Vai ter Copa. Só não para você
CONGRESSO EM FOCO | 31/01/2014 08:05 |
Edemilson Paraná *
Evento
privado, gasto público, lucro privado. A “Copa das Copas” vai
acontecer, já aconteceu, já está acontecendo. Pelo menos para a Fifa.
Uma projeção feita pela BDO (empresa de auditoria e consultoria
especializada em análises econômicas, financeiras e mercadológicas)
aponta que a Copa do Mundo de 2014 no
Brasil vai render para a entidade, que supostamente não tem fins
lucrativos, a maior arrecadação de sua história: nada menos do que US$ 5
bilhões (cerca de R$ 10 bilhões). O valor é 36% superior em comparação
ao montante obtido com o Mundial da África do Sul (US$ 3,6 bilhões), em
2010, e 110% maior do que o arrecadado na Copa de 2006, na Alemanha, que
rendeu US$ 2,3 bilhões. Os números foram confirmados pelo
secretário-geral da Fifa, Jérôme Valcke, em entrevista coletiva
realizada em junho de 2013.
Cerca
de um terço do valor total das obras (R$ 8,7 bilhões) está sendo
financiado por bancos federais – Caixa Econômica Federal, BNDES e bancos
estaduais. Boa parte desses empréstimos é tomada pelos próprios
governos estaduais, sozinhos ou em parcerias com o setor privado, embora
alguns empréstimos também sejam contraídos por entes privados (como os
mais de R$ 400 milhões liberados pelo BNDES para o Corinthians construir
o Itaquerão). E antes que surja o papo de que o dinheiro desses bancos é
privado, lembremos que o BNDES, por exemplo, é uma empresa pública.
Recebe dinheiro do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) para emprestar
em condições privilegiadas a empresários. O fundo é formado por parte da
receita de um tributo, a contribuição ao PIS/Pasep, cujo custo é
incorporado pelas empresas aos preços dos bens pagos pelos consumidores.
As
obras consumirão R$ 6,5 bilhões do orçamento federal e R$ 7,3 bilhões
de governos locais (estaduais e municipais). Dos R$ 28,1 bilhões totais,
apenas R$ 5,6 bilhões serão recursos privados (que se concentram
principalmente nos aeroportos). Balela dizer que não há dinheiro público
na jogada. O preço dos ingressos todos nós já conhecemos, as obras de
infraestrutura urbana, propagandeados como o grande legado do evento,
poucos viram até agora.
Em
resumo, a lógica é bastante simples. A Fifa faz uma festa privada e se
você quiser sediá-la precisa aceitar as condições da entidade. A verdade
é que não há nenhum comprometimento com o desenvolvimento econômico,
esportivo ou humano dos países que sediam grandes eventos esportivos.
Não
por acaso, a Suécia – que notoriamente tem problemas sociais menos
agudos do que os brasileiros – acaba de negar a oportunidade de uma
candidatura para sediar as Olimpíadas de 2022. A justificativa é
assustadoramente simples: o país tem outras prioridades como habitação,
desenvolvimento e providência social.
Gastos incalculáveis: o retrocesso nos direitos humanos
Não
bastasse a matemática contábil básica ignorada pelos defensores dos
grandes eventos, um conjunto de abusos e violações aos direitos humanos
completa o pacote de “gastos” sociais incalculáveis.
Um
mapeamento divulgado na Suíça pela Articulação Nacional dos Comitês
Populares da Copa (Ancop) em parceria com a ONG Conectas, no final de
maio passado, calcula que mais de 200 mil pessoas estão sendo despejadas
arbitrariamente de suas casas por causa de obras para os preparativos
da Copa em todo o Brasil. Durante os preparativos de megaeventos
esportivos, estima-se que 15% dos moradores de Seul foram expulsos de
suas casas e, na África do Sul, 20 mil pessoas foram despejadas.
Além
das milhares de famílias desalojadas, algumas outras pagaram com a vida
o preço de obras superfaturadas, feitas às pressas, com baixa
remuneração, cargas de trabalho extenuantes e pouca fiscalização. De
junho de 2012 a dezembro de 2013, o Brasil registrou sete mortes
relacionadas à preparação do país para a Copa do Mundo. Número mais de
três vezes maior do que o registrado na África do Sul.
