, que baseiam todas as suas
relações de convivência na reciprocidade do respeito à pessoa e aos seus
bens, assim como à ordem instituída. O exercício dessas liberdades
pressupõe diversas responsabilidades e, por consequência, pode estar
sujeito a certas formalidades, fixadas por lei e que sejam necessárias à
segurança nacional, da integridade territorial, da segurança pública,
da defesa da ordem, etc”.
Ela prossegue que é competência do Estado, enquanto moderador das
relações sociais, estabelecer os parâmetros de enquadramento da
liberdade de expressão, através de instrumentos jurídicos, e cuidar do
monitoramento da observância do previsto. “As reuniões pacíficas,
objetivando a exposição de idéias, sem qualquer incitação à violência
não podem ser restringidas pelo Estado. Este não tem a faculdade de
decidir por si o que pode ou não ser ouvido pelas pessoas,
inviabilizando o uso de direitos fundamentais tutelados pela
Constituição. Cada indivíduo, no pleno gozo de seus direitos, possui
discernimento e a própria responsabilidade moral para seguir ou não uma
ideologia ou participar de um movimento”, reflete.
No centro do problema entre rua, liberdade e limites, porém, a advogada
também considera que a constatação é de esgotamento do atual modelo
institucional. “Esgotamento tanto dos poderes públicos quanto da
representação midiática”, diz.
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