Contra
a revolta social produzida por tais abusos, muita repressão. Além de
outros milhões de reais gastos com aparato de repressão adicional
(bombas de gás, spray de pimenta, armas e balas de borracha,
equipamentos de dispersão, entre outros), uma tropa de choque especial
com 10 mil homens, especialmente recrutados para isso, será responsável
por agir em caso de manifestações nas 12 cidades-sede da Copa do Mundo
de 2014. Além das tropas, robôs irão monitorar por imagens a
movimentação de pessoas nos entornos dos estádios, e a vigilância a
aplicativos de celulares e mídias sociais já está em andamento. O
Exército está a postos e também se prepara para a necessidade de ser
convocado a conter as manifestações. O (não) preparo dessas “tropas”
para lidar com seus próprios cidadãos exercendo seu livre direito de
manifestação, como se fossem inimigos da pátria, já é amplamente
conhecido.
No
apagar das luzes de 2013, o Ministério da Defesa baixou uma portaria
normativa que “Dispõe sobre a Garantia da Lei e da Ordem” pelas Forças
Armadas. Entre outras coisas o documento aponta a necessidade de conter
“sabotagem nos locais de grandes eventos” e aponta como “força oponente”
os “movimentos ou organizações” que causem dificuldades no objetivo de
“manter ou restabelecer a ordem pública”.
No
Congresso, tramitam mais de 13 propostas que “normatizam”
manifestações. As propostas, muitas flagrantemente inconstitucionais,
tratam de criminalização, aumento de penas, tipificação de terrorismo,
entre outros ataques ao direito de organização social. Além da Lei Geral
da Copa, um abuso em si, que já revoga vários direitos democráticos,
tramita um projeto de lei no Senado que, entre outras coisas, proíbe
greves durante o período dos jogos e inclui o “terrorismo” no rol de
crimes com punições duras e penas altas para quem “provocar terror ou
pânico generalizado”.
Ganhos inesperados: articulação e mobilização social
Ingressos
caros e avanço do processo de elitização do futebol no Brasil, gasto
público com lucro privado, violações aos direitos humanos e ataques à
democracia. Como pano de fundo desse cenário, um país desigual, com
saúde e educação precarizadas e péssimos serviços de mobilidade urbana. O
resultado não poderia ser outro que não revolta social.
O
combate dos governos e seus aliados às manifestações é de ruborizar
pela falta de consistência política. O argumento de que “os protestos
causarão prejuízos ao Brasil” até faria algum sentido se os vultosos
lucros com a realização do evento não fossem parar no bolso de meia
dúzia de gestores, empresários e cartolas em detrimento dos altos preços
cobrados de torcedores e contribuintes.
A
ideia de que o “movimento é partidário e, portanto, orquestrado para
prejudicar a reeleição da presidenta Dilma” desmonta-se diante de uma
primeira visita a qualquer um dos protestos: há tudo e todos, diferentes
movimentos e colorações ideológicas, trata-se de um espaço amplo,
aberto, caótico e fragmentado. Estrutura-se, pois, em anseios legítimos
da população brasileira, que se expressam da maneira possível diante do
atual quadro de esvaziamento representativo. Se prejudicam a imagem de
governos, o problema está, obviamente, nas medidas que estes resolveram
adotar à revelia do que precisa e pede o país neste momento, à revelia
de nossas reais prioridades.
Chega
a ser irônico ver um governo dirigido por um partido que até ontem se
apresentava como de esquerda e nacionalista se mobilizar de modo tão
uníssono – e por que não dizer, desesperado – em defesa da submissão do
Estado e da sociedade na garantia dos lucros de uma instituição privada
internacional que concorre na Suíça ao prêmio Public Eye Awards como a
pior companhia do mundo, honraria já concedida às “benévolas” Vale do
Rio Doce, Shell e ao Banco Goldman Sachs, um dos responsáveis pelo
estouro da crise financeira mundial em 2008.
Por
fim, o argumento de que os protestos são “autoritários” é risível
diante do fato de que em nenhuma etapa do processo – a eleição do Brasil
como sede, a aprovação da abusiva Lei Geral da Copa ou a remoção de
centenas de milhares de famílias – a população foi consultada. Tudo foi
decidido, para variar, entre as cúpulas do poder dominante.
As
preocupações dos governos e seus partidos dirigentes, no entanto, têm
razão de ser. A revolta crescente aos poucos se organiza politicamente e
procura, sim, os responsáveis pelos abusos. Já em 2013 a Ancop
(Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa) cumpriu um papel
importante nas manifestações de junho lançando o importante
questionamento “Copa para quem?”. A articulação, um dos catalisadores
das manifestações à época com atos em todo o Brasil, reúne comitês nas
12 cidades-sede da Copa, que por sua vez agregam movimentos sociais,
universidades e entidades de sociedade civil que lutam contra a violação
de direitos humanos. Poucos ganhos podem ser maiores para uma sociedade
do que os de conscientização e organização política em defesa de seus
direitos. Esse pode ser o nosso maior legado.
Desde
o ano passado, essa articulação vem se ampliando. O debate a respeito
dos abusos da realização da Copa do Mundo no Brasil, aos poucos, se
desloca ao centro da agenda política. No bradar de vozes opositoras, que
já se autonomearam em relação à ação inicial dos comitês, uma consigna
se destaca mais do que outras, para o pânico do andar de cima: “Não vai
ter Copa”.
Não vai ter Copa?
Tudo
somado, os gastos envolvidos, os interesses em jogo e o aparato de
repressão mobilizado, é difícil que não haja. Trata-se de ano eleitoral,
de uma das Copas mais lucrativas da história e da subjetividade de um
país que passou – também graças a insistente propaganda oficial ao longo
de anos – a enxergar-se como o país do futebol. Vai, sim, ter Copa. Só
não para você.
Para
quem ela será, já sabemos. Sabemos também que o preço será alto para
todos os lados: governos, empresários, torcedores e manifestantes. Como o
cenário não é favorável para nenhuma mudança de rumos na organização do
evento, engana-se quem acha que a tensão social diminuirá até lá. Mas
será que a palavra de ordem “Não vai ter Copa” é a melhor nesse momento?
Particularmente,
creio que não. A consigna “Copa para quem?” denuncia de modo mais claro
os problemas que apontamos, articulando-o a outras dimensões de nossas
desigualdades estruturais, o que abre cenário para a politização
sistêmica desse processo, mesmo após a finalização do evento.
“Não
vai ter Copa”, em contrapartida, anima as manifestações para um
objetivo que não parece muito crível no momento, encaminhando as
reivindicações para uma derrota. Derrotas, sabemos, têm um impacto
consideravelmente negativo em um processo de lutas sociais, já que é de
vitórias e conquistas, ainda que pontuais, que se alimenta um ascenso
político dessa natureza. Denunciar de modo firme e claro os desmandos da
realização do evento, desgastando e constrangendo os responsáveis e
privilegiados por tais abusos, já aponta uma importante vitória parcial,
que pode ser ampliada posteriormente em articulação com outras
denúncias, reconfigurando com isso a conjuntura da política brasileira.
Peçamos
hospitais e escolas padrão Fifa, moradias para os sem-teto,
transparência nos investimentos para a Copa, denunciemos a corrupção, a
suspensão da liberdade de manifestação durante a Copa. Dessa forma,
temos mais possibilidades de obter algumas vitórias; a maior delas, sem
dúvida, será o fortalecimento de um amplo e enraizado movimento de
contestação social.
A
maioria do povo brasileiro não é contrária à realização da Copa do
Mundo no país. É contrária, sim, aos atropelos e usurpações que cercam a
organização do evento. Não fosse isso, tal maioria gostaria de uma Copa
no “país do futebol”. De alguma forma, então, a palavra de ordem “Não
vai ter Copa” pode confundir as coisas e fazer com que uma parcela da
opinião pública que poderia apoiar o movimento acabe se opondo a ele,
ampliando, inclusive, a violência da repressão. Quem surfa nessa
ambiguidade? O governismo mal intencionado e os defensores da realização
dos grandes eventos tal qual estão sendo organizados.
De
qualquer forma, com a palavra de ordem que for, nosso lado é claro – e
não é o lado dos governos e da Fifa. Se a palavra de ordem “Não vai ter
Copa” é a quem vem das ruas, não devemos cerrar fileiras com o
oportunismo político governista a combatê-la. Podemos e devemos
contribuir com a discussão de táticas alternativas, mas o nosso dever é,
antes de tudo, a unidade; é estar ao lado daqueles que lutam contra o
superfaturamento das obras, a corrupção aberta e o uso de dinheiro
público sem um mínimo de respeito às reais prioridades do país, a
submissão do governo federal a exigências absurdas da Fifa, as
restrições à liberdade de manifestação, às remoções, entre outros
inaceitáveis ataques em nome da alegria do futebol. Provemos ao mundo
que somos sim, apaixonados por futebol, mas negamos ser humilhados e
oprimidos por essa paixão.
*Edemilson Paraná é vice-presidente do Psol-DF e mestrando em Sociologia na UnB
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